"Guarda como Cuidado"

Criança precisa ser vista como pessoa na discussão sobre guarda, diz defensora

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1 de agosto de 2021, 7h48

A criança não pode ser convertida na mera ideia de objeto, ou desta ser aproximada. Ela é pessoa e, como tal, titular de situações jurídicas que serão por ela mesma exercidas de acordo com o seu desenvolvimento, tal como determinam a doutrina da proteção integral e o princípio do melhor interesse. Assim, o fundamento da guarda de filhos no Direito de Família é a dignidade da pessoa humana, o que implica novas interpretações da guarda, dentre as quais se destaca a efetiva inclusão da criança no debate sobre os cuidados destinados a ela.

Spacca
A reflexão sobre a inovação no instituto da guarda é de Elisa Cruz, defensora pública do Rio de Janeiro, doutora em Direito Civil pela Uerj, pós-doutoranda na escola de Serviço Social da UFRJ e professora de Direito Civil na FGV-Direito/Rio.

Em seu livro "Guarda Parental: releitura a partir do cuidado", recentemente lançado, ela aborda pontos importantes para o reconhecimento da criança como pessoa e um novo lugar para ela nos processos judiciais que discutem a guarda de crianças e adolescentes.

Elisa avalia que, apesar das inovações trazidas pela Constituição de 1988 no campo do Direito de Família, ainda há muito o que avançar quando se trata da guarda. Para a defensora, o princípio da proteção integral é exemplo de instituto que precisa ser interpretado de forma diferente para que a criança ocupe verdadeiramente um lugar central.

"A proteção integral envolve reconhecer a criança como pessoa, que tem os mesmos direitos que qualquer um de nós. Inclusive, ela tem o direito de falar e de ser ouvida sobre aquilo que importa."

Em entrevista à ConJur, a defensora falou sobre outras questões que debate em seu livro, como as responsabilidades que cabem a cada um dos pais, os descumprimentos dos cuidados na guarda e como a assistência moral e material são essenciais para o amparo e desenvolvimento da criança, embora nem sempre sejam observadas pelo sistema jurídico como um todo.

No livro, baseado em sua tese de doutorado, Elisa defende que ocorra uma inversão na forma como a criança e a guarda são vistas no Brasil. "Ao invés de pensar o que os adultos podem, primeiro pensamos no que a criança precisa."

Leia a entrevista:

ConJur —  Como está definido no ordenamento brasileiro o instituto da guarda?
Elisa Cruz
— Essa foi a pergunta que eu me fiz quando decidi começar a pesquisa sobre o tema. Na minha atividade como defensora pública, percebi muitas vezes conflitos entre pais, em processos judiciais, focados na ideia de quem ficaria com a criança. Todas as relações iriam partir dessa solução. Há um certo entendimento de que quem tem a guarda da criança é quem toma todas as decisões; então, a pessoa que tem a criança ganha toda a gerência e administração sobre ela, e quem fica sem não teria nenhum acesso, pelo menos no imaginário das pessoas que eu atendia.

Percebi que não é exatamente isso que está na lei, mas esse sentimento parte de uma incoerência da própria lei. Em um texto da professora Ana Carolina Broxado, ela afirma que trouxemos para o Brasil, a partir de 2008, a guarda compartilhada, mas não refletimos sobre o que ela significava. E ela apontava que esse foi o momento que levou à confusão apresentada.

Na lei, da forma como está colocada hoje, existem duas grandes espécies de guarda, uma que chamamos de guarda unilateral, em que o Código Civil tem como ideia decidir quem especificamente fica com a criança; e existe a guarda compartilhada, que é sobre dividir as responsabilidades.

Os dois institutos não têm nenhuma relação, porque usam conceitos que são diferentes; um é estar com a criança e o outro é se responsabilizar. Não são situações que conseguimos combinar ou complementar de uma forma adequada na lei. A lei faz parecer que, para ambos os pais serem responsáveis, precisa ser guarda compartilhada e que na guarda unilateral apenas um tem responsabilidade. Então, fica uma situação que não é compatível, porque no fundo pai e mãe são responsáveis, têm que cuidar, têm que prestar toda assistência para os filhos porque são pais e mães, e não necessariamente porque eles têm a guarda.

O importante não é a palavra "guarda", é muito mais sobre cuidar, prestar assistência. Eu chamo isso de assistência moral e material. Com quem vai morar é algo é fixado, mas que pode mudar de acordo com a situação.

