Opinião

Fake news e eleições: o que 2018 diz sobre 2022?

Autor

  • Lucas Fucci Amato

    é livre-docente pela Faculdade de Direito da USP foi pesquisador visitante na Harvard Law School (EUA) e na Universidade de Oxford (Inglaterra) e é autor de Inovações Constitucionais: direitos e poderes (Casa do Direito 2018).

14 de agosto de 2021, 7h12

Temos um histórico de distorção da competição eleitoral pelo poder econômico e político e pelas graves assimetrias no acesso aos meios de disseminação da comunicação [1]. A imprensa só foi autorizada no Brasil a partir da vinda da família real, em 1808, e décadas antes a circulação das ideias iluministas e republicanas suscitara rebeliões que foram violentamente reprimidas. Na época imperial, o parlamentarismo veio a ser implantando em uma sociedade escravista e estratificada e o voto era censitário; até 1881, cerca de 13% da população brasileira efetivamente participava do processo eleitoral; depois disso, o patamar ficava em 1%. Com a proclamação da República, estabeleceu-se o sufrágio universal masculino, mas o voto foi negado aos analfabetos, o

que manteve o cenário anterior. Era uma sociedade ainda rural e baseada na cultura oral, enquanto tínhamos uma República dos bacharéis, dominada por aqueles com acesso à escrita e aos debates na imprensa e no Parlamento. Além disso, o sistema eleitoral era contaminado pelo poder econômico dos coronéis e das oligarquias e pela Comissão de Verificação de Poderes, dirigida pelo governo central, a qual excluía arbitrariamente os candidatos que haviam recebido votos suficientes, mas não interessavam aos grupos no poder. A Revolução de 1930 teve como uma de suas bandeiras a garantia do voto e, de fato, estendeu o sufrágio às mulheres e reforçou o sigilo do voto. Mais ainda, criou a Justiça Eleitoral, que desde então combina funções administrativas e jurisdicionais. Mas durante o Estado Novo (1937-45) o Congresso Nacional foi fechado. No intervalo democrático de 1945 a 1964, pela primeira vez mais de 10% da população compareceu às urnas; o rádio era o grande veículo popular de entretenimento e debate. Durante a ditadura militar, muitas transformações passaram a pressionar um sistema político opaco e fechado — a maior parte dos brasileiros passou a viver em cidades e o grau de votantes em relação à população total brasileira saltou de 18% para 50%. Mas apenas desde a redemocratização dos anos 1980 é que mais da metade da população brasileira realmente vem comparecendo às urnas, destacando-se a extensão do voto aos analfabetos pela Constituição de 1988.

As eleições de 2018, sobretudo na disputa presidencial, exibiram em novos trajes — "cibernéticos" ou "digitais" — os vícios entrincheirados em nossa democracia representativa: o abuso do poder econômico, o clientelismo e o populismo. Justamente nas primeiras eleições após a proibição do financiamento empresarial de campanhas (STF, ADI 4650-DF, julgada em 2015), o poder econômico encontrou novas formas de irradiar-se na disputa política, com graves indícios da montagem de um esquema organizado de disseminação de desinformação e discurso de ódio em favorecimento à chapa vencedora da presidência da República.

Se nossa Justiça Eleitoral foi criada durante um regime de exceção (1932, durante o governo provisório de Getúlio Vargas), nosso Código Eleitoral atual data de uma ditadura explícita (1965). Ambos foram projetados em uma sociedade industrial de massas em rápido crescimento econômico e dominada por meios centralizados de comunicação — as empresas de mídia (imprensa, rádio e TV) selecionavam como e o que informar, gerenciando as novidades e as repetições da comunicação. O Código Eleitoral vigente, embora tenha sofrido várias emendas, foi desenhado quando a televisão ainda engatinhava enquanto grande meio de comunicação de massas. Na sua forma atual, o código (Lei 4737/65) tipifica os crimes de calúnia, difamação e injúria (artigos 324, 325 e 326) e criminaliza a divulgação de fatos inverídicos na propaganda eleitoral (artigo 323). Ainda, a Lei 9.504/97 prevê o direito de resposta contra a divulgação de fatos "sabidamente inverídicos ou ofensivos" (artigo 58) e, desde 2013, criminaliza a "contratação direta ou indireta de grupos de pessoas com a finalidade específica de emitir mensagens ou comentários na Internet para ofender a honra ou denegrir a imagem de candidato, partido ou coligação" (artigo 57-H, §1º). A Lei 13.834/2019 incluiu no Código Eleitoral a tipificação do crime de denunciação caluniosa, incluindo a conduta de "quem, comprovadamente ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído" (artigo 326-A, §3º).

