Opinião

Vieses cognitivos que influenciam no acordo de colaboração premiada - parte 2

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12 de agosto de 2021, 18h46

Continua parte 1

Em um estudo recente, Allison Redlich, Stephanos Bibas, Vanessa Edkins e Stephanie Madon afirmam que aproximadamente 95% das condenações no sistema penal norte-americano decorrem de acordos com a promotoria nos quais os réus se declaram culpados. Nesses casos, não existe sequer o embate de argumentos entre acusação e defesa perante o Judiciário. Explicam ainda que não são raras as situações em que pessoas inocentes aceitam esses acordos e assumem a culpa por crimes que não cometeram. Como exemplo, citam o caso de Joseph Buffey que se declarou culpado por roubar e estuprar uma mulher idosa em troca do arquivamento de outras acusações e da possibilidade de cumprir as penas simultaneamente, em vez de consecutivamente. Em 2015, a Suprema Corte da Virgínia Ocidental permitiu que Buffey retirasse a confissão de culpa que fizera 13 anos antes, pois restou provado que ele não tivera acesso ao exame de DNA que o excluia como autor do crime[23].

Spacca
O advogado Cristiano Zanin Martins

Para esses autores, a tomada de decisão em aceitar um acordo de colaboração premiada leva em consideração as consequências mais imediatas, não avaliando de forma clara as consequências indiretas. Ou seja, os indivíduos se concentram nos ganhos de curto prazo que uma declaração de culpa proporciona, como sair da prisão ou ter uma pena mais branda e desconsideram as consequências de longo prazo de tal decisão, como renunciar a seus direitos de julgamento. Outros fatores que os acusados consideram para a formalização um acordo de colaboração premiada são os possíveis acordos de outros suspeitos de integrar a organização criminosa, assim como a pressão exercida pelas autoridades públicas de uma punição mais severa[24].

Rebecca Hollader-Blumoff, por sua vez, esclarece que as pesquisas em psicologia sobre a justiça negociada têm se dedicado, entre a década de 1970 e o início dos anos 2000, ao exame de como os indivíduos processam as informações, os vieses cognitivos no processamento de dados, que são certamente uma ameaça ao modelo econômico racional de negociação de pena. A autora destaca, em sua pesquisa, dois pontos que podem reforçar os vieses congnitivos: a motivação epistêmica e a identidade de grupo[25].

Motivação epistêmica, de acordo com Rebecca Hollader-Blumoff, seria a necessidade de se adquirir e processar sistematicamente as informações. Pessoas com alta motivação sistêmica precisam de muitas informações antes de fechar um negócio, enquanto que pessoas com baixa motivação epistêmica tendem a fechar negócios com poucas informações. Alguns fatores situacionais podem incrementar ou diminuir a motivação epistêmica. Pressão temporal e fadiga são fatores que diminuem a motivação epistêmica, fazendo com que as pessoas fechem os acordos sem possuir todas as informações necessárias[26].

Já a identificação com um grupo, explica Rebecca Hollader-Blumoff, desempenha um papel importante na forma como as pessoas percebem e dão sentido ao mundo ao seu redor. Assim, promotores pertencem a um grupo e defensores a outro. Dependendo da especialização pela matéria, eles também podem se dividir, mas dentro do espectro processual o promotor enxerga o defensor e o réu como pertencentes ao outro grupo e vice-versa. O fato é que o ser humano vê os indivíduos do seu próprio grupo como multidimensionais, enquanto os indivíduos do grupo externo são vistos como homogêneos. Assim, a informação vinda da outra parte, por pertencer ao outro grupo, tem maior chance de ser processada pelo cérebro de modo tendencioso, principalmente por meio do uso de estereótipos. Os estereótipos atuam como um filtro por meio do qual as informações são processadas e codificadas na memória. Nesse sentido, uma mesma informação pode ser entendida de duas formas distintas dependendo de quem as enviou, se pertencente ao seu grupo ou não. Desse modo, dentro da negociação há maior possibilidade de o réu entender a fala do promotor de modo preconcebido, por meio de um esterótipo, e vice-versa, pois se trata de um viés cognitivo que atinge a todos[27].

Vê-se, portanto, que o estudo dos vieses cognitivos que atuam no processamento das informações é de fundamental importância para a compreensão das razões que levam um indivíduo a formalizar um acordo de colaboração premiada. Isso porque esse acordo envolve um grande desafio psicológico e nem de longe representa uma escolha puramente racional.

Dessa forma, para além dos problemas jurídicos inerentes à colaboração premiada e da forma como o instituto está sendo utilizado — ou mal utilizado — é preciso fazer uma avaliação caso a caso sobre os vieses cognitivos incidentes na delação, inclusive para aferir a credibilidade do material e se ele efetivamente pode desenhar a única função que lhe é destinada: auxiliar na busca de obtenção de provas[i].

Essa avaliação pode ser realizada por Psicólogos Forenses que podem dar suporte aos Advogados de Defesa. A atuação conjunta desses profissionais é muito comum em alguns países, como nos Estados Unidos e no Brasil começa a ser utilizada com êxito, sobretudo na análise de delações premiadas e instituto correlatos como os acordos de leniência.

