Opinião

O perigo da ressalva na decisão sobre o Difal

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28 de abril de 2021, 15h07

Muito se tem debatido sobre as recentes decisões do STF que, ao julgar em conjunto a ADI 5.469 e o RE 1.287.019, entendeu pela inconstitucionalidade do Convênio Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) n° 93/2015 na parte em que cuidou de regulamentar a exigência do diferencial de alíquotas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) em operações interestaduais destinadas a consumidor final, não contribuinte do imposto, após as alterações promovidas pela EC n° 87/2015.

Mesmo antes da publicação do acórdão — o que ainda não ocorreu até a data de publicação deste artigo —, o "universo" jurídico, atingido pela surpreendente alteração da jurisprudência do Excelso Pretório, viu-se instigado a se manifestar sobre o tema, certamente por ter enxergado o efeito borboleta da decisão, que parece ter passado despercebido pelos ministros da corte.

Em um placar apertado, por seis votos a cinco, o Supremo Tribunal Federal, colocando em risco o federalismo no Brasil, entendeu que não cabe aos estados, nem mesmo mediante deliberação unânime através de convênio celebrado nos termos da Lei Complementar n° 24/75, uniformizar procedimentos para a aplicação de dispositivo constitucional que dispõe expressamente sobre a forma como deve ser repartido o ICMS devido nas operações interestaduais, alterada com o advento da EC n° 87/2015.

Trocando em miúdos, na visão do STF, os Estados não podem exercer sua competência tributária diretamente atribuída pela Constituição, cujas normas gerais já foram trazidas pela LC 87/96, enquanto não houver a tutela da União Federal mediante nova lei complementar.

Não se discute que de fato há um fluxo a ser respeitado para que se institua legitimamente o ICMS, em suas diferentes materialidades, sendo imprescindível a existência de uma lei complementar disciplinadora de normas gerais do imposto, a guiar os legisladores estaduais.

Dada a relevância desse imposto para as finanças estaduais, para garantir o exercício da competência constitucional dos estados até que fosse editada tal lei complementar, o constituinte originário permitiu, inclusive, que os próprios estados e o Distrito Federal, mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, fixassem normas para regular provisoriamente a matéria (artigo 34, §8º do ADCT) [1].

A necessidade de prévia lei complementar para o exercício da competência estadual decorre do disposto no artigo 146, III, "a", da Constituição Federal, que atribui ao legislador nacional o estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre os fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos discriminados na Constituição, tendo o artigo 155, §2º, XII, reforçado tais aspectos no que tange ao ICMS.

Todavia, disso não resulta a indispensabilidade de previsão expressa na lei complementar para permitir a cobrança do diferencial de alíquotas do ICMS nas aquisições interestaduais de bens destinados a consumidor final.

Conforme dispunham os incisos VII e VIII do §2º do artigo 155 da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), em sua redação original, em relação às operações e prestações que destinassem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, dever-se-ia adotar a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto, e a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele, cabendo ao estado da localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual na primeira hipótese.

Observe-se que a figura do diferencial de alíquota foi prevista pelo constituinte de 1988 como forma de equilíbrio federativo, prestigiando os estados consumidores, ao atribuir ao estado de destino a parcela do ICMS correspondente à diferença entre a sua alíquota interna e a interestadual, repartindo, dessa forma, a arrecadação tributária entre os estados de origem e destino da operação ou prestação.

Para resguardar o cumprimento do objetivo constitucional de reduzir as desigualdades inter-regionais, o artigo 155, §2º, VI, da Constituição vedou ainda a previsão de alíquotas internas em patamares inferiores aos das interestaduais, salvo se houver deliberação em contrário dos estados, por meio de convênio celebrado no âmbito do Confaz.

E essa sistemática constitucional vinha se aplicando normalmente, desde o Convênio ICMS n° 66/1988, restando inalterada pela Lei Complementar n° 87/96.

