O presidencialismo em crise no Brasil
2 de agosto de 2021, 15h00
Recentemente, veio à tona o debate sobre a adoção do semipresidencialismo no Brasil. A grosso modo, a ideia é dividir parcela do poder do chefe do Executivo, hoje vinculado ao presidente da República, com um premier (primeiro-ministro).

Esse tipo de debate não é novo. O Brasil já tentou abandonar o presidencialismo em duas oportunidades: em 1963 e em 1993. Nessas duas oportunidades, houve clara decisão popular no sentido de manter as balizas políticas brasileiras fundadas no presidencialismo. É bem verdade que, nas ocasiões anteriores, havia dúvida real sobre a opção de modelo institucional de governo a adotar. Hoje a temática retorna com outra faceta. Não se questiona o presidencialismo em si.
É fato que a política brasileira carece de um instrumento menos traumático para lidar com crises de governo, na medida em que o instrumental próprio do presidencialismo clássico tem deixado cicatrizes profundas no sistema político nacional.
Em cenários de falta de coalizão, o presidencialismo resolve mal as suas mazelas, voltando-se o impeachment (que é consequência própria da prática de ilícitos político-administrativos) para funcionar como meio de deposição de um incumbente carente de governabilidade.
O semipresidencialismo parece conseguir resolver melhor as situações em que há disrupção entre Executivo e Legislativo, ao menos nos países desenvolvidos que o adotaram.
No semipresidencialismo, dois cenários podem ser visualizados em decorrência da composição parlamentar. No primeiro cenário, o presidente da República eleito possui a maioria no Congresso, de modo que poderá exercer suas atividades de forma mais impositiva, uma vez que terá o apoio necessário para ditar sua agenda política. Entretanto, cenário diverso se observa quando a composição parlamentar é desfavorável ao presidente da República. Será, nesse contexto, possível a visualização do fenômeno da coabitação. Isto é, o presidente passará a ter a sua atuação limitada, prevalecendo, sobre a política interna, as atribuições conferidas ao primeiro-ministro.
Por isso, confessamos que, inicialmente, a ideia de um novo sistema de governo até que soa bem aos ouvidos; contudo, ao se olhar mais de perto, copiar um modelo outro — que boa parte dos brasileiros mal sabe como funciona — pode gerar uma confusão bem maior.
Além das questões teóricas, precisamos pensar pelo aspecto sociológico e cultural da mudança. Mesmo que tais propostas veiculem um período de vacatio para a implementação do novo sistema político, sabemos que isso pode ser insuficiente; afinal, não se altera uma cultura organizacional enraizada de um país em quatro anos, nem muito menos a percepção popular acerca do impacto do seu voto na regência do país.
Não é por outro motivo que o ministro Luís Roberto Barroso — defensor do modelo — já tem se posicionado — aprioristicamente — no sentido de que a mudança não poderia valer para o próximo pleito.
A nosso ver, o debate é válido; a mudança abrupta, provavelmente não. Até porque as realidades contextuais dos países-paradigma e do Brasil não permitem esse copia-e-cola de modelos.
A França, por exemplo, a qual adota o semipresidencialismo, possui uma área 15 vezes menor do que o Brasil, população três vezes menor do que a brasileira e uma renda per capita quatro vezes maior do que a nossa; por isso, difícil creditar a eficácia do sistema francês a um único fator de estabilidade, qual seja a engenharia do sistema adotado por eles.
Na verdade, o caminho histórico e as ideias que sustentam o sistema Francês é que garantem que o "voto de desconfiança" do Parlamento não se torne uma arma na mão de políticos enviesados.
Portanto, o elemento pivotal da discussão neste texto não parece ser a necessidade de um novo sistema de governo que permita a retirada de um chefe do Executivo que perdeu governabilidade (o que poderia, sim, reduzir os traumas institucionais gerados por um impeachment desvirtuado), mas, sim, perceber que quaisquer novas ferramentas políticas — até mesmo o voto de desconfiança —, colocadas à disposição dos atuais players, podem ser utilizadas ao arrepio de sua finalidade real.
Daí, não parece adequado pensar em novos modelos só porque o Brasil sofre com crises de identidade a cada novo desencaixe das engrenagens políticas, principalmente quando envolvem os poderes da República.
Devem ser trazidas à discussão as vantagens reais do semipresidencialismo, sob pena de não se ponderar igualmente sobre as suas desvantagens frente ao atual modelo. Por isso, se o problema a vencer repousa unicamente no enfrentamento às nossas crises de governança, cumpre aprimorar alguns dos elementos disponíveis (e a cultura organizacional por detrás deles), e não implodir o modelo atual.
É perceptível que há quem apoie essa ruptura como forma de equalizar ameaças de esvaziamento funcional perpetrada por incumbentes. Enquanto um dá a entender sobre a necessidade de dissolver o Parlamento, os outros surgem com a proposta de esvaziamento do Executivo e daí por diante.
Sem o fomento do fair play político, não adianta mudar as regras do jogo, incrementando mais ferramentas de destituição ou de controle.
O Levitsky e Ziblatt já colocavam como elemento essencial para a sobrevivência da democracia a tal "reserva institucional" [1], ou seja, a ética dos jogadores para, inclusive, usar plenamente as regras postas, mas sem desvirtuá-las.
[1] Reserva significa "auto-controle paciente, comedimento e tolerância’ ou ‘a ação de limitar o uso de um direito legal". Para nossos propósitos, a reserva institucional pode ser compreendida como o ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito. (LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 107)
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