Opinião

Anotações sobre as inelegibilidades no projeto de novo Código Eleitoral

Autores

  • Luiz Carlos dos Santos Gonçalves

    é procurador regional da República e ex-procurador regional eleitoral de São Paulo.

  • Marcelo Issa

    é advogado mestre em dados abertos governamentais pela PUC-SP diretor-executivo do Transparência Partidária organização integrante do Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas e membro do Conselho Deliberativo da Transparência Brasil.

7 de agosto de 2021, 11h13

O projeto do novo Código Eleitoral (Projeto de Lei Complementar 112/2021), já protocolizado na Câmara dos Deputados, pretende substituir toda a legislação eleitoral atualmente vigente. Por essa razão, vem em forma de lei complementar para poder tratar de inelegibilidades e das competências da Justiça Eleitoral, conforme exigência constitucional.

No tema específico das inelegibilidades, o projeto traz acertos e, a nosso ver, desacertos. Apresentamos abaixo alguns destaques, formados a partir de nossa convicção de que a democracia brasileira e as eleições exigem medidas efetivas de proteção da probidade administrativa, da moralidade para o exercício dos mandatos e contra os abusos do poder político e econômico, como dispõe a Constituição Federal em seu artigo 14, §9º.

A nosso ver, a despeito de debates e discussões travadas entre a comissão de reforma e especialistas em Direito Eleitoral — entre eles, um dos autores desse artigo —, o novo código ainda não está maduro para ser posto em votação, sendo caso de os parlamentares ampliarem as oportunidades de reflexão e discussão junto à sociedade civil. Afinal, trata-se de documento complexo, que regerá, no plano infraconstitucional, todas as eleições brasileiras e que traz muitas soluções controversas. Por essa razão, o Transparência Partidária, iniciativa dirigida por um dos autores deste texto, é uma das organizações que idealizam e coordenam a campanha "Freio na Reforma: Política se Reforma com Democracia", que tem se manifestado no sentido de que o projeto não seja posto agora em deliberação.

1) Destaque positivo, mas com uma consequência preocupante: As exigências de desincompatibilização receberam tratamento racional e de fácil interpretação, ao contrário do que hoje ocorre na Lei Complementar 64/90. Entretanto, a antecipação da data das convenções partidárias, que passarão a ser realizadas entre 10 e 25 de maio do ano eleitoral (artigo 185), criou uma situação muito favorável aos funcionários públicos que pretendam se candidatar. Eles devem se afastar dos cargos a partir da escolha nas convenções (artigo 175, II) e farão jus à licença remunerada (artigo175, §1º). Como as eleições são em outubro, isso dá mais do que quatro meses!

2) Destaque positivo: A inelegibilidade funcional dos vices foi detalhada, solucionando dificuldades advindas da ocupação do cargo do titular nos seis meses anteriores ao pleito (artigo 177).

3) Destaque: positivo, mas com problemas: A inelegibilidade pela prática de condutas de abuso de poder fica condicionada à gravidade de que se revestirem (artigo 180, IV). A jurisprudência eleitoral já é nesse sentido. Contudo, se inclui nesse tratamento a captação ilícita de sufrágio (compra de votos). Quais os critérios para a "gravidade" dessa prática? A compra de um único voto já não é grave o suficiente, como hoje reconhece o Tribunal Superior Eleitoral (TSE)? Não demonstra o desprezo do candidato pelas regras mínimas de higidez eleitoral? Não mostra que ele está comercializando a adesão dos eleitores e explorando a fragilidade econômica deles?

4) Destaque muito negativo: Exclui a inelegibilidade pela condenação criminal quando é fixada a pena restritiva de direitos (artigo 180, §3º), o que pode acontecer, entre outras exigências pontuais, quando a condenação efetivamente aplicada não for superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa. Considerando que o mesmo parágrafo exclui a inelegibilidade nos crimes culposos, de ação privada ou de menor potencial ofensivo (pena não superior a dois anos), a proposta dá benesse a quem tenha praticado crime de médio ou grande potencial ofensivo. A substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos atende à conveniência de evitar os males do encarceramento, mas não afasta que, tendo praticado crime grave, a vida pregressa do condenado expõe a risco a moralidade para o exercício do cargo, à luz do artigo 14, §9º, da Constituição.

5) Destaque negativo, por não atualização da hipótese: A proposta mantém nas condenações por improbidade administrativa a exigência de dupla imputação: dano ao erário e enriquecimento ilícito (artigo 180, VIII). É certo que isso condiz com a reiterada jurisprudência do TSE, que, entretanto, se baseia na literalidade do texto da atual Lei Complementar 64/90, que foi mantido na proposta, e que, enfaticamente, exige a concomitância destas condenações. Entretanto, é injustificável que uma conduta que cause dano deliberado ao erário não gere inelegibilidade, desde que seu agente não tenha lucrado com isso. Da mesma maneira, como justificar que alguém que enriqueceu ilicitamente graças a sua atuação funcional possa se candidatar, somente pelo fato de que não causou prejuízo ao erário?