Vale perguntar se essa legislação é suficiente para coibir os novos contágios impostos à competição eleitoral pelos meios digitais de comunicação, que catalisam a produção e circulação descentralizada de notícias falsas e opiniões excêntricas, criando uma aparência de verdade pela pulverização e confirmação reiterada das informações. E vale perguntar se a Justiça Eleitoral desenhada há quase um século está preparada para defender o Estado democrático de Direito em um de seus pilares mais cruciais: a legitimação da representação política por eleições competitivas e imparciais.

A disseminação massiva de fake news mostrou-se não apenas uma estratégia eleitoral tanto corrosiva quanto eficaz, como também um instrumento de mobilização permanente em favor do governo. As respostas legislativas à desinformação como estratégia eleitoral e política pública envolveram, por um lado, o Projeto de Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. O PL das Fake News (aprovado no Senado em junho de 2020 e em lenta tramitação na Câmara dos Deputados) vai no caminho de leis anteriores sobre as comunicações digitais, como o Marco Civil da Internet (2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGDP, aprovada em agosto de 2018, às vésperas das eleições, mas com sucessivas postergações do início da vigência — em vigor desde setembro de 2020 e com sanções imponíveis a partir deste mês). Não apenas a tramitação do PL das Fake News é similarmente conturbada, por envolver interesses de grupos políticos e plataformas digitais, mas o próprio conteúdo do PL revela a dificuldade do Direito estatal de tratar de um tema tão novo e intrincado como o uso de tecnologias sob o domínio de corporações globais. Adotar normas indeterminadas e meramente finalísticas (em vez de regras claras e completas), incluir debates e definições de experts na área e apelar para as próprias empresas de mídia, acadêmicos e movimentos da sociedade civil é uma constante na regulação da comunicação digital. O artigo 31 do PL das Fake News é exemplar a respeito ao instituir a "autorregulação regulada", organizada por meio de uma autoridade composta por representantes do Estado e da iniciativa privada (provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada). A oportunidade é de o Direito estatal aprender a regular um tema novo e altamente técnico; o risco é a captura do interesse público e nacional pelos interesses das companhias privadas globais [2].

Por outro lado, ao aprovar na terça-feira (10/8) o projeto de lei que revogou a antiga Lei de Segurança Nacional de 1983, Câmara e Senado já tipificaram o crime de comunicação enganosa em massa. E há dois anos o parlamento respondera à desinformação eleitoral massiva pela instauração da CPMI Mista das Fake News. Arena de investigação e, sobretudo, de pressão política, essa CPMI a tal ponto evidenciou a instrumentalização de recursos e órgãos de Estado a favor da manipulação comunicativa que agora passa a atuar em conjunto com outra comissão parlamentar em andamento: a CPI da Covid-19 no Senado Federal, dirigida a fiscalizar a condução da política sanitária de combate à pandemia do coronavírus.

Quanto ao controle judicial, o Inquérito 4.781/DF aberto pelo Supremo Tribunal Federal certamente é um meio de pressão política à rede organizada de desinformação montada ao redor do Palácio do Planalto. Mas a esta altura, a quase um ano do próximo ciclo eleitoral, já se vê que sanções jurídicas efetivas não estão à vista. O mesmo se pode dizer da atuação do Tribunal Superior Eleitoral. As ações perante o TSE receberam em geral decisões monocráticas, sem a formação de uma jurisprudência consistente sobre as fake news. Privilegiando a liberdade de expressão e a autonomia dos eleitores para se informarem, a corte sequer tocou em pontos como o discurso de ódio e a proteção de dados pessoais pelas plataformas digitais. O TSE teve a oportunidade de avaliar mais a fundo o abuso de poder econômico e o uso abusivo dos meios de comunicação social pela chapa presidencial vencedora em 2018, nos termos do artigo 22 da LC nº 64/90, em processos abertos por conta do disparo em massa de mensagens desinformativas, contratadas em favor daquela chapa por pessoas jurídicas, inclusive. Entretanto, em fevereiro deste ano, as ações de investigação judicial eleitoral (Aijes 0601779-05 e 0601782-57) sobre o tema culminaram em um paradoxo: entendendo que não caberia dentro daquele tipo de procedimento determinar a realização de maiores providências investigativas, a maioria da corte decidiu pela absolvição da chapa presidencial eleita por falta de provas sobre os disparos em massa de mensagens digitais no pleito de 2018 [3]. Já neste mês, o TSE decidiu pela instauração de um inquérito administrativo para investigar diversos crimes envolvidos em estratégias de comunicação para o ataque à legitimidade das eleições e à higidez das urnas eletrônicas. Uma sanção possível é a inelegibilidade do atual presidente da República.

