Opinião

Vieses cognitivos que influenciam no acordo de colaboração premiada

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12 de agosto de 2021, 18h34

A teoria econômica sobre a aceitação ou não do acordo de colaboração premiada leva em conta decisões racionais dos indivíduos a respeito de ganhos e perdas. Essa teoria pode ser assim descrita: os réus buscam racionalmente minimizar a punição. Assim, optam pela celebração do acordo de colaboração sempre que a punição esperada resultante de uma colaboração for menor do que a sentença de julgamento esperada multiplicada pela probabilidade de condenação. Ou seja, segundo a teoria econômica, o sujeito compara o acordo com o possível desfecho do processo e faz uma escolha puramente racional.

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O advogado Cristiano Zanin Martins

No entanto, Russell Covey[1] explica que a resposta quase nunca é puramente racional. Ou seja, via de regra, não obedece aos imperativos da teoria econômica. Existem aspectos psicológicos que são extremamente importantes para a tomada dessas decisões. Embora simples de calcular no papel, as incertezas inerentes ao litígio criminal tornam a aplicação prática da fórmula deveras problemática.

O autor explica que existem diversos vieses cognitivos que, geralmente, impedem a celebração da colaboração premiada. O primeiro desses vieses é o da limitação da racionalidade. As pessoas não são capazes de analisar de forma perfeitamente racional a situação e alcançar a máxima utilidade no acordo. Uma proposta que satisfaça o indivíduo, que seja compreendida como boa o suficiente, tende a encerrar a busca por uma solução ótima. Esse viés cognitivo, por si só, é suficiente para derrubar uma teoria puramente econômica da colaboração premiada[2].

Além disso, para se avaliar se uma proposta é efetivamente ótima, as infomações fornecidas precisam ser confiáveis e integralmente fornecidas pela outra parte. Ocorre que isso não é possível na prática. Uma parte não conta tudo o que sabe a outra e por vezes fornece informações que não são verdadeiras nesse processo de negociação.

Outrossim, existe uma infinidade de variáveis dentro do processo penal, que vão desde a fidedignidade de testemunhos, passando pela correção e validade de provas técnicas, até chegar à inclinação psicológica do magistrado sobre casos da mesma espécie.

O segundo viés se refere ao excesso de confiança e ao auto-serviço[3]. Via de regra, ao analisar um risco, as pessoas gozam de excesso de confiança. A maioria das pessoas pensa que é melhor motorista que os demais, que é mais esperto e mais ético. Da mesma forma, as pessoas normalmente avaliam as informações de forma seletiva, dando mais atenção e crédito às informações que validam suas crenças pré-existentes e tendem a ignorar aquelas que são contrárias. Por isso mesmo que não é raro que uma mesma prova apresentada em juízo seja considerada favorável por ambas as partes. Não se está falando aqui como estratégia jurídica de cada uma defender o seu lado da questão e puxar a sardinha para o seu lado, mas de efetivamente perceber, processar e reconhecer, por meio de mecanismos cognitivos, a informação como lhe sendo favorável.

Um terceiro viés se refere à aversão à perda[4]. Como a maioria das pessoas tem aversão à perda, elas tendem a achar que devem escolher uma opção em que não perderão nada. Assim, a aceitação do acordo é a troca de uma certa perda (uma condenação e punição) por uma chance de nenhuma perda (uma absolvição) acompanhada por uma chance de uma perda maior (uma condenação em julgamento e sentença ampliada). A pesquisa cognitiva sugere que, sendo iguais as chances, a maioria das pessoas prefere apostar na exoneração total no julgamento, em vez de aceitar uma certa, embora provavelmente menor, punição decorrente da aceitação do acordo.

