Opinião

Antes da nulidade, há uma ponderação

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

5 de agosto de 2021, 16h17

Pode parecer contraditório, mas é verdade: o Direito Administrativo permite defender a manutenção de atos administrativos ilegais. Mesmo que contrários ao Direito ou violadores à norma, o mesmo sistema jurídico dirá que eles devem continuar gerando efeitos. Então, a mesma legalidade que obriga o administrador público a atuar conforme o Direito defere a essa mesma autoridade a possibilidade de, em certas situações, defender a manutenção uma ilegalidade.

Cuide bem: o sistema normativo não está a incentivar ilegalidades, mas a considerar que elas são um bem jurídico a ser ponderado com outros bens, muitas vezes mais relevantes. E, em assim sendo, a norma declarará legal a manutenção de uma ilegalidade.

Logo, como professor, não posso mais afirmar — o que confessadamente fiz muitas vezes — que a anulação é ato administrativo vinculado. A frase deve ser refeita: a anulação pressupõe ponderação e interpretação sistemática. Esse cenário nos incentiva a apresentar ao leitor uma espécie de "roteiro" para a anulação dos atos administrativos, pressupondo que outros itens ou sistematizações poderão vir a complementar nossa metodologia. Enfim, destacamos duas palavras iniciais: o sistema de nulidades do Direito Administrativo não é mais o mesmo, porque incorporou uma série de institutos que, mal ou bem, podem ser importados do Direito Privado, como o plano da existência, a teoria da pas de nullité sans grief e algo próprio: a necessidade de ponderação para com outros bens juridicamente tutelados.

Assim, tanto a famosa Súmula nº 473 do STF como o artigo 53 da Lei nº 9.784/99 (Lei do Processo Administrativo Federal) deverão ser interpretados para com as seguintes premissas, apresentadas na forma de "roteiro":

1) Primeiro, o jurista deverá avaliar se o ato administrativo é existente, ou seja, se os cinco elementos do ato administrativo existem (aqueles listados pelo artigo 2º da Lei nº 4.717/65 [1]: forma, finalidade, competência, objeto e motivo). Sim, antes que se diga algo, não temos dúvidas de que os atos administrativos possuem plano da existência, apesar de vozes em contrário. Basta ver a diferença entre o usurpador de função (aquele que nunca teve qualquer competência administrativa — ato inexistente) e o "agente público de fato" (aquele que deteve competência, mas para o ato, ela não existe ou é defeituosa). Exemplifico: é ato inexistente aquele praticado por um cidadão que encontra um talonário de multas de trânsito e começa a aplicar sanções aos seus desafetos. E é ato nulo aquele praticado por um agente administrativo nas suas férias ou quando estava aposentado. Quando o ato é inexistente, não há o que fazer, porque ele não poderá gerar efeitos;

2) Por conseguinte, se o plano da existência está hígido, o jurista deverá perceber se não se operou a perda do direito de anular o ato, pela presença dos elementos da decadência prevista no artigo 54 da Lei nº 9.784/99. Logo, se: 2.1) do ato decorram efeitos favoráveis para os destinatários (o ato administrativo é benéfico ao cidadão); 2.2) passaram mais de cinco anos, contados da data em que foram praticados [2]; 2.3) e o cidadão beneficiado pelo ato não está de má-fé, o ato administrativo ilegal deverá ser mantido no ordenamento jurídico. Aqui, perceba que já o legislador fez uma ponderação, e pretendeu privilegiar a segurança jurídica, em detrimento da ilegalidade. De modo que o ato, mesmo contrário ao direito, continuará a gerar efeitos. Ainda que for considerado ilegal, permanecerá eficaz, porque a segurança jurídica possui maior densidade nesse caso;

3) Superadas essas etapas, o sistema jurídico-administrativo determina que se aplique um critério utilitarista, ou seja, o gestor deve se perguntar: "É possível que o ato acometido de defeito jurídico seja convalidado?". Se positiva a resposta, o ato deverá ser corrigido, e não anulado. Aqui, não há propriamente a manutenção de um ato ilegal, mas a necessidade de sua correção, desde que o ato: 3.1) não acarrete lesão ao interesse público; 3.2) não gere prejuízo a terceiros; 3.3) esteja acometido de defeitos sanáveis, como uma competência não exclusiva, defeito de forma não grave etc. — aliás, a racionalização da forma é incentivada pela Lei nº 13.726/18 (Lei da Desburocratização), e essa perspectiva já há muito era deferida pela jurisprudência: STJ, RMS nº 882-RS, relator ministro Hélio Mosimann, 2ª Turma, j. 11/9/1991; e pela doutrina (por todos: Weida Zacaner — "Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos". São Paulo: Malheiros, 1993);

4) Ademais, o jurista deverá perceber se a o ato administrativo ilegal ou os seus efeitos não devem ser mantidos por outras ferramentas de estabilização, como, por exemplo, por aquelas ligadas à boa-fé objetiva, à violação da expectativa legítima, à aplicação da surrectio ou da supressio etc. Veja a situação em que o Poder Judiciário, em vez de declarar a nulidade de ato administrativo já praticado, determina que o agente administrativo deixe de fazer algo em relação ao ato ilegal anterior, mas sem anular este mesmo ato. Aqui, seria visualizada uma situação em que estaria presente a estabilização;