ConJur —  Em seu livro, a senhora afirma que, no ordenamento jurídico brasileiro, a criança tem um papel de marginalidade. Por quê?
Elisa Cruz
—  Primeiro porque o Código Civil não coloca a criança como centro para se pensar nos cuidados que ela demanda. Quando lemos o Código Civil, o texto fala da guarda a partir da perspectiva dos pais, sempre surge como uma disputa entre os pais, não como um direito da criança, de ser cuidada. Isso faz com que, na prática, se dê muito mais ênfase nas disputas entre os adultos do que para saber o que está acontecendo com a criança, quais são as necessidades dela ou o que ela gostaria de comunicar que está acontecendo.

Então, a própria construção do texto legal já é pré-orientada a partir do plano dos pais, e desconsidera as crianças. Eu sei que temos princípios constitucionais que tentam resolver isso, mas acho que a construção base não tem dado conta de recolocar a criança como ponto mais importante desse debate.

Até a forma como a legislação se refere às crianças demonstra o papel de marginalidade, não dando a ela o papel de sujeito de direitos. De uma forma sintética, até 1990 o Brasil só conhecia as expressões "menor" e "filho", não se falava em "criança". Filho era aquele da família bem tradicional e menores eram, na época, os delinquentes, os abandonados, os em situação irregular. Isso muda com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que introduz a palavra "criança". Mas o Código Civil continuou falando só em filho. O ECA não conseguiu ter força suficiente para mudar a forma que o Direito se refere à criança.

Já usamos a expressão "Direito da Criança", mas a compreensão, a sedimentação da criança como pessoa, como titular de direitos — por isso o uso da nomenclatura "criança" é importante , isso ainda está acontecendo.

ConJur —  Nesse sentido, o ECA foi o maior marco para o Direito de Família e da Criança no Brasil?
Elisa Cruz
—  Não, acredito que o maior marco é a Constituição e vou defender isso sempre, porque foi ela que introduziu os princípios-base de todo o Direito da Infância: o melhor interesse e a proteção integral. O ECA vai detalhar, vai fazer toda a construção, mas vai fazer isso partindo da Constituição. A Constituição foi muito importante para acabar com o uso da palavra "menor", foi ali o momento-chave para não se usar mais essa expressão e depois o ECA complementou essa mudança, mas não teve influência profunda no tema da guarda entre pais, por exemplo.

ConJur —  O que é então o princípio da proteção integral?
Elisa Cruz
—  O Brasil teve dois códigos de menores, um de 1927 e um de 1979, e na discussão do projeto legislativo do código de 1979 tem um momento bem interessante, em que um congressista diz que "a criança não tem capacidade de tomar decisões, ela não sabe o que deve acontecer na vida dela". Eu acredito que essa frase espelha a mudança que a gente teve, porque esse é um argumento que não corresponde mais ao momento que vivemos e que não corresponde à proteção integral, instituída pela Constituição.

O nome faz parecer que é só proteger, mas, na verdade, a proteção integral tem duas faces. Uma a é de proteger, porque sabemos que a criança é uma pessoa em desenvolvimento, ela não tem capacidade de trabalho, ela não tem a organização que uma pessoa adulta tem; então, precisa ser protegida. A segunda faceta dessa doutrina é reconhecer que a criança tem direitos, porque é impossível que alguém se desenvolva sem que possa participar dessa sua própria construção. Então, mesmo reconhecendo que a criança ou adolescente são pessoas em formação, devemos respeitar que elas têm consciência de si. Essa segunda face vai dizer que a proteção integral envolve reconhecer a criança como pessoa, e que tem os mesmos direitos que qualquer um de nós. Inclusive, ela tem o direito de falar, tem o direito de ser ouvida sobre aquilo que importa, aquilo que vai impactar a decisão dela; [isso] é uma das partes que compõem a proteção integral.

Este ano eu tive um exemplo bem concreto do quanto é importante ouvir. Tive um caso de uma adolescente que foi ouvida no processo de guarda e ela lindamente conta todos os porquês, porque preferia morar em tal lugar, o que ela não gostava do outro, e era perceptível na fala dela que eram coisas que eram importantes para ela. Então, as decisões sobre guarda precisam levar a criança em consideração.

ConJur —  O que a senhora quer dizer quando sugere a guarda como cuidado em seu livro?
Elisa Cruz
—  Esse é o ponto central do livro. Por cuidado temos vários sentidos, há várias formas de entender o cuidado. Para mim, cuidado é sobre assistência, e assistência é cotidiana. Cuidar envolve ter atenção com as necessidades do outro. Essa é uma parte de cuidado, essa constante preocupação com as necessidades do outro.