Existe ainda um viés cognitivo de oferecer um sobredesconto na avaliação temporal[5] o que significa aceitar-se um acordo com um desconto excessivo se o benefício puder ser imediatamente usufruído. Nesse sentido, Stephanie Madon, Max Guyll, Kyle Scherr, Sarah Greathouse e Gary Wells[6] demonstraram que as decisões de confissão dos suspeitos geralmente levam em conta principalmente as consequências imediatas, deixando de lado as consequências indiretas ou temporalmente mais longínquas. Mais especificamente, suas descobertas sugerem que consequências imediatas (como isolamento, promessas de redução da pena ou angústia pelo fim de um longo interrogatório) influenciam as decisões de confissão dos suspeitos mais fortemente do que consequências mais distantes (como condenação posterior ou prisão).

Assim, segundo Russell Covey, para convencer um indivíduo a concordar com um acordo judicial, em outras palavras, o membro do Ministério Público ou o policial precisa superar esses vieses. Para isso, utiliza de três principais instrumentos: propostas de acordo extremamente vantajosas, a detenção antes do julgamento e a própria brutalidade procedimental da máquina judicial[7].

Nos Estados Unidos, os descontos das penas oferecidos pela promotoria são extremamente expressivos. Embora a pessoa possa ser acusada de vários crimes e cumprir várias penas, os acordos são comumente fechados em relação a somente um tipo, de menor expressão, com uma redução de pena considerável. Supondo, que uma pessoa possa ser acusada de três crimes com penas prováveis de 15, 10 e 5 anos, totalizando uma pena possível de 30 anos, o acordo é fechado com desconto em relação ao crime de 5 anos, podendo ser de, por exemplo, 50%, totalizando 2 anos e meio de pena. O desconto pode ser ainda maior se o réu for primário[8].

Em suma, há ampla evidência para apoiar o argumento de que réus criminais recebem rotineiramente "bons negócios". Embora uma variedade de vieses cognitivos indubitavelmente levem os réus a preferir o julgamento às confissões de culpa, as vantagens proporcionadas pelos acordos fazem as confissões de culpa parecerem não apenas melhores quantitativamente, mas melhores em ordens de magnitude. Mesmo réus fortemente avessos a perdas podem começar a duvidar da sensatez de resistir a julgamento em face dessas enormes diferenças[9].

Segundo Russell Covey, uma estratégia que a Promotoria se utiliza para minar a auto-confiança do acusado e persuadi-lo a aceitar o acordo consiste em demonstrar que existe uma maior probabilidade de condenação do que a que o acusado inicialmente imagina[10]. Para o autor, a obrigação limitada do Ministério Público de compartilhar evidências com o réu permite que ele blefe mais durante o jogo[11], assim como encarcerá-lo antes do julgamento também é outra medida que mina sua confiança, pois o efeito psicológico de estar encarcerado antes do julgamento é poderoso[12].

O fato de estar detido [ou com a possibilidade de detenção], no momento da formalização do acordo de colaboração premiada, influencia fortemente a decisão do réu aceitar ou não o acordo. Segundo Gail Kellough e Scot Wortley, que analisaram os resultados de mais de 1.800 casos criminais, os réus que se encontravam detidos tinham 2,5 vezes mais chances de celebrar um acordo, declarando-se culpados, do que aqueles que estavam soltos[13].

Russell Covey adverte ainda que alegar que o juiz que julgará o caso é muito rigoroso também mina a confiança do indivíduo[14]. Sobre esse tema, Kenneth Bordens e John Bassett entrevistaram indivíduos condenados sobre suas razões para aceitar um acordo judicial e a pressão do promotor foi um dos fatores mais citados. A pressão incluía a ameaça de acusação por muitos crimes, a informação de que a punição seria severa e reprimendas pela não aceitação das vezes anteriores em que o acodo foi oferecido[15].

