Ambiente Jurídico

Litígios climáticos na Argentina

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24 de abril de 2021, 8h00

A Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina (CSJN), em 21.06.2019, com o voto dos ministros Juan Carlos Maqueda, Ricardo Lorenzetti e Horacio Rosatti, rejeitou, por unanimidade, a alegação de inconstitucionalidade da Lei de Conservação dos Glaciares (26.639)[1] apresentada pela empresa mineradora Pachón S.A, com o fundamento de que as questões levantadas em sede recursal eram substancialmente semelhantes às examinadas, em 4 de junho do mesmo ano, pela Corte, no processo CSJ 140/2011 (47-B)/ CS1, "Barrick Exploraciones Argentinas S.A. y Exploraciones Mineras Argentinas S.A. c/ Estado Nacional s/ acción declarativa de inconstitucionalidad".[2] Portanto, a CSJN considerou que as mineradoras não haviam demonstrado que o sistema de preservação dos glaciares estabelecido pelo Congresso Nacional, com aprovação de  legislação específica,  pudesse gerar qualquer dano ou prejuízo econômico aos direitos de mineração das empresas. Do mesmo modo, a Província de San Juan, que havia aderido à pretensão das empresas demandadas, no sentido da obtenção da  declaração inconstitucionalidade da lei, também não demonstrou até que ponto a existência da Lei de Conservação dos Glaciares  lhe causou ou poderia lhe causar prejuízos financeiros.

Spacca
Legenda

Em suma, os ínclitos julgadores, em boa hora, concluíram que o regime de proteção dos glaciares deve ser analisado no contexto da ponderação dos princípios constitucionais do federalismo e da tutela ambiental. É importante, no entanto, uma apreciação mais aprofundada dos leading cases argentinos, pois estes podem servir de modelo para futuros julgados climáticos no Brasil, inclusive para aqueles litígios climáticos puros ou diretos, de cunho estruturante, que tramitam no egrégio Supremo Tribunal Federal.  

Referida lei, declarada constitucional pela CSJN, foi sancionada em setembro de 2010, e estabeleceu os "requisitos mínimos para a preservação dos glaciares e do ambiente periglacial", que foram declarados, inclusive, como bens públicos no aspecto jurídico.  Em 2011, a empresa transnacional Barrick Gold S.A. recorreu ao Tribunal Federal de San Juan pedindo a declaração de inconstitucionalidade do artigo 6o.  da lei[3], que estabelece que "as atividades que possam afetar o estado natural dos glaciares são proibidas …  e esta restrição inclui as que têm lugar no ambiente periglacial".

As empresas Barrick e Glencore, na realidade,  bom contextualizar, interpuseram um total de três recursos ao Tribunal Federal de San Juan para assegurar os empreendimentos minerários de Veladero e Pascua Lama. O Juiz Federal Juan Miguel Galvéz chegou a dar provimento parcial aos recursos para cautelarmente suspender a aplicação da Lei de Proteção dos Glaciares na província. Contudo, as causas permaneceram pendentes até o ano de 2019, quando a CSJN, com fundamentos constitucionais, as extinguiu com o julgamento do mérito. Aliás, durante o trâmite processual dos litígios climáticos, a Corte ordenou, por cautela, a realização do Inventário Nacional dos Glaciares como estabelecido pela referida Lei de regência.[4]

Segundo os dados do Inventário Nacional dos Glaciares, de maio de 2018, interessante observar que a Argentina tem 8.484 km2 cobertos por gelo (5.769 na Cordilheira dos Andes e 2.715 nas Ilhas do Atlântico Sul). Os glaciares e periglaciares constituem um total de 16.968 corpos sendo que 16.078 estão localizados na Cordilheira dos Andes e 890 nas ilhas do Atlântico Sul.[5]

De acordo com a Fundación Ambiente y Recursos Naturales (FARN) e outras organizações, existem 44 projetos de mineração na Argentina que violam a lei e a Constituição, entre os quais a mega-mina Veladero, na província de San Juan, operada pela Barrick Gold.

A própria empresa reconheceu que, no projeto Veladero, "o gelo é o principal agente morfogênico da região". Enquanto os pedidos de declaração de inconstitucionalidade da Lei dos Glaciares continuaram os seus trâmites pelas Cortes, apenas a titulo ilustrativo, o projeto Veladero, aprovado por ato governamental, foi responsável pelo derramamento de 224.000 litros de cianeto no meio ambiente, em virtude do qual, a Barrick Gold teve de pagar uma multa administrativa de 9, 8 milhões de dólares ao Estado de San Juan.[6]

Ao mesmo tempo, houve outro litígio paralelo instaurado que tramitou na justiça federal do país sob a jurisdição do Juiz Sebastián Casanello do Tribunal Federal e teve novamente como a autora a Barrick Gold. Na ação, a demandante argumentou que os seus projetos não estavam localizados em áreas glaciais ou periglaciais e, portanto, "a proteção constitucional da Lei não afetava os seus interesses".

