Interesse Público

Duas faces do poder cautelar dos Tribunais de Contas

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12 de agosto de 2021, 8h00

O texto que trago à apreciação dos leitores, a versar a questão do poder cautelar dos Tribunais de Contas no Brasil, foi motivado por dois excelentes artigos que li recentemente.

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O primeiro, de autoria de André Rosilho e Eduardo Jordão, intitulado "STF e a extrapolação qualificada de competências no controle de contas", publicado no Jota em 19 de maio deste ano [1]; o segundo, de autoria de Flávio Garcia Cabral, sob o título "O que é (ou deve ser) o poder geral de cautela do Tribunal de Contas da União?", publicado nesta ConJur no dia 16 de junho [2].

A temática enfrentada pelos autores é da maior relevância e concerne à sensível relação dos órgãos de controle externo com a Administração Pública. Há um entrelaçamento de competências entre o Tribunal de Contas e o Poder Legislativo nessa matéria, cujas balizadas encontram-se definidas no texto constitucional (artigos 71 e 72).

A propósito, a nova Lei de Licitações e Contratos (Lei 14.133/21), notadamente pela regra do §1º do artigo 171, reconhece aos Tribunais de Contas a prerrogativa de determinarem a suspensão cautelar de procedimentos licitatórios realizados pela administração pública de todos os poderes. O dispositivo guarda alguma afinidade com o artigo 113, caput e §2º, da Lei 8.666/93, porém o legislador agora foi explícito quanto ao poder de suspensão cautelar de procedimentos licitatórios (não dos contratos) pelos Tribunais de Contas [3].

No âmbito do STF, como lembram Rosilho, Jordão e Cabral, o leading case sobre o tema foi o Mandado de Segurança nº 24.510 [4], relatado pela ministra Ellen Gracie. Na oportunidade, decidiu o STF, com esteio na teoria dos poderes implícitos, que os Tribunais de Contas possuíam competência para expedirem medidas cautelares tendentes a sustar procedimentos licitatórios, independente da fixação de prazo para o exato cumprimento da lei.

A teoria dos poderes implícitos foi construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos, no famoso caso McCulloch v. Maryland (1819), e se alicerça na ideia de que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa no deferimento implícito, também a ele, dos meios próprios à integral consecução dos fins prescritos pelo constituinte. Bem verdade que a referida teoria foi concedida a propósito das competências legislativas (implícitas) da União frente aos estados, com base no regime constitucional federativo dos EUA, mas o fato é que ela já foi largamente utilizada pelo STF para justificar poderes escondidos de órgãos como o Ministério Público, o Conselho Nacional de Justiça e o Tribunal de Contas.

Evidentemente, o reconhecimento pelo STF de implícitas competências a partir do texto constitucional a determinado órgão estatal não há de ser seletivo e deve baldear também para sítios em que haja patente afinidade temática e lógica aos precedentes, a exemplo do MS 24.510: ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio.

Assim sendo, do mesmo modo que o artigo 71, IX, da Constituição atribui aos Tribunais de Contas, na compreensão da Suprema Corte, a competência para sustar atos administrativos — e o procedimento licitatório é uma sucessão de atos administrativos —, por outro lado, em matéria de contratos, a Constituição não atribui aos Tribunais de Contas, pelo menos a priori, essa mesma competência (artigo 71, §1º). 

Se o contrato já estiver formalizado, o ato de sustação cautelar competirá ao Poder Legislativo (artigo 71, §1º, da Constituição), e não ao Tribunal de Contas, diz o constituinte [5]. E apenas se aquele permanecer inerte durante o prazo de 90 dias, é que se prevê que o Tribunal de Contas poderá dispor a respeito (artigo 71, §2º).