6) Destaque muito negativo: A Constituição Federal dispõe que a condenação criminal ou por improbidade administrativa suspende os direitos políticos, o que já impede candidaturas (artigo 15). Por essa razão, a atual Lei Complementar 64/90 estabelece que o prazo de oito anos de inelegibilidade será contado "a partir do cumprimento da pena". Ao revés, o projeto de novo Código Eleitoral diz, no parágrafo 1º do artigo 180, que essas hipóteses de inelegibilidade não podem ultrapassar o prazo de oito anos desde a condenação. Vale dizer: a inelegibilidade produziria efeitos entre a condenação colegiada e o trânsito em julgado, sem se suspender em período no qual é uma restrição inútil, pois sem o pleno exercício de direitos políticos não se pode concorrer. A única exceção advirá de penas brandas, que suspendam, por curto período, os direitos políticos. Melhor solução seria prever a "detração", descontando, do prazo final de oito anos (a ser cumprido após a pena) o período entre condenação colegiada e definitiva.

7) Destaque positivo: O alcance do prazo de oito anos, no caso de condenações pela Justiça Eleitoral, foi fixado adequadamente para a eleição na qual se tenha concorrido e para as que se realizarem nos oito anos seguintes, contados a partir de 1º de janeiro do ano subsequente, artigo 180, IV. Isso foi positivo por evitar desigualação baseada na contagem do prazo "a partir do dia da eleição" na qual houve o ilícito, o que fazia a inelegibilidade depender do calendário de realização de eleições futuras.

8) Destaque controverso: O projeto não inclui a hipótese de inelegibilidade de mandatários que renunciem para evitar a abertura de processo que possa levar à cassação por infringência a dispositivos constitucionais, atualmente prevista na letra "k" do artigo 1º, I, da Lei Complementar 64/90. Deixa-se, portanto, de ter uma "resposta" ao hábito de parlamentares de renunciar, antes da abertura de processo pela Comissão de Ética, evitando, com isso, a inelegibilidade.

9) Destaque inútil: Mantém a hipótese estranha, quando não ridícula, da inelegibilidade por decisão judicial que reconheça a fraude no desfazimento do vínculo conjugal, embora não exista ação judicial com esse escopo e embora, em outro artigo, tenha resolvido o problema ao indicar que a dissolução da sociedade conjugal durante o mandato não afasta a inelegibilidade (artigo 179, §3º.)

10) Destaque negativo e inconstitucional: O projeto proíbe que o Ministério Público Eleitoral suscite, como fiscal da lei, impedimento à candidatura que não tenha sido apontado por terceiros durante o processo de registro de candidatura (artigo 740, §4º). Essa proposição demonstra desconhecimento da função do Parquet de defesa da ordem jurídica e do regime democrático, artigo 127 da Constituição Federal. Como pode o Ministério Público, ao examinar pela primeira vez um pedido de registro, silenciar diante de uma flagrante ilegalidade só porque as partes da ação — que defendem interesses válidos, mas privados  nada alegaram? O papel do Ministério Público Eleitoral é falar em nome dos eleitores, pois os direitos deduzidos no processo eleitoral são indisponíveis. Além de inconstitucional, a medida é contrária a economia processual, pois vai forçar o Ministério Público Eleitoral a recorrer de todas as decisões que não versarem sobre aquele tópico sobre o qual foi obrigado a ficar silente. Melhor solução, consentânea com o direito ao contraditório, é dar oportunidade às partes para se pronunciarem se a matéria alegada pelo Parquet for inovadora.

11) Destaque controverso: A proposta antecipa a data de registro das candidaturas para junho. Depois disso, a teor do artigo 202, §§1º e 2º, as alterações fáticas ou jurídicas, quer favoreçam o direito de candidatura, quer o impeçam, não mais poderão ser consideradas. Por um lado, a medida estabiliza a situação jurídica do candidato, o que favorece a escolha informada do eleitor e evita o vai-e-vem de decisões judiciais, medidas cautelares e recursos; por outro lado, priva a sociedade da possibilidade de obstar a diplomação de quem tenha incorrido numa inelegibilidade depois do registro da candidatura. A ressalva do dispositivo é apenas para condições de elegibilidade e inelegibilidades previstas na Constituição. O Transparência Partidária considera essa medida um retrocesso, pois traz uma espécie de "blindagem" para quem teve o registro deferido.

É a contribuição que damos sobre esse tema de tanta importância para a democracia e as eleições brasileiras.

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