Direto do Carf

A apropriação extemporânea de créditos de PIS/Cofins segundo o Carf

Autores

  • Thais de Laurentiis

    é advogada sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris) especialista pelo Ibet graduada pela Faculdade de Direito da USP árbitra no CBMA professora do mestrado profissional do IBDT professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

  • Maysa de Sá Pittondo Deligne

    é conselheira titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento doutora e mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) professora do corpo permanente do mestrado profissional do IDP coordenadora do grupo de pesquisa Temas Atuais de Direito e Processo Tributário e pesquisadora do Observatório da Macrolitigância Fiscal (IDP/Brasília) diretora da Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt) e pesquisadora responsável pela elaboração do relatório sobre a Reforma do Processo Administrativo da Associação dos Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf (Aconcarf).

14 de abril de 2021, 10h53

A controvérsia que será abordada na coluna desta semana diz respeito à forma de apropriação de crédito extemporâneo relativamente à Contribuição ao Programa de Integração Social (PIS) e à Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins).

Spacca
Muito embora seja discussão de longa data conhecida pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) [1], ainda não existe uma posição firmemente adotada a respeito do tema na Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF). Por isso é que, apesar do assunto ter sido ricamente debatido em diversas decisões das turmas ordinárias (e.g. Acórdãos 3402-002.603, 3403-002.717, 3302-007.885 e 3201-006.152), neste texto a luz será focada sobre os julgamentos proferidos pela 3ª Turma da CSRF.

Vejamos primeiramente a legislação que delimita os contornos da controvérsia.

Cuidando da sistemática não cumulativa de apuração e recolhimento da contribuição ao PIS e da Cofins, a legislação ordinária (Lei n° 10.637/2002 e Lei n° 10.833/2003) apresenta dispositivos determinando que os créditos devem ser descontados sobre os gastos incorridos no mês em que ocorreram (artigo 3º, §1º, inciso II), mas, em seguida, afirma que o crédito não aproveitado em determinado mês poderá sê-lo nos meses subsequentes (artigo 3°, §4º, das mesmas Leis n° 10.637/2002 e n° 10.833/2003).

Portanto, dúvida não há: a legislação permite que os créditos das contribuições sejam aproveitados afora do mês de competência. A confusão se coloca, na realidade, sobre o procedimento a ser adotado pelos contribuintes para requerer tais créditos. Mais especificamente, sobre a necessidade de retificação de suas declarações para tanto.

A Receita Federal em diversas oportunidades manifestou-se no sentido de que é possível a alteração dos créditos da não cumulatividade referentes a período pretérito, desde que não decorrido o prazo de cinco anos da ocorrência do fato que gerou o respectivo direito, sendo exigida, porém, a entrega de Demonstrativo de Apuração de Contribuições Sociais (Dacon) e Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais (DCTF) retificadores relativos aos períodos com os créditos alterados (e.g. Solução de Consulta n° 36, de 07/02/2011) [2].

Por sua vez, a 3ª Turma da CSRF, nos últimos anos (2018 a 2020), proferiu decisões não homogêneas, ora ratificando o entendimento da Receita Federal, ora afastando-o.

Cuidando inicialmente dos precedentes que entenderam ser imprescindível a retificação das declarações pelos contribuintes para que façam jus ao aproveitamento extemporâneo das contribuições, destaca-se inicialmente o Acórdão 9303-007.510, de 17/10/2018. A maioria dos membros do colegiado entendeu que, no caso concreto, pelo fato de a recorrente não ter apresentado os Dacons com a apuração dos créditos extemporâneos e dos saldos credores trimestrais, nem os respectivos Dacons retificadores, esses créditos seriam desprovidos de certeza e liquidez e, por conseguinte, impassíveis de concessão.

Já em 16 de outubro de 2019, a turma julgadora proferiu o Acórdão 9303-009.653, oportunidade em que foram sublinhados os atos normativos complementares que tangenciam a problemática. Em primeiro lugar, colocou-se a IN SRF nº 600/2005 [3], que disciplinou o ressarcimento/compensação no âmbito federal, tratando especificamente dos saldos acumulados ao final de cada trimestre-calendário em seu artigo 22. Afirma-se em seguida que "o instrumento legal para se apurar os créditos da contribuição é o Dacon mensal que deve ser preenchido e transmitido a Receita Federal pelo contribuinte". Citando então o artigo 11 da IN SRF nº 590/2005, a respeito dos pedidos de alteração nas informações prestadas no Dacon (formalizados por meio de Dacon retificador), a CSRF conclui que nos casos em que se deixa de apurar (apropriar) créditos relativos a determinados meses, é imperiosa a retificação do Dacon relativo ao período em que o crédito não foi apropriado, a fim de incluí-lo na apuração.