As decisões nos mencionados leading cases pela  CSJN fornecem um novo cenário para a  discussão sobre a relação entre os conhecidos mega-projetos de mineração e a proteção integral do meio ambiente. Isto porque com a declaração de constitucionalidade da Lei dos Glaciares, foi reafirmado pelo Poder Judiciário argentino o "direito a um ambiente saudável e equilibrado, adequado ao desenvolvimento humano". Aliás, este direito está expresso no artigo 41 da Constituição Nacional, emendada no ano de 1994. Ou seja,

"Artículo 41: Todos los habitantes gozan del derecho a un ambiente sano, equilibrado, apto para el desarrollo humano y para que las actividades productivas satisfagan las necesidades presentes sin comprometer las de las generaciones futuras; y tienen el deber de preservarlo".

Os precedentes climáticos, em uma abordagem das suas finalidades estratégicas, fortalecem indiretamente as eventuais futuras ações que podem ser ajuizadas por demandantes estatais e por organizações sociais que pretendem o cumprimento e a concretização das disposições da Lei Geral do Meio Ambiente de 2002 e, igualmente, das leis dos orçamentos mínimos alocados para a proteção ambiental argentina.

Dentre os fundamentos dos leading cases, importante grifar, que a CSJN declarou que "nenhuma interpretação é constitucionalmente admissível se esvaziar o modelo federal do Estado ou, ainda, o  conteúdo do projeto ambiental previsto na Constituição" e que "quando existem direitos de incidência coletiva relacionados com a proteção do meio ambiente, a proteção dos ecossistemas e da biodiversidade deve ser considerada de forma sistêmica". A Corte, igualmente, nas decisões, mencionou que a Argentina aderiu ao Acordo de Paris, em 2015, e que deve observar a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, em especial, a necessária ação climática.

Os precedentes podem ser considerados, igualmente, como uma consagração do princípio da precaução a ser observado por entes públicos e privados. Aliás, na Argentina, é conhecida a lição de Cafferatta sobre o aludido princípio perfeitamente aplicável ao direito das mudanças climáticas:

“…el principio precautorio, es una herramienta de defensa del ambiente y la salud pública, que amplía enormemente los límites de acción del Derecho de Daños, con un sentido de prevención y anticipatorio, intenso, enérgico, fuertemente intervencionista, con la finalidad de impedir la consumación de un daño grave e irreversible”.[7]

Referidos precedentes deixam cada vez mais evidente que os litígios climáticos (intrinsicamente relacionados aos objetivos de precaução e de prevenção) têm sido decididos com a necessária aplicação do direito constitucional pelo Poder Judiciário. Relevante citar que existe uma tendência de aumento da incidência dos litígios climáticos constitucionais percebida pelas acuradas e criteriosas pesquisas dos juristas Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer. Referem os festejados autores:

"Os exemplos citados dizem respeito ao fenômeno recente e em franco crescimento da litigância climática, que já se faz presente no Brasil, como dá conta, entre outros, mas com o merecido destaque, três demandas ajuizadas no STF ao longo do ano de 2020, ações que pautaram a temática de forma direta, ressaltando-se que no bojo de duas delas foram realizadas audiências públicas de grande repercussão.

Além da ADPF 708 ("caso Fundo Clima") e ADO 59 ("caso Fundo Amazônia"), cujas audiências públicas foram realizadas, respectivamente, nos meses de setembro e outubro de 2020, destaca-se também a última e mais abrangente das ações ajuizadas (ADPF 760), na qual, por iniciativa de diversos partidos políticos e com a forte atuação, na condição de amicus curiae, de diversas entidades ambientalistas, são apontadas "graves e irreparáveis" lesões a preceitos fundamentais, decorrentes de atos comissivos e omissivos da União e dos órgãos públicos federais, que obstaculizam significativamente a implantação e execução de medidas voltadas à redução significativa da fiscalização e do controle do desmatamento na Amazônia.