Entretanto, é preciso notar a precariedade da institucionalização da Justiça Eleitoral enquanto um ramo que, estruturado com autonomia política e estrutura organizacional independente, fosse capaz de efetivamente julgar conflitos e até cassar mandatos, inclusive das mais altas autoridades da República. Nos tribunais eleitorais (regionais, mas também no TSE) há juízes que não contam com a garantia da vitaliciedade (como se os casos que julgam não fossem especialmente graves, demandando tal proteção em favor da imparcialidade); os cargos são rotativos, a jurisprudência é volátil e, uma vez terminado seu mandato, os ex-magistrados podem atuar como advogados perante a própria corte onde foram juízes, sem qualquer quarentena [4].

Diante de sua fragilidade jurisdicional (teria o TSE condições efetivas de cassar a chapa presidencial, se comprovados os fatos aos quais se imputa tal sanção?), conseguirá o tribunal convencer a todos de seus efetivos know-how e independência enquanto gestor do procedimento eleitoral? Para restaurar a legitimação da democracia pelo procedimento eleitoral, bastará àquela corte liderar campanhas informativas aos eleitores e tentativas de "diálogo" com os próprios predadores da democracia? A "nova República" dependerá mais uma vez dos grupos políticos fisiológicos, clientelistas e oligárquicos como garantes da democracia contra o autoritarismo? Ou a precariedade do Direito — da legislação aplicável, de uma jurisprudência consolidada e da autoridade e autonomia institucional da Justiça Eleitoral — fragilizará também a aceitação dos resultados eleitorais?

Fato é que, ao lado de sua função jurisdicional precária, a Justiça Eleitoral, em sua função administrativa, é exemplar na organização do processo eleitoral e garantia de sua lisura. Com a derrota na Câmara dos Deputados da PEC que instituía o voto impresso, é a hora de reforçar a legitimação do processo eleitoral nos moldes atuais. Curiosamente, a verdade é o contrário do que propala o atual governo federal: muito cauteloso e discreto em sua atuação jurisdicional (contra a chapa eleita, inclusive), o TSE é altamente competente em seu papel administrativo — de modo que as urnas eletrônicas puderam sancionar até mesmo um candidato que, predatoriamente, desautoriza os procedimentos que legitimaram sua própria eleição. Se nas eleições municipais de 2020 a Justiça Eleitoral já ensaiou algumas iniciativas pedagógicas de combate à desinformação, seu verdadeiro teste de resistência será no próximo ano.

 


[1] AMATO, Lucas Fucci. Democracia, voto e representação: contextos e trajetórias, instituições e distorções. In: VILLAS BÔAS FILHO, Orlando; FRANCISCO, José Carlos (Orgs.). Crise democrática e suas instituições de garantia. São Paulo: Eseni, 2021.

[2] AMATO, Lucas Fucci. Fake news: regulação ou metarregulação? Revista de Informação Legislativa, v. 58, n. 230, p. 29-53, 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p29

[3] SABA, Diana; AMATO, Lucas Fucci; BARROS, Marco Antonio Loschiavo Leme de; PONCE, Paula. Fake News e Eleições: estudo sociojurídico sobre política, comunicação digital e regulação no Brasil. Porto Alegre: Fi, 2021. Disponível em: https://www.editorafi.com/203fakenews

[4] CARVALHO RAMOS, André. Posfácio. In: SABA, Diana; AMATO, Lucas Fucci; BARROS, Marco Antonio Loschiavo Leme de; PONCE, Paula. Fake News e Eleições: estudo sociojurídico sobre política, comunicação digital e regulação no Brasil. Porto Alegre: Fi, 2021. Disponível em: https://www.editorafi.com/203fakenews

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  • é livre-docente pela Faculdade de Direito da USP, foi pesquisador visitante na Harvard Law School (EUA) e na Universidade de Oxford (Inglaterra) e é autor de Inovações Constitucionais: direitos e poderes (Casa do Direito, 2018).

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