Alguns julgamentos seguindo essa linha de entendimento foram publicados em 22 de janeiro de 2020 [4]. É o caso do Acórdão 9303-009.738, do qual se destaca o seguinte trecho:

"A apuração de tais valores se dá justamente por meio das declarações fiscais do contribuinte (IN SRF 384/2004, que instituiu a Dacon). Assim, ausente a prévia apuração do montante a ser aproveitado, mediante a devida retificação da DCTF e Dacon, não se pode ter como certa a dedução de tais créditos extemporâneos pelo contribuinte. Até porque, é mediante os acertos promovidos que a autoridade fiscal pode identificar eventuais duplicidades no uso/apuração dos créditos.
Ora, se a legislação institui regras e instrumentos para a apuração do crédito a favor ou contra a Administração Tributária, essas regras devem ser seguidas e os instrumentos adequadamente utilizados. O crédito só será considerado apurado devidamente na medida em que tal apuração atender aos procedimentos impostos.

Portanto, não é possível a análise dos créditos extemporâneos, da forma como os declarou a contribuinte, ou seja, simplesmente consignados como desconto das contribuições no Dacon de período posterior, sem a devida recomposição através de documentos retificadores de todos os seus créditos frente aos débitos de períodos anteriores".

É possível perceber que, ao impor a obrigação de retificação das declarações, a CSRF deixou externada a preocupação sobre a não utilização dos créditos em duplicidade.

Com efeito, trata-se de preocupação bastante oportuna pois, em sendo admitida a utilização de créditos afora do mês de competência, poderiam existir situações em que os contribuintes, por erro ou por malícia, requeressem em diferentes processos administrativos de ressarcimento/compensação o direito creditório decorrente do mesmo fato.

Esta preocupação é compartilhada pela segunda linha julgamentos que foram proferidos pela CSRF nos últimos anos, a qual, porém, apresenta solução diversa para o problema.

Para essa segunda vertente, o aproveitamento afora do mês em que os gastos foram incorridos depende da comprovação, via documentação inequívoca, de não aproveitamento anterior dos créditos (entre o mês em que ocorreu o gasto e o mês de aproveitamento extemporâneo). Defende-se, assim, que é justamente com essa preocupação em mente que deveriam ser lidas as normativas da Receita Federal quanto à necessidade de retificação das declarações originais: no intuito de impedir o duplo aproveitamento de créditos, e não como um fim em si mesma.

Adotando essa linha de raciocínio, em 25 de janeiro de 2018 teve lugar o julgamento formalizado por meio do Acórdão nº 9303-006.248, dando razão as alegações da empresa recorrente [5].

Esta decisão tem como sustentáculo os seguintes pontos: 1) existe, tanto para a formalização do Dacon como da EFD Contribuição, campos específicos para o lançamento dos créditos anacrônicos; 2) como consequência jurídica para eventual equívoco no preenchimento das declarações, a legislação estabelece a aplicação de multa (artigo 7º Lei nº 10.426/2002) [6], mas não a perda do direito material (crédito da Contribuição ao PIS e da Cofins), não podendo o Fisco negar direito ao crédito em razão de vícios em obrigações acessórias3) não há previsão em lei para indeferir pedido de ressarcimento pelo fato deste abranger mais de um trimestre, em decorrência da apuração extemporânea; 4) no bojo de uma fiscalização ou diligência, constatadas incongruências nas declarações do contribuinte, os cálculos da imposição fiscal devem ser refeitas, seja para resultar em lançamento de ofício ou para avalizar crédito em prol do sujeito passivo da obrigação tributária; e 5) não é razoável que um crédito, fundamentado na documentação contábil/fiscal, requerido dentro do prazo decadencial, seja negado sob a justificativa de não ter sido retificada previamente uma obrigação acessória.

O Acórdão nº 9303-008.635, de 15 de maio de 2019 [7], vai exatamente nesta toada, inclusive citando os mesmos precedentes para fundamentar sua posição sobre a desnecessidade de retificação de declarações para o aproveitamento extemporâneo dos créditos da contribuição ao PIS e da Cofins [8].

Finalmente, em dezembro do mesmo ano de 2019, teve lugar a decisão exposta no Acórdão 9303-009.893, igualmente afastando a obrigatoriedade de prévia retificação das obrigações acessórias. Utilizando-se das palavras do acórdão recorrido (3302-002.674), o voto vencedor coloca que:

"Em casos semelhantes, relacionados à necessidade de retificação da DCTF antes da apresentação de Pedido Eletrônico de Restituição, Ressarcimento ou Reembolso e Declaração de Compensação (PER/DCOMP), entendo que não existe norma procedimental condicionando a apresentação de PER/DCOMP à prévia retificação de DCTF, embora seja este um procedimento lógico. Também entendo que a DCTF (original ou retificadora) não serve para conferir, ou não, liquidez e certeza ao crédito pleiteado em PER/DCOMP. O mesmo raciocínio aplicasse ao Dacon, que também não constitui o direito de repetição de indébito.
(…)
A bem do princípio da verdade material, não há nenhum impedimento legal para o contribuinte retificar o Dacon, ou produzir provas, no curso da apuração do seu suposto direito creditório. Tanto o é que ao transmitir o PER/DCOMP o contribuinte não está obrigado a apresentar as provas do direito alegado. Ele o fará quando a autoridade da RFB o intimar para tal.
 