Isso demonstra que, a exemplo do que vem ocorrendo em outros países, a assim designada litigância climática está conquistando aos poucos o seu espaço de atuação também no Brasil, convocando o sistema de Justiça, em especial aqui o Poder Judiciário, a cada vez mais assumir o seu papel de guardião da ordem constitucional, com destaque para a proteção e promoção de um direito fundamental a um sistema climático íntegro e estável”.[8]

No caso brasileiro, como demonstrado por boa tradição, o egrégio Supremo Tribunal Federal, por certo, não abdicará do exercício pleno de sua competência constitucional como guardião da constituição e dos direitos fundamentais (artigo 102, caput, CF), entre os quais, do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado e, talvez, do direito fundamental a um sistema climático, íntegro e estável (artigo 225, caput, CF), para que sejam evitados, de modo efetivo, prejuízos — às vezes catastróficos — humanos, sociais, ambientais, econômicos e políticos em detrimento das gerações atuais e futuras. Tramita, aliás, no Congresso Nacional, a PEC 233/2019, que tem por escopo integrar a agenda climática expressamente ao texto da Constituição Cidadã. Neste contexto, analisados com total prudência, sob a ótica constitucional, os precedentes argentinos são modelos que não podem ser desprezados pelo direito das mudanças climáticas pátrio.


[1] ARGENTINA. Ministerio de Justicia y Derechos Humanos. Ley 26.639. Régimen de Presupuestos Mínimos para la Preservación de los Glaciares y del Ambiente Periglacial. Disponível em: http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/170000-174999/174117/norma.htm. Acesso em: 23.04.2021.

[2] ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de La Nación. Centro de Informacion Judicial. La Corte Suprema volvió a convalidade la constitucionalidade de la ley de preservación de los glaciares, rechazando um planteo de minera Pachón. Disponível em: https://www.cij.gov.ar/nota-34868-La-Corte-Suprema-volvi–a-convalidar-la-constitucionalidad-de-la-ley-de-preservaci-n-de-los-glaciares–rechazando-un-planteo-de-minera-Pach-n.html. Acesso em: 14 mar. 2021.

[3] Articulo 6º — Actividades prohibidas. En los glaciares quedan prohibidas las actividades que puedan afectar su condición natural o las funciones señaladas en el artículo 1º, las que impliquen su destrucción o traslado o interfieran en su avance, en particular las siguientes:

a) La liberación, dispersión o disposición de sustancias o elementos contaminantes, productos químicos o residuos de cualquier naturaleza o volumen.Se incluyen en dicha restricción aquellas que se desarrollen en el ambiente periglacial;

b) La construcción de obras de arquitectura o infraestructura con excepción de aquellas necesarias para la investigación científica y las prevenciones de riesgos;

c) La exploración y explotación minera e hidrocarburífera. Se incluyen en dicha restricción aquellas que se desarrollen en el ambiente periglacial;

d) La instalación de industrias o desarrollo de obras o actividades industriales.

[4] Articulo 3º — Inventario. Créase el Inventario Nacional de Glaciares, donde se individualizarán todos los glaciares y geoformas periglaciares que actúan como reservas hídricas existentes en el territorio nacional con toda la información necesaria para su adecuada protección, control y monitoreo.

[5] ARGENTINA. Ministerio de Ambiente y de Desarrollo Sustentable. Resumen ejecutivo de los resultados del Inventario Nacional de Glaciares Disponível em: http://www.glaciaresargentinos.gob.ar/wp-content/uploads/resultados_finales/informe_resumen_ejecutivo_APN_11-05-2018.pdf. Acesso em: 23.04.2021.

[6] EXAME. Argentina denuncia mineradora Barrick Gold por vazamento. 22.09.2016.  Disponível em: https://exame.com/negocios/argentina-denuncia-mineradora-barrick-gold-por-vazamento-em-mina-de-ouro/. Acesso em: 23.04.2021; LA NACIÓN. Veladero. Por el derrame, el gobierno de San Juan aplicó a Barrick una multa de $ 145 millones. Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/sociedad/por-el-derrame-el-gobierno-de-san-juan-aplico-a-barrick-una-multa-de-145-millones-nid1879036/. Acesso em: 22.04.2021.

[7]CAFFERATTA, Néstor A. Naturaleza jurídica del principio precautorio. R. C. yS. 2013 IX, 5.

[8] SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFFER, Tiago. Notas acerca do direito fundamental à integridade do sistema climático.  In: Conjur. 23.04.2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-23/direitos-fundamentais-notas-acerca-direito-fundamental-integridade-sistema-climatico. Acesso em: 23.04.2021.

Autores

  • é juiz federal, professor no programa de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor coordenador de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito, visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg — Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht e diretor de Assuntos Internacionais do Instituto O Direito Por um Planeta Verde.

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