5) O ato administrativo ilegal poderá ser mantido no ordenamento jurídico, desde que se pretenda proteger um bem juridicamente tutelado mais relevante ao caso concreto. É dizer que antes do pronunciamento de qualquer nulidade, é necessário que se faça um juízo de ponderação, ou seja, que se aplique o postulado da razoabilidade ou proporcionalidade. E isso ficou claro a partir das alterações feitas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro LNDB) pela edição da Lei nº 13.655/18, e pelo texto do artigo 147 da Lei nº 14.133/21 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos);

Muitas vezes as licitações ou contratos irregulares eram paralisadas e a execução dos seus objetos não mais acontecia. Enfim, de um lado, veja que uma nulidade, um vício jurídico etc. é um fator sério e que não deve ser ignorado. De outro, ele não pode ser percebido de modo isolado ou absoluto, ou seja, deve ser ponderado com outros bens jurídicos tão ou mais importantes. Em outras palavras, a paralisação da execução de um contrato pode gerar danos sociais, econômicos, ambientais etc. de grande monta, fato que impõe a ponderação entre valores juridicamente tutelados.

Então, diante desse cenário, o artigo 147 da Lei nº 14.133/21 convida o gestor, o controlador de contas, o magistrado e as demais autoridades a estabelecer um juízo de ponderação entre uma irregularidade no procedimento licitatório ou na execução contratual constatada e uma série de conjunturas ou bens jurídicos apreciáveis listados nos vários incisos do caput. Veja que a tal regra determina a seguinte operação hermenêutica:

5.1) Primeiro, deve o intérprete perceber se a irregularidade é ou não sanável: 5.1.1) em caso positivo, a questão se resolve com a correção de tal vício jurídico; 5.1.2) em caso negativo, deve-se perfazer um juízo de ponderação conforme etapa que segue;

5.2) Segundo, a suspensão da execução de ato ou de contrato é medida excepcional, e somente será feita se for atendido o interesse público. Para tanto, o artigo 147 da lei geral de licitações recentemente editada fornece parâmetros de interpretação para saber se o tal interesse está sendo protegido, sendo que esses critérios devem ser necessariamente considerados: 5.2.1) impactos econômicos e financeiros decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato; 5.2.2) riscos sociais, ambientais e à segurança da população local decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato; 5.2.3) motivação social e ambiental do contrato; 5.2.4) custo da deterioração ou da perda das parcelas executadas; 5.2.5) despesa necessária à preservação das instalações e dos serviços já executados; 5.2.6) despesa inerente à desmobilização e ao posterior retorno às atividades; 5.2.7) medidas efetivamente adotadas pelo titular do órgão ou da entidade para o saneamento dos indícios de irregularidades apontados; 5.2.8) custo total e estágio de execução física e financeira dos contratos, dos convênios, das obras ou das parcelas envolvidas; 5.2.9) fechamento de postos de trabalho diretos e indiretos em razão da paralisação; 5.2.10) custo para realização de nova licitação ou celebração de novo contrato; 5.2.11) custo de oportunidade do capital durante o período de paralisação.

Esses parâmetros de ponderação que estão coligados às licitações e contratos podem servir de fundamento para outros campos do Direito Administrativo. Tanto que o artigo 20, parágrafo único, da LINDB impõe que, antes da pronúncia da nulidade, devam ser indicadas as possíveis alternativas para tanto, o que significa que a invalidade não é a única opção a ser tomada. Logo, uma ilegalidade não será pronunciada se outro bem jurídico mais relevante possa ser comprometido. O legislador percebeu que a declaração de uma nulidade pode ser mais drástica do que a sua manutenção. E, por isso, sempre antes de se declarar um ato administrativo nulo, deve-se fazer o tal juízo de ponderação;

6) O instituto da pas de nullité sans grief possui incidência específica no sistema de nulidades. Defende que, para se reconhecer uma invalidade, é necessário que se prove também a existência de um prejuízo, ou melhor, de um dano. É fundamentado pelos vetores da instrumentalidade e da economia das formas. Logo, não se decreta nulidade sem a ocorrência de um prejuízo (dano), e, para tanto, a parte prejudicada deverá reclamar o reconhecimento do vício jurídico.

E o roteiro não acaba aí!

7) Caso superadas as etapas precedentes e a declaração de nulidade ainda se impuser, o artigo 21 da LINDB relativiza os efeitos ex tunc da nulidade, porque será a decisão que deverá regularizar a situação, determinando como a realidade ficará proporcional, justa, equânime etc. Então, quando se pronunciar a nulidade de ato ou contrato, deverão ser definidos os efeitos no caso concreto — aqui, de novo, terei de refazer outra frase que há uns dez anos pronunciava aos alunos: "A nulidade do ato administrativo é retroativa", porque hoje, nem sempre assim o será.

Por tudo o que se disse, parece inevitável concluir que o sistema de nulidades do Direito Administrativo deve pressupor: a) ponderação prévia; b) ser medida excepcional; e c) contemplar a prova do prejuízo. Significa dizer que se reclamará um ônus argumentativo sofisticado do jurista que pretender pronunciar a nulidade do ato. E o percurso ora apresentado é um convite ao diálogo quanto a esse novo panorama.

 


[1] Tomamos por base a classificação francesa adotada pela Lei da Ação Popular, e explorada na nossa obra: "Curso de Direito Administrativo" (Ed. Juspodivm) — item 13.2 do Capítulo 13.

[2] Lei nº 9.784/99, artigo 54, § 1º: "No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento".

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