Opinião

Afinal, o que resta de vantagem para o optante do Simples Nacional?

Autor

  • Carlos Yury Araújo de Morais

    é doutor em Direito membro da ABDF membro da Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

9 de agosto de 2021, 17h01

Criado para ser um marco na simplificação quanto ao cumprimento de obrigações acessórias, o regime especial unificado de arrecadação de tributos e contribuições devidos pelas microempresas e empresas de pequeno porte (Simples Nacional) completa 15 anos sob diversos ataques.

No julgamento do RE 970.821, o Supremo Tribunal Federal considerou ser constitucional a imposição tributária de diferencial de alíquota do ICMS pelo estado de destino na entrada de mercadoria em seu território devido por sociedade empresária aderente ao Simples Nacional, independentemente da posição desta na cadeia produtiva ou da possibilidade de compensação dos créditos.

A decisão impõe um ônus impróprio aos optantes do Simples. Ao permitir a cobrança de diferencial de alíquota, independentemente da possibilidade de compensação de créditos, o STF permite que o ICMS recolhido antecipadamente não seja compensado com o ICMS incidente na operação seguinte, qual seja, a venda da mercadoria.

No caso do RE 970.821, o total arrecadado com o diferencial de alíquota representa manifesto plus arrecadatório sem causa, criando um regime híbrido de Simples e apuração normal do ICMS.

Imagine que uma empresa, no setor de comércio, adquire mercadoria para revenda.

No sistema de apuração normal, o valor do diferencial de alíquota é obtido mediante a comparação entre as duas alíquotas e encontro da diferença. Numericamente temos que, em uma operação interestadual entre nordeste e sudeste, a alíquota seria de 7%. No estado de destino, haverá cobrança dos 11% restantes.

Para fins de Justiça, e considerando que o Simples é um regime específico, a regra de diferencial de alíquota deveria ser específica. Isso porque o Simples prevê o pagamento de alíquotas muito menores que o normal. No caso do industrial, a alíquota de ICMS sobre seu faturamento varia de 1,44% a 9,60%. Por outro lado, a alíquota de ICMS aplicável ao faturamento da empresa varia de 1,36% a 4,79%. Como explicar, portanto, que o diferencial de alíquota, sozinho, equivale a uma alíquota quase 229% maior que as projeções estipuladas para o micro e pequeno empreendedor?

A inauguração do regime híbrido traz uma outra complexidade. Na medida em que o STF declara a constitucionalidade da cobrança de diferencial de alíquota, calculado pelo regime comum, e impede o crédito do imposto pago por fora do Simples, por força do artigo 23 da LC 123/06, ele aplica uma regra específica a outro regime [1].

Em outras palavras, o artigo 23, por ser regra restritiva, deve ser interpretado restritivamente (essa afirmação é um tanto óbvia, mas sequer foi analisada no voto condutor). A interpretação restritiva, nesse caso, implicaria em reconhecer que a limitação a apropriação ou transferência de créditos relativos a impostos ou contribuições abrangidos pelo Simples deve ser aplicada apenas aos impostos pagos via PGDAS.

Como posto no acórdão, entretanto, a regra do artigo 23, aplicada literalmente, serviu para criar um regime de exclusão e esvaziar o Simples como meio de diminuição de complexidades.

Some-se a isso a decisão tomada no RE 1199021 (restrição a alíquota zero de PIS/Cofins no regime monofásico) e sucessivas decisões (v.g., RE 595921) que tratam a opção ao Simples como o maior favor fiscal, levam a se perguntar: a opção pelo Simples ainda é vantajosa?

Do ponto de vista econômico, sem dúvida. As alíquotas do Simples ainda são mais baixas que a média das oito exações que o compõem, quando analisados nos seus respectivos regimes comuns.

Além disso, a forma de recolhimento do Simples ainda é extremamente benéfica aos pequenos negócios. Há economia de tempo e recursos, quanto à conformidade.

Juridicamente, entretanto, é preciso definir melhor a situação do regime próprio. O fato de ele apresentar vantagens não significa que ele possa ser desfigurado. A Constituição já estabelece o necessário tratamento diferenciado às micro e pequenas empresas, como corolário da isonomia.

As decisões judiciais nesse ponto devem se ater ao princípio fundamental da isonomia e verificar se ela está sendo mantida. No caso analisado no presente artigo, apesar de o STF reiteradamente negar a existência de regimes híbridos (como no caso do aproveitamento dos créditos da etapa subsequente), a corte necessariamente sufragou o pior regime híbrido existente em relação ao diferencial de alíquota.

Veja-se que a construção de uma regra verdadeiramente adequada à isonomia iria ponderar que a cobrança do diferencial de alíquota deveria obedecer regras próprias da LC 123/06, previstas na LC 123/06 e adequadas às realidade das micro e pequenas empresas.

Ao contrário, o STF não só sufragou as inúmeras remissões à LC 86/96, no sentido de aplicar o regime comum de diferencial de alíquota, como também permitiu um aumento brutal de carga tributária, em momento no qual os micro e pequenos empreendedores mais precisam de suporte [2].

O STF deve ambientar-se na defesa e análise dos casos, observando a política fiscal. É fato que o STF reconhece a necessidade excepcional de intervir na execução (ou formulação) de políticas públicas, porém exclui de seu controle a política fiscal, uma das mais importantes.

Ainda que o posicionamento dominante do STF seja o de não interferir nas escolhas do legislador, especialmente no que diz respeito a isenções ou benefícios fiscais [3].

Ocorre que a política fiscal não abrange apenas decisões sobre a isenção ou benefícios. Além da provisão de serviços públicos como segurança, saúde, seguridade social, o estado também deve manter a estabilidade de preços, equilibrar balanço de pagamento, distribuir renda e manter o bem-estar. Uma política fiscal efetiva irá aumentar o nível de renda da população, focando na multiplicação do emprego, mantendo os preços em patamares estáveis e mantendo taxas de juros igualmente estáveis.

Ao interferir na sistemática do Simples, criando um regime híbrido e sufragando enorme aumento na carga fiscal das empresas optantes desse regime, o STF invalida a política fiscal de benefício às micro e pequenas empresas agindo como causador de exceção, e não como árbitro imparcial.

 


[1] Curiosamente, no RE 936.642, o STF afirmou que o Poder Judiciário não poderia estender a equiparação prevista no artigo 5º da Lei nº 9.716/98 às empresas optantes do Simples Nacional, sob pena de exercer papel legislativo e constituir um sistema Simples Híbrido, outorgando benefícios tributários ao arrepio da lei.  (STF. Acórdão 936642. Processo nº 5012934-15.2013.4.04.7108;. Órgão Julgador: Segunda Turma. Relator (a): Dias Toffoli; Data do julgamento: 28/06/2016).

[3] No Recurso Extraordinário 188.951, o Relator, Ministro Maurício Correa, afirmou que "[…] a isenção fiscal decorre do implemento da política fiscal e econômica, pelo Estado, tendo em vista o interesse social. É ato discricionário que escapa ao controle do Poder Judiciário e envolve o juízo de conveniência e oportunidade do Poder Executivo".

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