Outro instrumento extremamente efetivo para minar a confiança do acusado é o auxílio da imprensa e da opinião pública. A estratégia recorrente no Brasil de vazar o conteúdo de delações de outros envolvidos na investigação para a mídia, influenciando diretamente a opinião pública, afeta de sobremaneira a tomada de decisão pela aceitação ou não do acordo de colaboração premiada, seja por motivos racionais da teoria econômica, seja por motivos psicológicos. A opinião pública afeta diretamente na percepção de um sujeito sobre sua real situação. Assim, se todos acreditam que ele seja culpado por alguma coisa, ele tende a achar que sua chance de ser condenado é grande.

Roberta Eggert Poll e Aline Pires de Souza Machado Castilhos explicam que a divulgação de informações “faz com que a sociedade se posicione, de forma geral, a favor da mídia, julgando o caso antes mesmo da análise do Poder Judiciário”[16]. Esclarecem as autoras que as mídias sociais ampliam a pressão de caça dos inimigos, transformando o telespectador em um participante ativo do processo. Além disso, as informações divulgadas pela mídia muitas vezes possuem uma aparência científica, adquirida pelo número de vezes e pela força com que são emitidas, mas, na verdade, estão total­mente descompromissadas com o método aquisitivo da informação.

Assim, concluem essas autoras que “a cultura do medo é difundida via coberturas midiáticas sensacionalistas que trazem soluções de ordem policial para problemas sociais, a qual separa de forma simplista os personagens envolvidos em ‘bons’ e ‘maus’, estes sempre referidos como “eles”, a fim de criar um distanciamento com o público. Ademais, distorce a realidade para que a preferência do público seja pela versão oficial acusatória”[17]. Essa pressão midiática afeta, sem dúvida, a todos os envolvidos no processo, em especial os colaboradores que se sentem obrigados a colaborar com a busca da “verdade” e a dar uma resposta rápida à sociedade.

Nereu José Giacomolli e Deise Helena Krantz Lora ressaltam ainda que a revelação do teor de um acordo em que um investigado delata outro busca esmaecer a presunção de inocência desse segundo, cooptando a opinião pública, possibilitando “julgamentos pela sociedade, que sem diferenciar unilateralidade e contraditório, podem representar danos substanciais ao processo penal ainda não iniciado”[18].

Interessante notar que a forma como é apresentada a notícia na mídia para vender o produto informação também leva em conta aspectos psicológicos. A Doutora em Ciências Sociais Deysi Cioccari[19], ao estudar como a operação Lava Jato foi tratada especificamente pela Folha de São Paulo entre março de 2014 e março de 2015, concluiu que foram utilizadas estratégias conhecidas como agendamento e enquadramento para reforçar ideias. Até mesmo as fotos escolhidas tiveram a intenção de reforçar esse padrão.

Segundo Deysi Cioccari, o agendamento[20] é o processo pelo qual a escolha de uma pauta pelos grandes meios de comunicação em massa agenda o público, na medida em que é capaz de induzir que esse tema seja objeto das conversas cotidianas das pessoas. A mídia enquanto janela para o mundo determina, assim, o mapa cognitivo das pessoas. Desse modo, o consumidor de notícias tende a considerar mais relevante a notícia que é veiculada com mais destaque. O enquadramento[21], por sua vez, é o enfoque da abordagem daquele assunto, composta pela seleção, ênfase e apresentação do que existe, do que acontece e do que importa.

A autora pondera que a mídia não foi mera reprodutora de conteúdos, mas protagonista para a configuração do escândalo político, ocupando papel central[22].

Por isso que mesmo em casos que a lógica econômica não recomenda a aceitação do acordo pelo investigado, ele pode vir a aceitar o acordo de colaboração premiada em decorrência desses aspectos que o desestruturam psicologicamente.

Ou seja, a atitude inconstitucional tem o intuito de desestabilizar psicologicamente o indivíduo. Sua vontade encontra-se viciada em decorrência de um desrespeito a um dever constitucional. Assim, acreditamos que muitos acordos podem ser anulados se os colaboradores assim entenderem, não só pelo desrespeito à norma constitucional, mas também porque a vontade foi manipulada e sua declaração de vontade não foi plena.

Continua parte 2

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