Referências bibliográficas
BORDENS, Kenneth S.; BASSETT, John. The plea bargaining process from the defendant's perspective: A field investigation. Basic and Applied Social Psychology, v. 6, n. 2, p. 93-110, 1985.
IOCCARI, Deysi. Operação Lava Jato: escândalo, agendamento e enquadramento. Revista Alterjor, v. 12, n. 2, p. 58-78, 2015.
COVEY, Russell. Reconsidering the relationship between cognitive psychology and plea bargaining. Marquette Law Review, v. 91, p. 213-247, 2007.
GIACOMOLLI, Nereu José; LORA, Deise Helena Krantz. Liberdade de expressão, informação e de imprensa: os limites da publicidade no contexto da colaboração premiada. Delictae, v. 3, n. 4, p. 304-342, 2018.
HOLLANDER-BLUMOFF, Rebecca. Social psychology, information processing, and plea bargaining. Marquette Law Review, v. 91, p. 163-182, 2007.
KELLOUGH, Gail; WORTLEY, Scot. Remand for plea: bail decisions and plea bargaining as commensurate decisions. British Journal of Criminology, v. 42, p. 186-210, 2002.
MADON, Stephanie; GUYLL, Max; SCHERR, Kyle C.; GREATHOUSE, Sarah; WELLS, Gary L. Temporal discounting: the differential effect of proximal and distal consequences on confession decisions. Law and Human Behavior, v. 36, n. 1, p. 13-20, 2012.
POLL, Roberta Eggert; CASTILHOS, Aline Pires de Souza Machado. Devido processo penal midiático: análise da opinião pública frente à punição. Prisma Juridico, v. 17, n. 1, p. 39-57, 2018.
REDLICH, Allison D.; BIBAS, Stephanos; EDKINS, Vanessa A.; MADON, Stephanie. The psychology of defendant plea decision making. American Psychologist, v. 72, n. 4, p. 339-352, 2017.

[1] COVEY, Russell. Reconsidering the relationship between cognitive psychology and plea bargaining. Marquette Law Review, v. 91, 2007, p. 216.

[2] Ibidem. Mesma página.

[3] Ibidem. p. 218.

[4] Ibidem. p. 219.

[5] Ibidem. p. 221.

[6] MADON, Stephanie; GUYLL, Max; SCHERR, Kyle C.; GREATHOUSE, Sarah; WELLS, Gary L. Temporal discounting: the differential effect of proximal and distal consequences on confession decisions. Law and Human Behavior, v. 36, n. 1, p. 13-20, 2012. p. 18.

[7] COVEY, Russell. Op. cit. p. 215-216.

[8] Ibidem. p. 68-69.

[9] Ibidem. p. 233.

[10] Ibidem. p. 234.

[11] Ibidem. Mesma página.

[12] Ibidem. p. 240.

[13] KELLOUGH, Gail; WORTLEY, Scot. Remand for plea: bail decisions and plea bargaining as commensurate decisions. British Journal of Criminology, v. 42, p. 186-210, 2002. p. 199.

[14] COVEY, Russell. Op. cit. p. 246.

[15] BORDENS, Kenneth S.; BASSETT, John. The plea bargaining process from the defendant's perspective: A field investigation. Basic and Applied Social Psychology, v. 6, n. 2, p. 93-110, 1985. p. 95.

[16] POLL, Roberta Eggert; CASTILHOS, Aline Pires de Souza Machado. Devido processo penal midiático: análise da opinião pública frente à punição. Prisma Juridico, v. 17, n. 1, p. 39-57, 2018, p. 50.

[17] Ibidem. p. 51.

[18] GIACOMOLLI, Nereu José; LORA, Deise Helena Krantz. Liberdade de expressão, informação e de imprensa: os limites da publicidade no contexto da colaboração premiada. Delictae, v. 3, n. 4, 2018, p. 323.

[19] CIOCCARI, Deysi. Operação Lava Jato: escândalo, agendamento e enquadramento. Revista Alterjor, v. 12, n. 2, p. 58-78, 2015. p. 60.

[20] Ibidem. Mesma página.

[21] Ibidem. Mesma página.

[22] Ibidem. p. 76.

[23] REDLICH, Allison D.; BIBAS, Stephanos; EDKINS, Vanessa A.; MADON, Stephanie. The psychology of defendant plea decision making. American Psychologist, v. 72, n. 4, p. 339-352, 2017. P. 339.

[24] Ibidem. p. 344-345.

[25] HOLLANDER-BLUMOFF, Rebecca. Social psychology, information processing, and plea bargaining. Marquette Law Review, v. 91, p. 163-182, 2007. p. 174.

[26] Ibidem. Mesma página

[27] Ibidem. p. 179.


[i] De acordo com o art. 4º, § 16, da Lei nº 12.8560/13, a delação premiada não pode ser utilizada para o deferimento de medidas cautelares, o recebimento de denúncia ou queixa e tampouco para impor condenações.

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