Com efeito, em matéria contratual, pelas mesmas razões de direito, uma vez verificada atuação cautelar do Tribunal de Contas, o artigo 71, §1º, da Constituição implicitamente revela competência para que o Poder Legislativo (da esfera de governo a que ambos os órgãos se filiam) possa promover contracautela (nos processos de fiscalização) [6] para determinar a subsistência do contrato, se assim julgar pertinente.

Um exemplo para esclarecer o que se diz. Suponha-se que um município fez licitação para serviços de coleta de lixo por 24 meses. E que durante a realização do certame há representação sobre sua ilegalidade ao Tribunal de Contas. O pedido de liminar é monocraticamente negado. O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas recorre ao órgão colegiado. Antes da apreciação do recurso, a licitação é concluída, o contrato assinado, e tem início a execução. Passados oito meses desde então, o Tribunal de Contas vem a apreciar o recurso do MPTC e determina a sustação do contrato, em virtude do suposto vício da licitação.

Poderia o Poder Legislativo competente, de ofício ou mediante provocação, expedir decisão de contracautela para determinar a continuidade do contrato, fundada, por exemplo, em disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), no suposto de que a suspensão do contrato desserve mais aos interesses públicos em jogo do que a sua manutenção [7]?

Ao se aplicar ao caso a dimensão dada pelo STF à teoria dos poderes implícitos, a resposta há de ser positiva… São duas faces da mesma moeda… É dizer, ressalvada a competência anulatória do Poder Judiciário [8], se o Tribunal de Contas competente emitir provimentos que determinam a suspensão da execução de contratos administrativos em vigor, o Poder Legislativo poderá ser acionado ou agir ex officio para expedir medidas de contracautela.

 


[1] "STF e a 'extrapolação qualificada' de competências no controle de contas" | JOTA Info.

[2] "O que é (ou deve ser) o poder geral de cautela do TCU?" Flávio Garcia Cabral é também monografista sobre o assunto, tendo publicado a obra Medidas Cautelares Administrativas: Regime Jurídico da Cautelaridade Administrativa. Belo Horizonte: 2021.

[3] Sobre o artigo 113, §2º da Lei 8.666/93 e a competência dos Tribunais de Contas. cf. FERRAZ, Luciano. Controle Externo das licitações e contratos administrativos. In. FREITAS, Ney (Coord.). Tribunais de Contas: Aspectos polêmicos: homenagem ao Conselheiro João Féder. Belo Horizonte: Forum, 2010. 

[4] "PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. IMPUGNAÇÃO. COMPETÊNCIA DO TCU. CAUTELARES. CONTRADITÓRIO. AUSÊNCIA DE INSTRUÇÃO. 1- Os participantes de licitação têm direito à fiel observância do procedimento estabelecido na lei e podem impugná-lo administrativa ou judicialmente. Preliminar de ilegitimidade ativa rejeitada. 2- Inexistência de direito líquido e certo. O Tribunal de Contas da União tem competência para fiscalizar procedimentos de licitação, determinar suspensão cautelar (artigos 4º e 113, § 1º e 2º da Lei nº 8.666/93), examinar editais de licitação publicados e, nos termos do artigo 276 do seu Regimento Interno, possui legitimidade para a expedição de medidas cautelares para prevenir lesão ao erário e garantir a efetividade de suas decisões). 3- A decisão encontra-se fundamentada nos documentos acostados aos autos da Representação e na legislação aplicável. 4- Violação ao contraditório e falta de instrução não caracterizadas. Denegada a ordem" (MS 24510. Relatora Min. Ellen Gracie. Tribunal Pleno. Julgamento: 19/11/2003. Publicação: 19/3/2004).

[5] Note-se que não fará diferença se a decisão do Tribunal de Contas se direciona aos pagamentos oriundos do contrato ou à não aplicação de reequilíbrio econômico decorrente de cláusulas presentes no contrato, com usualmente se tem visto. O ambiente será contratual e a competência primacial será do Poder Legislativo.

