Opinião

A (im)possibilidade de adoção internacional de crianças brasileiras

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2 de agosto de 2021, 19h10

A adoção é um ato solene pelo qual o adotante estabelece com o adotado um vínculo de paternidade e filiação civil irrevogável para todos os efeitos legais [1]. Segundo Silvio de Salvo Venosa, é uma forma "artificial de filiação que busca imitar a filiação natural. Daí ser também conhecida como filiação civil, pois não resulta de uma relação biológica, mas de manifestação de vontade" [2].

Trata-se de um instrumento de colocação de crianças e adolescentes em família substituta, para promoção do desenvolvimento pleno desse indivíduo, que pode se dar tanto na modalidade de adoção nacional quanto na modalidade de adoção internacional. A diferença de uma modalidade para outra é que na adoção internacional a pessoa ou casal postulante é residente ou domiciliado fora do Brasil [3], mesmo que seja brasileiro.

Ambas as modalidades de adoção exigem um cuidado e uma precaução do Estado, pois trata-se de um instrumento jurídico que entrega a vida de uma criança vulnerável a uma família que vai assumir de forma completa o pátrio poder. No entanto, nos casos de adoção internacional esse cuidado deve ser intensificado, pois, além de assumir o pátrio poder, essa família vai retirar essa criança do solo brasileiro onde o Estado consegue mais facilmente protegê-la.

A preocupação de retirar uma criança do Brasil existe de forma mais acentuada nos procedimentos de adoção internacional, pois esse instituto já foi utilizado de forma fraudulenta e com fins escusos, como por exemplo para tráfico internacional de crianças, para tráfico de órgãos, para exploração sexual, para exploração do trabalho infantil, entre outras formas de abuso do poder parental.

Em 1992, o deputado francês Leon Schwarzemberg afirmou que "que, na Itália, entre 1988 e 1992, apenas mil de um total de quatro mil crianças brasileiras adotadas irregularmente permaneciam vivas" [4]. Por essa razão é que a adoção internacional precisa ser um procedimento minucioso e medida excepcional para inserção de criança brasileira em família substituta.

Apesar de existir na Constituição Federal uma permissão para a ocorrência (artigo 227, §5º), a prioridade é a adoção de crianças brasileiras por pessoas que residem no Brasil. Se isso não for possível, poderá ocorrer a adoção internacional, mas dando prioridade aos brasileiros residentes no exterior, e se mesmo assim não for encontrada essa família brasileira substituta é que será possível a adoção de crianças brasileiras por estrangeiros, desde que observado os critérios estabelecidos para o procedimento de adoção, conforme determinado no artigo 51, parágrafo 1º, e artigo 52 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Todas as pessoas que estão interessadas em adotar precisam passar pelo procedimento estabelecido pelos artigos 165 a 170 do Estatuto da Criança e do Adolescente. No entanto, em se tratando de pessoas que residem no exterior, esse pedido de habilitação deve ser feito em uma autoridade central em matéria de adoção internacional no país de acolhida, ou seja, o país que receberá o menor após o procedimento de adoção, conforme determinado no artigo 52, inciso I do ECA.

Se a autoridade estrangeira, após análise de dados e estudo social entender que o solicitante está habilitado e apto para adoção, elaborará um relatório com as informações essenciais do adotante, bem como a legislação do país anexado e enviará para a autoridade central federal brasileira, conforme determinado nos incisos do artigo 52 do ECA. A autoridade brasileira, por sua vez, analisará a compatibilidade entre as legislações informará se cumpre com os critérios de habilitação do adotante no Brasil (artigo 52, inciso VII, do ECA)

Se houver compatibilidade nos requisitos de habilitação, a autoridade brasileira emitirá um laudo de habilitação que possibilitará o adotante a formalizar pedido de adoção perante o juízo da infância e da juventude do local em que se encontra o adotado conforme indicado pela autoridade central estadual (artigo 52, inciso VIII, do ECA).

Feito isso, inicia-se então o pedido de adoção internacional perante o juízo da infância e da juventude, seguindo os tramites dos artigos do 165 a 170 do ECA, que requer, entre outras coisas, que esse adotante venha para o Brasil para o período de convivência de pelo menos 30 dias com o adotado.

A convivência familiar é um direito fundamental da criança e do adolescente no Brasil. Por essa razão, o instituo da adoção deve ser pensado de modo a viabilizar o acesso a esse direito por parte das crianças e dos adolescentes, que, por alguma razão, tiveram o seu vínculo familiar natural rompido.

Diante do exposto, nota-se que o minucioso procedimento de adoção internacional se revela como uma tentativa de o Estado e da comunidade internacional de reduzir, e até mesmo erradicar, o risco da adoção fraudulenta, muito bem exemplificada com o tráfico internacional de menores.

No entanto, a reflexão que precisa ser feita é se o procedimento estabelecido pela lei para adoção internacional de crianças brasileiras representa um mecanismo de proteção ao melhor interesse da criança e do adolescente, ou uma forma de burocratização que gera entraves no processo de adoção.

A burocratização desarrazoada no procedimento de adoção internacional pode privar uma criança ou um adolescente de viver uma vida no seio de uma família, já que as pesquisas demonstram que com o passar dos anos a chance de ser adotado diminui de forma significativa. Por essa razão é que em alguns casos é possível relativizar o formalismo exacerbado privilegiando o melhor interesse do menor, como é possível observar no julgamento do Processo de nº 0003815.1998.817.000, no Tribunal de Pernambuco [5].

Dessa forma, preocupados com a celeridade no procedimento e com o melhor interesse do menor, deve-se pensar no procedimento de adoção internacional como uma última chance desse indivíduo encontrar uma família, sem deixar com que os entraves burocráticos se apresentem como impedimento. O procedimento deve existir para garantir a segurança dos adotados e não para retirar a chance de uma família.


[1] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v. 5. 25. ed. São Paulo:Saraiva, 2010: p. 449.

[2] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito de Família. 14 ª ed. Vol. 6. São Paulo: Editora Atlas, 2014, p.285.

[3] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito de Família. 11 Ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2011, p. 295.

[4] CÁPUA, Valdeci Ataíde. Adoção Internacional: Procedimentos Legais. Curitiba: Juruá Editora, 2009.p.92.

[5] TJ-PE-AR: 354598 PE 0003815.1998.817.000, Relator Bartolomeu Bueno, Data de Julgamento: 07/06/2011, 1 Câmara Cível, Data de Publicação: 114

Autores

  • é advogada, pós-graduanda em Direito de Família e das Sucessões pela EPD, membro do grupo de pesquisa "Planejamento Patrimonial" da faculdade Milton Campos e redatora do Blog "Familiarizando".

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