Opinião

Presidente da Câmara dos Deputados não é o senhor do tempo

Autores

  • Leonardo David Quintiliano

    é advogado professor especialista em Direito Digital pela FMP mestre em Direito pela Universidade de Lisboa doutor em Direito do Estado pela USP e associado fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD).

  • Antonio Paulo de Mattos Donadelli

    é graduado na PUC-SP (com especialização na Escola Superior de Direito Constitucional) mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutorando em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo.

5 de agosto de 2021, 6h04

O controle do tempo sempre habitou o imaginário humano como forma de poder. Segundo a mitologia grega, a negação do tempo foi usada por Urano e Cronos para conquistar o poder de governar a terra.

Do mesmo modo, tempo e justiça sempre apresentaram uma relação de interdependência ou de limitação recíproca. O tempo pode negar a justiça de diversos modos. A injustiça pode ser corrigida pelo tempo. A perda do tempo pode ser corrigida pela Justiça. Atualmente, inúmeros processos punitivos prescrevem no Brasil graças ao seu decurso. É o tempo fazendo injustiça.

Dada essa relação, o controle do tempo pode significar, para o Direito, abuso de poder, sujeitando a autoridade pública a sanções.

Por 188 anos, contudo, nenhum presidente da Câmara dos Deputados se investiu no personagem mítico de Cronos, como senhor do tempo, para deixar de despachar denúncias recebidas por crime de responsabilidade.

De fato, a primeira lei a regular o impeachment no Brasil foi a Lei de 15 de outubro de 1827 e se aplicava a ministros e secretários de estados, menos ao imperador, que era considerado inviolável.

Com a proclamação da República, em 1891, houve a necessidade de incluir o presidente da República como autoridade que também poderia ser punida politicamente por seus atos irresponsáveis, uma vez que a igualdade de todos perante a lei é um dos primados do princípio republicano. A antiga lei de 15 de outubro de 1827 foi, então, substituída pelo Decreto n° 27, de 7 de janeiro de 1892, que manteve quase todos seus termos. Finalmente, esse decreto foi substituído, com pouquíssimas alterações, pela Lei n° 1.079/50, a atual Lei do Impeachment.

Nenhuma das três leis do impeachment que o Brasil conheceu previu poder arbitrário do presidente da Câmara dos Deputados para decidir despachar ou não uma denúncia por crime de responsabilidade. O artigo 19 da atual lei, com quase nenhuma modificação em relação às regras anteriores, é bastante claro: "Recebida a denúncia, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial eleita, da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos os partidos para opinar sobre a mesma".

Até 2015, o termo "recebida a denúncia" tinha interpretação única  a recepção física do documento. Os demais sentidos, como o de "aceitar", "acolher", eram incompatíveis com as demais normas da mesma lei, pois cabia a uma comissão especial eleita a emissão de parecer, seguida de deliberação do Plenário da Câmara dos Deputados, a decisão sobre aceitar ou não a denúncia oferecida, apresentando acusação ao Senado Federal.

Em 2015, no julgamento da ADPF 378/DF, o Supremo Tribunal Federal modificou parcialmente esse entendimento para adequar o artigo 19 e seguintes da Lei do Impeachment à Constituição Federal de 1988, que transferiu ao Senado Federal a competência para recebimento da denúncia. A Câmara dos Deputados passou apenas a "autorizar" o recebimento da denúncia (com a análise mais profunda sobre os elementos da acusação) pelo Senado Federal. A nova orientação do STF apenas reforçou a inexistência de qualquer poder do presidente da Câmara dos Deputados de reter as denúncias, já que é a Comissão Especial do Impeachment que deve analisar os elementos da denúncia, a fim de emitir parecer sobre sua deliberação ou não pelo Plenário.

Nesse sentido, os professores da Universidade de São Paulo (USP) Virgílio Afonso da Silva e Rafael Mafei, em brilhante artigo publicado no último dia 20 de julho na revista Piauí, intitulado "O tempo do impeachment", demonstraram com dados que até 2015 todos os pedidos de impeachment apresentados foram despachados como determina o artigo 19 da Lei n° 1.079/50 [1].

Em 2015, contudo, parece ter o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, incorporado Cronos, para assumir o controle do tempo do impeachment.