Mas discuti no livro que esse cuidado precisa observar quais são as possibilidades de quem vai exercer o cuidado, por isso que eu chamo o cuidado de relacional, pois ele diz respeito tanto a quem será cuidado como a quem cuida. A partir disso precisamos pensar novamente a criança como ponto central, quais as necessidades da criança e distribuir isso entre os pais, de acordo com o que eles podem. Precisamos fazer com que a organização da gestão dos filhos funcione. A pandemia mostrou muito isso, quando todo mundo se recolheu foi possível perceber, nos casos em que as crianças moravam com a mãe, que as mulheres ficaram muito sobrecarregadas. Então é preciso olhar para isso e pensar além do acordo de guarda que dizia que o pai ficava com a criança a cada 15 dias, e tentar fazer uma mudança.

A questão do cuidado é exatamente essa, ver quais são as necessidades e distribuí-las para quem tem essa responsabilidade, mas não fazer de qualquer jeito, fazer pensando, fazer propondo. É essa a ideia, então no final, em vez de discutir sobre com quem a criança fica, na verdade temos que pensar assim: qual é a participação que cada pai ou cada mãe pode dar na assistência diária ou no cotidiano dessa criança? Então acho que essa é a grande inversão que eu quero propor.

ConJur —  Como pode ocorrer essa inversão?
Elisa Cruz —  Dois elementos são fundamentais para essa modificação. Primeiro, embora não tenha feito uma tese feminista, eu tenho que ser sincera que um dos elementos é, sim, ver qual o papel da mulher no cuidado, porque temos várias autoras brasileiras, negras, importantíssimas, que falam do assunto e mostram que a mulher tem uma sobrecarga no exercício de cuidado com os filhos. Modificar esse pensamento é muito importante.

O segundo é rever a prioridade, colocando a criança como protagonista. Então, em vez de pensar o que os adultos podem, primeiro pensamos no que a criança precisa, e refaz o caminho. Então, para mim, primeiro olha a criança, cumpre o que é o melhor interesse e a proteção integral e em segundo lugar faz essa autocrítica feminista. Eu acho que nesses dois termos haveria avanços significativos nas decisões, e, mais, diria até que poderiam ser construídas soluções judiciais muito mais duradouras.

ConJur —  A assistência material e moral a que a senhora se referiu no começo da entrevista entram nessa ressignificação da guarda como cuidado?
Elisa Cruz
—  Sim, tentei organizar o que seriam os cuidados, então classifiquei em grupos. Um grupo é a assistência pessoal, que é o relacionamento com a criança e o incentivo para a criança se relacionar com outras pessoas, [o que] inclui questões de educação, não só a educação formal, mas também educação informal, que é o dia a dia.

Em segundo lugar existiria a assistência material, que as pessoas associam a alimentos, e parece que é só dinheiro. Para mim, a assistência material e de alimentos têm um sentido mais amplo, um sentido de contribuir para a formação daquela criança. Vai desde a saúde, ao remédio, à comida, mas é também o lugar onde mora ou os brinquedos, comprar um livro, ou seja, por alimentos temos que entender tudo aquilo que é parte da vida da criança. Alimento está relacionado a muitas outras coisas, ele está relacionado a quem essa criança vai se tornar. Dinheiro é parte integrante do mundo que a gente vive, então, sim, tem o aspecto patrimonial, mas realmente não se esgota.

ConJur —  Quais as consequências do descumprimento da guarda como cuidado?
Elisa Cruz
—  Essa foi a parte mais difícil. Eu não dou respostas concretas no livro, não temos uma solução jurídica adequada para isso, e o principal exemplo é a violação da convivência, a violação do estar junto, dessa participação. Eu queria muito dar uma resposta exata ou concreta sobre o que fazer; infelizmente, se o pai ou a mãe recusa exercer a convivência, não existem, pelo menos na minha opinião, instrumentos jurídicos para conseguir forçá-lo.

ConJur —  Qual a conclusão que o livro chega sobre a guarda compartilhada?
Elisa Cruz
—  Existe um incentivo muito grande à guarda compartilhada no Brasil, e eu acredito que foi um avanço importante. O livro não é para ir contra a guarda compartilhada, ela foi muito importante para vencer muitas resistências, e principalmente para começar a vencer a ideia de que a guarda era sempre da mulher. Eu só defendo no livro que precisamos avançar, a guarda compartilhada foi um momento importante, mas podemos caminhar um pouco mais a frente.

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