[6] Convém fazer a ressalva de que as medidas de cautela e contracautela cogitadas no texto revelam-se em processos típicos de fiscalização e não de julgamento de contas (tomada de contas especiais), distinção que é fundamental para compreender o papel dos Tribunais de Contas em cada caso. As despesas oriundas de um contrato irregular, por exemplo, podem ser apuradas pelo Tribunal de Contas em tomadas de contas especiais, advindo daí, no exame de mérito da despesa, a imputação de responsabilidades de ressarcimento e penalidades, se for o caso.

[7] As disposições da LINDB parecem iniciar um ciclo de irradiação de efeitos práticos, inaugurando (com também a nova lei de licitações e contratos) um novo panorama sobre as nulidades de atos e contratos administrativos e seus efeitos. No Acórdão 1737/2021, Rel. Min. Weder de Oliveira, o Plenário do TCU considerou que, mesmo diante da existência de irregularidades na etapa de habilitação o SESC deveria avaliar o custo-benefício da declaração de nulidade do contrato vis-à-vis a sua manutenção. Nos termos do voto do relator: "Nessa linha, retomar o certame ao estágio imediatamente anterior ao ato irregular, com eventual declaração de nulidade do ato de desclassificação e do contrato dele decorrente, pode ser mais oneroso à entidade que teria que arcar com eventual indenização à empresa contratada e custos de desmobilização. A esses argumentos acrescento que não foram apontados outros indícios de ilegalidades/irregularidades, tais como sobrepreço/superfaturamento" (Acórdão 1737/2021, rel. Min. Weder de Oliveira, j. 21-07-21).

[8] Sobre a competência do Poder Judiciário para anular decisões cautelares dos Tribunais de Contas em matéria de contratos. "DIREITO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRATO ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO PELO TRIBUNAL DE CONTAS DO DISTRITO FEDERAL. NULIDADE DO ATO. COMPETÊNCIA DA CÂMARA LEGISLATIVA DO DISTRITO FEDERAL. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. Mandado de segurança impetrado contra ato atribuído ao Presidente do Tribunal de Contas do Distrito Federal e ao Conselheiro Márcio Michel, que determinou a suspensão do contrato administrativo, celebrado com empresa especializada em engenharia para construção de novos pavilhões na CEASA/DF. 2. A Lei Orgânica do Distrito Federal contém disposição expressa no sentido de que compete ao Tribunal de Contas exercer o controle externo dos atos da Administração Pública, em decorrência do poder fiscalizatório que lhe é atribuído. 2.1. Contudo, recaindo a fiscalização sobre contratos, a competência para sustação é conferida à Câmara Legislativa do Distrito Federal, consoante artigos 78, § 1º, da Lei Orgânica do Distrito Federal, em consonância e simetria com o artigo 71, § 1º, da Constituição Federal. 3. Assim, considerando-se que a prerrogativa para suspender contratos firmados entre particulares e a Administração Pública é assegurada ao Poder Legislativo Distrital, é nulo o ato emanado da Corte de Contas e que adentra na esfera de competência da Câmara Legislativa. 4. Jurisprudência: "Em que pese o poder fiscalizatório atribuído ao Tribunal de Contas do Distrito Federal para controle externo dos atos da Administração Pública, não detém competência para sustar cautelarmente a execução de serviço contratado decorrente de contrato administrativo firmado com terceiro. 2. Compete à Câmara Legislativa do Distrito Federal suspender contratos administrativos firmados por particulares com a Administração Pública, sendo assegurado ao Tribunal de Contas do Distrito Federal proceder à sustação apenas se o Poder Legislativo local, no prazo de noventa dias, não efetivar a medida" (07059505020188070000, Relator: Getúlio de Moraes Oliveira Conselho Especial, DJE: 6/12/2018). 5. Segurança concedida" (TJ-DF – Acórdão 1173698, 07107900620188070000, Relator: JOÃO EGMONT, Conselho Especial, data de julgamento: 28/5/2019, publicado no PJe: 5/6/2019).

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