Tal poder, contudo, inexiste no Estado de Direito. Diversas formas de se interpretar a regra rejeitam a ideia. Primeiro, porque a interpretação literal é bastante clara, não devendo abrir espaço a qualquer outra no caso. Segundo, porque um dos critérios de interpretação constitucional é afastar o sentido que torne nulo o direito que se busca garantir. É o que em latim se expressava pelo brocardo "commodissimum est, id accipi, quo res de qua agitur, magis valeat quam pereat" ("prefira-se a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, ao invés da que os reduza à inutilidade"). Ou seja, interpretar o artigo 19, conferindo poder para uma única autoridade simplesmente não dar andamento a uma denúncia, reduz o princípio da responsabilidade à inutildade, bem assim o próprio artigo 85 da Constituição Federal.

Acelerar ou retardar a marcha dos processos previstos na Constituição é tão arbitrário quanto interferir diretamente no resultado, o que compromete a lisura da finalidade do processo. Alejandro Nieto afirma que a independência dos julgadores está comprometida não só pela possível ingerência no resultado final, mas ao interferir, indevidamente, "en la marcha de los processos" (Alejandro Nieto, El Malestar de los Los Jueces y el Modelo Judicial, Madrid: Editorial Trotta, 2010, p. 136).

Uma busca aos anais do processo legislativo que discutiu a criação da Lei n° 1.079/50 também demonstra que a mens legislatoris (a vontade do legislador) jamais foi a de conferir tamanho poder ao presidente da Câmara dos Deputados.

Com efeito, em 1949, ao discutirem o projeto que daria origem à Lei n° 1079/50 (PL 1384-A/1948), os parlamentares levantaram a problemática do prazo para despacho da denúncia pela Câmara dos Deputados. Duas emendas foram apresentadas pelo deputado Barreto Pinto, que temia a investida de Cronos em algum momento da vigência da lei. A primeira delas, a Emenda n° 14, dizia: "O processo preparatório deverá ser iniciado em48 horas, depois da entrega da denúncia, na Secretaria da Câmara e concluído dentro de trinta dias improrrogáveis" [2].

O relator do projeto entendeu que a emenda era supérflua, pois a lei já garantiria "prazo para início do processo depois de recebida a denúncia". Ao examinar, contudo, a Emenda 16, o relator deixou claro que nem o presidente da Câmara, tampouco a mesa diretora, teriam qualquer poder para analisar o mérito da denúncia: "Pelo projeto, a mesa não tem competência para rejeitar in limine a denúncia. Só a Comissão especial poderá fazê-lo. Esta solução é a mais democrática".

Cronos parece não exercer tamanha influência também em muitos países que compartilham regras similiares de tratamento do impeachment. Estados Unidos, Itália, México, Portugal, França, Argentina, Chile, Colômbia e Equador, para citar alguns, não contemplam o presidente da Câmara "baixa", que representa o povo, com tamanho poder sobre o tempo. A Constituição Federal tampouco.

O inciso LXXVIII do artigo 5º da CF assegura a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. É uma garantia tanto para a vítima quanto para o acusado, o qual também não quer ter contra si a indefinição temporal sobre a aplicação de futura pena.

Além disso, o abuso de poder que vem sendo praticado desde 2019 pelo ocupante do cargo de presidente da Câmara dos Deputados pode servir de chantagem ou ameaça contra o presidente da República, o qual passa a depender de sua "boa vontade". Tal abuso, sim, viola o princípio da separação de poderes, não eventual decisão do Supremo Tribunal Federal que venha simplesmente reconhecer que tal arbitrariedade não encontra respaldo na lei ou na Constituição. Admitir que o chefe de um poder possa controlar o tempo de modo a prejudicar o chefe de outro poder proporciona acentuado desequilíbrio em sua relação.

A intepretação literal do artigo 19 da Lei n° 1.079/50, no sentido de que após a entrega da denúncia pelo cidadão à Câmara dos Deputados ela deve ser imediatamente lida na sessão seguinte e logo depois despachada a uma comissão especial (com a ressalva, por óbvio, de um juízo mínimo a ser feito pelo distribuidor da Câmara quanto ao cumprimento de requisitos formais) é uma garantia não apenas ao denunciante, mas principalmente para o denunciado, que terá, na comissão especial, com integrantes da base do governo, maior direito à ampla defesa e ao contraditório, não ficando sob dependência do poder de Cronos.

Na mitologia grega, Cronos foi derrotado por Zeus. No sistema de Justiça do Estado moderno, Cronos foi superado pelo Estado de Direito. Mesmo assim, muitos tentam revivê-lo. Dice (ou Diké), a deusa da Justiça, está de olho. Resta saber se ela terá influência no julgamento do tema pelo STF.

 

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