Garantias do consumo

A Lei do Superendividamento e os JECs

Autor

  • Cristiano Sobral Pinto

    é doutor em Direito professor de Direito Civil e Direito do Consumidor na Fundação Getúlio Vargas na Associação do Ministério Público do Rio de Janeiro na Fundação Escola da Defensoria Pública do Rio de Janeiro na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro no Complexo de Ensino Renato Saraiva e na Fundação do Ministério Público do Rio de Janeiro palestrante autor de diversas obras jurídicas e coordenador do Seufuturo.com.

11 de agosto de 2021, 8h00

A crise econômica brasileira se arrasta há anos e o cenário piorou com o estado de pandemia do coranavírus que atingiu os países de forma globalizada. A parcela da população que já se encontrava em uma situação de comprometimento de suas finanças e endividada se agravou, principalmente em relação aos mais vulneráveis.

São denominados pela doutrina como hipervulneráveis que são aqueles indivíduos, consumidores, que se mostram mais frágeis em relação aos fornecedores e à ação do mercado de consumo, reconhecidamente as crianças, os idosos, os portadores de deficiência, os analfabetos e aqueles que apresentam enfermidades que possam ser manifestadas ou agravadas pelo consumo de produtos ou serviços livremente comercializados e que se mostram inofensivos à maioria das pessoas.

Ao tratarmos do tema relativo ao fenômeno do superendividamento que diz respeito à impossibilidade manifesta do consumidor, cidadão, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, tendo sua capacidade de gerir as despesas pessoais e familiares totalmente comprometida [1].

Conforme dispõe o relatório "Endividamento de Risco no Brasil", publicado pelo Banco Central em junho do ano passado, cerca de 4,6 milhões de pessoas eram consideradas como devedores de risco, compreendidos os consumidores que se encontrem em inadimplemento superior a 90 dias no pagamento de empréstimos; estejam com sua renda mensal comprometida com o pagamento das dívidas acima de 50%; uso simultâneo de cheque especial, crédito pessoal e crédito rotativo; e renda mensal disponível abaixo da linha da pobreza [2]. E ainda que não exista um número total de superendividados no país, conforme consta no Mapa da Inadimplência da Serasa, eles estão entre os 62,5 milhões de brasileiros com dívidas [3].

Os motivos para que o consumidor se torne um superendividado são de natureza diversa, vão desde causas imprevisíveis, como uma situação de doença ou desemprego, ou mesmo uma compra ou contratação de um serviço de forma impensada ou deficiência informacional. Os mais atingidos são os idosos, os portadores de deficiência e os analfabetos que se mostram mais suscetíveis aos abusos cometidos nas relações de consumo realizando empréstimos, principalmente, os em consignação.

A fim de equacionar essa situação de superendividamento, tão corriqueira atualmente, foi editada a Lei n° 14.181/2021, que, além de prever a instauração de programas de educação financeira e consumo consciente, também traz previsões acerca de medidas para a ampliação das políticas de renegociação de dívidas. A norma alterou o Código de Defesa do Consumidor (CDC ou Lei n° 8.078/1990) e o Estatuto do Idoso (Lei n° 10.741/2003), representando um passo importante para a proteção dos consumidores, que têm sua vulnerabilidade agravada, prestigiando o direito e a tutela do consumidor em sua integralidade e em prol de sua dignidade e exercício de sua cidadania.

Das alterações feitas pela nova lei, interessa destacar a que inseriu os incisos VI e VII no artigo 5º, do CDC, prevendo que, para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o poder público com os seguintes instrumentos: instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natura e instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento. Tais medidas têm por objetivo facilitar e tornar mais célere o acesso do consumidor aos instrumentos de solução de conflitos junto aos seus credores, trazendo instrumentos que o poder público utilizará para providenciar a execução da Política Nacional das Relações de Consumo a ser desempenhada através dos órgãos que fazem parte do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) [4].

O artigo 6º estabelece, em seus incisos XI e XII, como direitos básicos do consumidor a revisão e repactuação das dívidas entre outras medidas na concessão do crédito, com garantia da preservação do mínimo existencial do consumidor.

No mesmo sentido, os artigos 104-A a 104-C do CDC, incluídos pela Lei do Superendividamento tratam da conciliação e do processo de repactuação. Trata-se de previsões que estabelecem um procedimento específico com a finalidade de garantir a renegociação das dívidas ao consumidor de forma consensual entre as partes. Observe:

"Artigo 104-A — A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no artigo 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.
§1º Excluem-se do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.
§2º O não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação de que trata o caput deste artigo acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória.
§3º No caso de conciliação, com qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida e terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada.
§4º Constarão do plano de pagamento referido no §3o deste artigo:
I — medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida;
II  referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso;
III
 data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes;
IV
 condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.
§5º O pedido do consumidor a que se refere o caput deste artigo não importará em declaração de insolvência civil e poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de dois anos, contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação.
Artigo 104-B 
 Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado.
§1° Serão considerados no processo por superendividamento, se for o caso, os documentos e as informações prestadas em audiência.
§2º No prazo de 15 dias, os credores citados juntarão documentos e as razões da negativa de aceder ao plano voluntário ou de renegociar.
§3º O juiz poderá nomear administrador, desde que isso não onere as partes, o qual, no prazo de até 30 dias, após cumpridas as diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos.
§4º O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual previsto no artigo 104-A deste código, em, no máximo, cinco anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180  dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.
Artigo 104-C 
 Compete concorrente e facultativamente aos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor a fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas, nos moldes do artigo 104-A deste código, no que couber, com possibilidade de o processo ser regulado por convênios específicos celebrados entre os referidos órgãos e as instituições credoras ou suas associações.
§1º Em caso de conciliação administrativa para prevenir o superendividamento do consumidor pessoa natural, os órgãos públicos poderão promover, nas reclamações individuais, audiência global de conciliação com todos os credores e, em todos os casos, facilitar a elaboração de plano de pagamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, sob a supervisão desses órgãos, sem prejuízo das demais atividades de reeducação financeira cabíveis.

