Diário de Classe

Sobre o Direito e os desacordos

Autor

  • Gilberto Morbach

    é doutorando e mestre em Direito summa cum laude pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos como bolsista do CNPq editor do Estado da Arte (Estadão) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Iris Murdoch Society.

14 de agosto de 2021, 8h00

"Somos muitos, e discordamos sobre Justiça". Isso quer dizer que "não apenas discordamos sobre a existência de Deus e o sentido da vida. Discordamos também sobre o que é que conta como termos justos de cooperação entre pessoas que discordam sobre a existência de Deus e o sentido da vida" [1]. São essas as palavras que abrem a obra hoje recomendada: "Law and Disagreement", escrita por Jeremy Waldron em 1999. Duas décadas depois, em sociedades cada vez mais pluralistas, fragmentadas, divididas, as palavras de Waldron parecem fazer ainda mais sentido.

ConJur
Não é difícil perceber, afinal, por que "Law and Disagreement" é uma obra fundamental. Nossos disagreements — em tempos de uma tão discutida "crise da democracia" — são um elemento que define nossas circunstâncias políticas. Mas e law? Onde o Direito entra nisso? Por que essa é uma obra fundamental para a teoria do Direito? A explicação é convincente, é oferecida pelo próprio Waldron, e é o que serve de premissa principal do livro: o Direito, sobretudo em um contexto de democracia liberal, é o critério que torna possível nossa ação em face desses desacordos profundos. Sendo assim, sustenta Waldron, é (também) o papel da teoria do direito refletir, de forma séria e genuína, não apenas sobre a natureza do Direito enquanto fenômeno, mas também sobre legitimidade política, interpretação, autoridade, civismo e accountability — e accountability mútua, isto é, um dever e direito e de responsabilidade e responsabilização que devemos e temos uns para com os outros como reivindicação, enquanto cidadãos e em face de indivíduos em posição de poder.

Como deve, então, o Direito responder a esses desacordos? Qual deve ser o papel da legislação? Qual deve ser a tarefa das cortes? Qual deve ser a função das cortes com relação à legislação? Na exata medida em que desacordos profundos sobre Justiça são rotina, e cada vez mais, não basta pensar sobre o papel do Direito em sociedades abstratas, estruturadas hipoteticamente a partir de princípios de justiça genericamente estabelecidos a priori. Precisamos pensar sobre legalidade, sobre raciocínio e interpretação judicial, sobre as relações entre Direito e moralidade, Direito e metaética, sobre o império da lei à luz das circunstâncias que formam a realidade de nosso presente: a de cidadãos que não compartilham necessariamente, ou mesmo com frequência, a mesma visão sobre valores morais, sobre princípios, sobre concepções do que significa uma boa vida.

As decisões políticas são, em última instância, nossas decisões. E elas são tomadas, e reivindicam sua autoridade, não apesar, mas em razão e em face de todos nossos desacordos políticos e morais. É com base nisso, e com o rigor analítico que lhe é marca, que Waldron responde às importantes perguntas levantadas pela filosofia do Direito. Suas respostas vêm sempre a partir de uma perspectiva teórica que se propõe, assumidamente, uma teoria democrática do Direito.

"Estou interessado", diz Waldron, "em alguns elementos característicos do direito em uma democracia"; não se trata de uma "análise do tipo gênero/espécie", mas, sim, de demonstrar "como alguns dos elementos e teoremas enfatizadas pela abordagem eminentemente analítica do direito materializam-se em uma teoria democrática", de modo que, assim, dentro desse contexto, o verdadeiro sentido desses elementos teóricos, outrora demasiadamente abstratos, pode ser demonstrado [2].

No Brasil, Lenio Streck é exemplo de um autor que revisita alguns dos insights de Waldron para propor algumas respostas em diálogo com nosso tão particular e característico contexto institucional. Streck já se notabilizou — em muitos de seus textos aqui na ConJur, inclusive — por trazer um exemplo clássico de Alasdair MacIntyre, filósofo escocês, para dizer que, hoje, nos comportamos como emotivistas; isto é, comportamo-nos como se a tese metaética do emotivismo estivesse correta ao dispor que juízos morais, juízos de valor, são (meras) expressões de preferência, de atitude, de sentimentos ou disposições subjetivas [3].