A Emenda Constitucional n° 87/2015 reacendeu a discussão acerca da necessidade de prévia lei complementar para a cobrança do diferencial de alíquota pelo estado de destino, mas em verdade ela em nada alterou os aspectos da hipótese de incidência do ICMS nas operações interestaduais.

Apenas equiparou o regime de partilha do ICMS entre os entes federativos nas operações interestaduais, seja o destinatário contribuinte ou não do imposto. A partilha do ICMS devido, assim como o sujeito ativo nas operações interestaduais, não são matérias reservadas à lei complementar, uma vez que decorrem diretamente da Constituição Federal.

Nesses termos, não há qualquer necessidade de modificação ou acréscimo na LC 87/96, que continua regulamentando o fato gerador (artigo 2º, I), o contribuinte (artigo 11, I, "a") e a base de cálculo aplicável (artigo13, I).

Portanto, não haveria nenhuma inconstitucionalidade na cobrança da diferença entre as alíquotas estadual e interestadual, mediante previsão nas leis de cada estado, uma vez que não foram alterados quaisquer dos elementos tributários para os quais são exigidos lei complementar (artigo 146, III, da CF/88).

No entanto, para uniformizar o procedimento de tributação das operações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte, os estados e o Distrito Federal, em uma manifestação de cooperação e equilíbrio federativo, entenderam por bem editar o Convênio Confaz n° 93/2015.

Não se pretende debater aqui o mérito da decisão do STF, cujo placar apertado no julgamento demonstra que o assunto é polêmico, mas apenas demonstrar a imperativa necessidade de modulação de seus efeitos, sem ressalvas, a partir de 1° de janeiro de 2022.

Como bem destacou o eelator da ADI 5469, ministro Dias Toffoli, o objetivo da Emenda Constitucional nº 87/2015 "foi reequilibrar as 'distorções no equilíbrio econômico entre as unidades federadas' provocadas pelo avanço do comércio interestadual, especialmente via comércio eletrônico, estabelecendo que 'parte dos recursos auferidos pelo recolhimento do ICMS [fosse] canalizada para o Estado de destino, numa justa adequação à realidade dos fatos" (trechos do parecer aprovado na CCJ do Senado Federal relativo à PEC nº 7/15).

Fica claro que o constituinte derivado não quis prestigiar, ou favorecer, ou estabelecer privilégios para as operações interestaduais, mas apenas repartir o ICMS devido nesses casos, em face de enorme incremento do e-commerce, por uma razão de justiça federativa. Afinal, a manifestação de riqueza tributada pelo ICMS é o consumo. Nada mais justo, portanto, do que atribuir o imposto ao estado em que estiver localizado o consumidor.

O incremento do comércio eletrônico, que já era uma tendência, dada a evolução tecnológica, foi notadamente potencializado com a pandemia da Covid-19. Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (Abcom), no primeiro semestre de 2020, evidencia alta considerável no ritmo das vendas online coincidente com os períodos de fechamento do comércio, aliada à abrupta retração no setor nos momentos de flexibilização das medidas de isolamento, com a reabertura do comércio físico.

Paralelamente, o reconhecimento pelo STF da repercussão geral da matéria relativa à exigibilidade do diferencial de alíquotas também nas operações interestaduais destinadas a consumidores finais não contribuintes do ICMS, que acabou coincidindo com o início do isolamento, gerou em diversos contribuintes, que nunca haviam questionado a alteração constitucional na repartição do imposto entre os estados e cumpriam integralmente as disposições das leis estaduais já adequadas à nova realidade constitucional, uma verdadeira corrida para o ajuizamento de ações judiciais, impugnando a regulamentação constitucional dada pelo Convênio 93/2015.

Andou bem o ministro Dias Toffolli ao propor a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade das cláusulas primeira, segunda, terceira, e sexta do convênio para que a decisão produza efeitos a partir do exercício financeiro seguinte à conclusão do julgamento (2022).