Ademais, se o Dacon for prova da existência do crédito pleiteado, ele é prova indiciária, necessitando de verificações complementares para constatar-se a existência concreta do crédito pleiteado. Se essas verificações complementares não foram realizadas pela autoridade fazendária, ou se outras provas não forem oferecidas pelo sujeito passivo, não há como falar-se em existência ou inexistência de liquidez e certeza do crédito pleiteado".

Por tudo quanto exposto, pode-se concluir que, nos últimos anos, foram proferidas decisões em sentidos antagônicos pela CSRF sobre a necessidade de retificação de declarações como requisito para a apropriação de créditos extemporâneos de PIS/Cofins [9]. Tal conclusão é particularmente interessante quando contrastada com a jurisprudência das cinco turmas ordinárias da 3ª Seção do Carf, nas quais é atualmente coeso o pensar sobre possibilidade de comprovação do direito ao crédito requerido extemporaneamente, sem necessariamente que isso se dê pelas retificações de obrigações acessórias [10].

Percebemos, assim, curiosa situação, que parece ter invertido os papéis traçados pelo Decreto 70.235/72, morando a interpretação divergente da lei tributária preponderantemente na própria CSRF, e não nas turmas ordinárias que, em regra, lhe trariam dissensos a serem pacificados pela via do recurso especial.

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

 


[1] Inclusive o tema já foi tratado em artigos acadêmicos a respeito da jurisprudência do Conselho, porém trazendo um número diminuto de precedentes para análise: MARQUES, Rodrigo Cesar. Et alii. Créditos Extemporâneos do PIS e da Cofins. In PIS e Cofins à luz da Jurisprudência do Carf – Volume 2. MOREIRA JUNIOR, Gilberto Castro e PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coords.). São Paulo: MP editora, 2013, pp. 165 a 176.

[2] A IN RFB nº 1.441/2014 extinguiu, em 21/01/2014, o Dacon relativamente aos fatos geradores ocorridos a partir de 1º de janeiro de 2014, sendo que o prazo para a entrega do Dacon se encerrou em 31/12/2018, considerando o transcurso do prazo de 5 (cinco) anos a contar dos fatos geradores do PIS e da Cofins ocorridos até 31/12/2003.
(cf.
https://receita.economia.gov.br/orientacao/tributaria/declaracoes-e-demonstrativos/Dacon-demonstrativo-de-apuracao-de-contribuicoes-sociais )

[3] Revogada pela Instrução Normativa RFB nº 900, de 30 de dezembro de 2008 e com matéria atualmente disciplinada pela Instrução Normativa RFB nº 1717, de 17 de julho de 2017.

[4] Já no ano de 2021, mais precisamente em 20/01/2021 foi proferido, no mesmo sentido, o Acórdão 9303-011.146.

[5] Tal julgamento toma como base o Acórdão nº 9303-004.562, de 08/12/2016, o qual, por sua vez, sustenta-se nas razões de decidir expostas no Acórdão nº 3202-001.617, de 19/03/2005.

[6] "Artigo 7º – O sujeito passivo que deixar de apresentar Declaração de Informações Econômico-Fiscais da Pessoa Jurídica DIPJ, Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais DCTF, Declaração Simplificada da Pessoa Jurídica, Declaração de Imposto de Renda Retido na Fonte DIRF e Demonstrativo de Apuração de Contribuições Sociais Dacon, nos prazos fixados, ou que as apresentar com incorreções ou omissões, será intimado a apresentar declaração original, no caso de não apresentação, ou a prestar esclarecimentos, nos demais casos, no prazo estipulado pela Secretaria da Receita Federal SRF, e sujeitar-se-á às seguintes multas. (…)".

[7] No primeiro semestre de 2019 também foi proferido o Acórdão nº 9303-008.048 (de 20/02/2019)

[8] Cita os já mencionados Acórdãos n° 9303-006.248 e 9303-004.562.

[9] Da análise dos precedentes citados nesse artigo, constata-se que o posicionamento sobre o tema varia em razão ora da composição da Turma, ora em razão da mudança de orientação de julgadores.
Sobre situações desse jaez, ver:
ConJur – A jurisprudência do Carf e a inexistência de modelo de precedentes

[10] Com efeito, pesquisando a jurisprudência recente sobre o tema em questão, vê-se que em todas as 5 (cinco) turmas ordinárias de julgamento da 3ª Seção do Carf decidem pela prescindibilidade das retificações (vide Acórdãos 3201-006.671; 3301-008.484; 3302-007.885; 3401-006.215 e 3402-008.178). Contudo, cumpre realçar que foi proferida decisão em sentido contrário pela 2ª Turma, da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf no Acórdão 3402-007.699, mas que se distancia do entendimento tradicional da Turma de Julgamento, bem como dos mais recentes julgamentos sobre o tema.

Autores

  • é conselheira titular e vice-presidente da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, árbitra no Centro Brasileiro de Mediação a Arbitragem (CBMA), doutoranda e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), este cursado conjuntamente no Institut d`Études Politiques de Paris (SciencesPo), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário (Ibet) e professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

  • é conselheira titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, advogada tributarista licenciada, professora de Direito Tributário de cursos de pós-graduação, doutora e mestre em Direito Tributário pela USP e diretora da Abradt.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!