MacIntyre diz que o que mais chama atenção nos enunciados morais contemporâneos é o fato de que esse tipo de proposição é utilizado precisamente para expressar desacordos. Por sua vez, o que mais chama atenção nos debates nos quais esses desacordos são expostos é seu caráter interminável — não apenas no sentido de que seguem "on and on and on" (embora o filósofo reconheça ser também esse o caso), mas também pelo fato de que, aparentemente, não se encontra qualquer termo possível nesses debates; isto é, "parece não haver qualquer meio racional pelo qual se possa assegurar um acordo moral em nossa cultura" [4].

Feita essa digressão, o ponto aqui é quem diferentemente de MacIntyre — que encontra suas respostas num retorno à ética das virtudes numa versão que muitos apontam como comunitarista (embora MacIntyre rejeite o rótulo) —, Streck, como Waldron, propõe que, em uma democracia, o Direito tem a tarefa institucional de oferecer os critérios a partir dos quais esses desacordos podem, senão serem resolvidos, coexistir num mínimo grau de respeito e tolerância. É aqui que fica claro por que, na concepção de Streck — que também é uma concepção democrática, assumidamente hermenêutica e interpretativa —, o Direito e o império da lei são tidos como condição de possibilidade para a própria ideia de democracia. Se se diz que a teoria de Streck não é uma teoria analítica neutra, é verdade: a crítica hermenêutica do Direito jamais pretendeu divorciar o conceito de Direito de uma ideia de república, e é por isso que, na CHD, a teoria do Direito passa também por um engajamento com esse ideal normativo.

Daí a insistência de Streck de que levemos o Direito a sério: se ele é o que temos de melhor (ou de menos ruim, como queiram) em uma sociedade na qual as circunstâncias do pluralismo se impõem, é preciso que ele seja respeitado à luz dos princípios mesmos que o constituem enquanto direito em sociedades democráticas — por cidadãos e, fundamentalmente, por autoridades públicas. Se uma democracia se pretende digna do nome, e se em democracias que se pretendem dignas do nome é o Direito que resolve nossos desacordos, não é possível que sua autoridade enquanto fenômeno próprio e autônomo seja desconsiderada por aqueles que têm o dever de sustentá-lo, interpretá-lo, aplicá-lo. O Direito é incompatível com o poder arbitrário; o poder arbitrário é incompatível com o Direito.

A meu juízo, devo assumir aqui, Waldron e Streck, cada um a seu modo, têm méritos gigantescos nos fundamentos de suas teorias; mais do que isso, fundamentalmente, suas reflexões parecem-me cada vez mais urgentes — sobretudo quando, aparentemente, comportamo-nos todos como se o emotivismo fosse verdadeiro. Evidentemente, caberá agora ao leitor julgar por si próprio se, de fato, eles têm alguma razão no que dizem sobre o direito e sobre a teoria do direito.

É bem possível, provável, que muitos discordem. Mas talvez seja exatamente esse o ponto.

 


[1] Waldron, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford University Press, 1999, p. 01.

[2] "I am interested in some distinctive features of law in a democracy. But instead of a straight genus/species analysis, I will show how some of the elements and theorems that are emphasized in the general analytic study of law come to life in democratic jurisprudence. I will argue that we can see the point of them in that context, whereas they seem rather mysterious abstractions in the context of the most general jurisprudential inquiry". WALDRON, Jeremy. Can There Be a Democratic Jurisprudence? Emory Law Journal, vol. 58, n. 03, 2009, pp. 675-712.

[3] O emotivismo foi desenvolvido ao longo da tradição metaética em diferentes versões, algumas mais, outras menos sofisticadas. Para A. J. Ayer, por exemplo, proposições morais em nada diferir-se-iam de outras expressões meramente emocionais; juízos éticos ou estéticos não seriam, pois, passíveis de verificação, uma vez que completamente subjetivos. Para Richard Hare, esses juízos, embora subjetivos, têm uma pretensão de universalização, de modo que os juízos morais expressariam um tipo de comando generalizado — aqui, pois, uma explicação sintetizada daquilo que, em metaética, viria a ser chamado de prescritivismo. A explicação de Hare é mais sofisticada, mas é tão cética quanto a de Ayer: pretensão de prescrição universal à parte, o juízo ainda assim não é candidato à verdade ou falsidade. Cf. AYER, A. J. Language, Truth and Logic. Londres: Penguin, 1990; HARE, Richard M. The Language of Morals. Oxford: Clarendon Press, 1952.

[4] MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory. Londres: Bloomsbury, 2007, p. 08.

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