Como bem ponderado em seu voto na ADI, "a EC nº 87/15 e o convênio impugnado, o qual a regulamentou, vieram do objetivo de melhor distribuir entre os estados e o Distrito Federal parcela da renda advinda do ICMS nas operações e prestações interestaduais"

Até o advento da EC n° 87/2015, as operações interestaduais destinadas a consumidores finais não contribuintes do imposto eram integralmente tributadas pelo estado de origem, à alíquota interna do estado remetente. E esse sistema encontrava-se em plena vigência até o advento da Emenda Constitucional n° 87/2015.

A declaração de inconstitucionalidade do Convênio ICMS n° 93/2015 não tem o efeito de repristinar esta antiga sistemática, mesmo porque ela foi revogada por uma norma constitucional que permanece válida.

Com isso, cria-se uma situação em que os estados de origem das mercadorias não podem exigir o imposto integralmente nas operações interestaduais, nem os estados de destino podem exigir sua parcela na arrecadação, o que torna as aquisições interestaduais nesse período de vácuo normativo muito mais vantajosas e menos onerosas que as aquisições internas.

Afinal, o consumidor final não contribuinte que adquirir mercadorias em outro estado só irá suportar o ônus do ICMS à alíquota interestadual, que, como todos sabemos, é bem inferior às alíquotas internas.

Ora, o objetivo do constituinte derivado ao alterar a forma de tributação nas operações interestaduais não foi o de torná-las mais vantajosas do que as operações internas, mas apenas o de repartir o imposto entre os estados de origem e destino das mercadorias.

E o que é mais grave: a diferença brutal de carga tributária entre os dois tipos de operação (interna e interestadual) viola frontalmente os princípios da isonomia (artigo 150, II) e da não discriminação (artigo 152), ambos cláusulas pétreas da nossa Constituição.

Apesar da discordância quando ao mérito da decisão que acabou prevalecendo na Suprema Corte, corretíssima a proposta de modulação. O que não cabe é a ressalva às ações já ajuizadas, ressalva esta que, além de não ter sido proposta no voto do relator, cria uma indesejável e inconstitucional condição de vantagem concorrencial para um grupo de contribuintes em detrimento de outro, sem falar na tremenda insegurança jurídica quanto à manutenção da forma de tributação nos moldes do Convênio 93/2015 até 2022.

Afinal, a prevalecer a ressalva constante da ata de decisão, as operações interestaduais promovidas por contribuintes que ajuizaram ações antes do julgamento da ADIn sofrerão incidência apenas da alíquota interestadual? E os demais contribuintes serão tributados na forma do Convênio 93/2015? Teremos dois regramentos diferentes para o ICMS nas operações interestaduais até 2022?  

A ressalva das ações já ajuizadas, no caso específico em análise, gera diversas incongruências, e ocasiona inconstitucionalidades muito mais graves do que a decisão entendeu afastar (suposta necessidade de lei complementar para instituição do Diferencial de Alíquota do ICMS (Difal), previsto diretamente pelo texto constitucional).

Além de acarretar uma enorme perda de receita para os estados, colocando-os em uma "situação inquestionavelmente pior do que aquela na qual se encontravam antes da emenda constitucional", discrimina entre contribuintes que se encontram em situação equivalente, prestigia as aquisições interestaduais em detrimento das operações internas, estabelece tratamento tributário diferenciado, privilegiando injustificadamente o setor de comércio eletrônico e mais, mesmo entre as empresas de comércio eletrônico, coloca aquelas que ajuizaram ações judiciais em posição muito mais favorável do que a de seus concorrentes.

Assim, espera-se uma adequação da decisão proferida em 24/2/2021 com a exclusão da expressão "ressalvadas as ações já ajuizadas", aplicando-se a modulação indistintamente a toda e qualquer operação interestadual destinada a consumidor final não contribuinte até 1° de janeiro de 2022.


[1] O que foi feito por meio do Convênio n° 66/1988.

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