§2º O acordo firmado perante os órgãos públicos de defesa do consumidor, em caso de superendividamento do consumidor pessoa natural, incluirá a data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes, bem como o condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento, especialmente a de contrair novas dívidas".

Conforme prevê a lei, o consumidor superendividado deverá buscar a Justiça do seu estado, para que seja encaminhado ao núcleo de conciliação e mediação de conflitos especializado [5]. E acompanhado ou não de um representante legal, o consumidor trará informações acerca de suas dívidas, renda, quais os credores a quem deve, sendo possível a realização da negociação em bloco, onde será realizado um plano de pagamento envolvendo todas as dívidas com todos os credores. A vantagem desse procedimento, além de ser mais célere, promove uma análise global e maior controle da situação financeira do superendividado, proporcionando maior segurança e mais transparência entre os envolvidos.

Juntamente aos Núcleos de Defesa do Consumidor (Nudecons) e aos Departamentos Estaduais de Proteção e Defesa do Consumidor (Procons) dos estados, os juizados especiais são um importante instrumento de acesso à Justiça, favorecendo o consumidor superendividado nas negociações e repactuação de suas dívidas junto aos seus credores.

Há quem entenda que a instauração no âmbito dos JECs de procedimentos de tratamento e negociação relativa ao superendividamento poderá prejudicar a atuação em outras demandas de menor complexidade, que dispensam formalidades. Destaca-se ainda que as negociações que tratam do superendividamento podem ser consideradas como uma recuperação judicial da pessoa física, e nesse contexto é inviável que sua realização seja feita de forma célere e informal, tendo em vista que o próprio procedimento requer tratamento diferenciado, além de ser novo, é complexo, envolvendo profissionais de diversas áreas, com análise da situação econômica do consumidor, reformulando toda a sua vida financeira. Portanto, tratam-se de mudanças muito importantes em matéria consumerista, no entanto, passam ao largo de serem simples.

De modo diverso, entendemos que a Lei do Superendividamento vem no sentido de facilitar o acesso à Justiça aos superendividados e a negociação de suas dívidas com os credores, o que confirma o procedimento ser realizado exatamente nos JECs, tendo em vista o seu caráter mais informal que se mostra mais receptivo ao consumidor que já se encontra em uma situação de extrema fragilidade e desconforto. Nessa medida, não teria sentido fazer com que o consumidor superendividado procure a Justiça comum, submetendo-o à vivência de uma situação ainda mais difícil, em que sabe-se que, em geral, a morosidade e as formalidades impostas podem impor mais obstáculos à solução dos conflitos.

Para que os assuntos relativos ao superendividamento sejam objeto de tratamento nos JECs requer-se a criação de um núcleo especializado onde atuem conjuntamente profissionais de áreas diversas como administradores, contadores, para a elaboração do plano de pagamento, com planilhas de cálculo etc., conforme consta no artigo 104-B, do CDC, com redação dada pela Lei do Superendividamento (Lei n° 14.181/2021), como podemos ver em algumas áreas da Justiça comum.

O artigo 104-C do CDC, apesar de apresentar-se como sendo facultativo, aumenta a acessibilidade e facilitação na solução das questões relativas ao superendividamento, especialmente porque potencializa a atuação do SNDC.

Assim, todos os envolvidos, como o Estado, seus entes e órgãos atuantes na tutela do Direito do Consumidor, deverão juntar esforços a fim de tornar efetivos os meios de busca de solução de conflitos dos superendividados, que são a parte vulnerável da relação de consumo, no sentido de realizar o princípio da dignidade da pessoa humana bem como a defesa do consumidor, direitos esses constitucionalmente garantidos (artigos 1º, inciso III e 5º, inciso XXXII).

[1] O artigo 54-A, §1º, do CDC apresenta o conceito de superendividamento, observe: "Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação".

[4] De acordo com o artigo 2º do Decreto n. 2.181/1997, integram o SNDC a Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e os demais órgãos federais, estaduais, do Distrito Federal, municipais e as entidades civis de defesa do consumidor.

[5] Alguns tribunais de Justiça como Bahia, Distrito Federal, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo já disponibilizam o serviço.

Autores

  • é doutor em Direito, professor de Direito Civil e Direito do Consumidor na Fundação Getúlio Vargas, na Associação do Ministério Público do Rio de Janeiro, na Fundação Escola da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, no Complexo de Ensino Renato Saraiva e na Fundação do Ministério Público do Rio de Janeiro, palestrante, autor de diversas obras jurídicas e coordenador do Seufuturo.com.

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