Opinião

Desinformação e a hostilidade para com o Direito: o caso da CPI da Covid

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9 de abril de 2021, 15h15

Spacca
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal exarada pelo ministro Luís Roberto Barroso por ocasião da apreciação do de pedido de medida cautelar no mandado de segurança 37.760 aumentou o calor das discussões políticas relativas à relação interinstitucional entre os três poderes da república.

Como se sabe, na referida decisão, o ministro Barroso, de forma monocrática, acolheu o pedido formulado por dois senadores para determinar ao presidente do senado a adoção das providencias necessárias para instalação daquela que vem sendo chamada “CPI da Covid”.

Em razão de uma campanha deliberada de desinformação jurídica a decisão do ministro tem sido acusada – de forma equivocada – de produzir uma interferência indevida do poder judiciário no âmbito do poder legislativo com a finalidade final de prejudicar o governo. Liderando essa campanha de manipulação e ressignificação deteriorada de formas jurídicas está, para perplexidade geral (será?…!), o Presidente da RePública.

No entanto, não é a primeira vez em que o chefe do poder executivo interpreta a Constituição e uma decisão do Supremo Tribunal Federal a partir de seu peculiar livre convencimento (sic). Em se tratando de questões jurídico-constitucionais, as manifestações públicas do presidente dão a entender que a máxima autoridade administrativa do país se relaciona com a Constituição de um modo que nomearíamos, hermeneuticamente, de solipsista, criando, assim, uma espécie de sentido personalíssimo a respeito do que seja a Constituição e suas normas. Às favas a tradição; vale o mundo como um Eu encapsulado em si mesmo pensa que ele é. No fundo, por tudo o que assistimos até aqui, é possível afirmar que o seu desejo mais íntimo seria experenciar uma realidade de dupla constituição, na forma emblematicamente retratada por Karl Loewenstein.1

Na representação desse desejo, a Constituição de 1988 seria apenas um instrumento simbólico, porém sem produzir um vínculo normativo com os processos de poder; enquanto a Constituição que efetivamente definiria os comportamentos e práticas dos detentores de poder e de sua relação com os governados seria aquela derivada de seu modo íntimo de interpretar a realidade; de sua particular Weltanschauung.

Vejamos o caso, por exemplo, da ADI 6341. Naquela oportunidade, o plenário do Supremo Tribunal Federal apenas afirmou aquilo que vem prescrito no artigo 23, inciso II da Constituição Federal de 1988 e que é regulamentado, no plano da legislação ordinária, pela lei 8.080/1990.

Mas foi propagada aos quatro ventos pelo chefe do executivo como a representação de uma opção do STF pela delegação da gestão da crise a governadores e prefeitos, exonerando a presidência da república de responsabilidades. Ora, vale recordar que a ação teve origem em razão da edição de uma medida provisória que alterava a lei 13.979/2020 – vale dizer: apenas um mês após a sua sanção e publicação – que, em termos práticos, avocava para o presidente a competência exclusiva para decidir sobre medidas de distanciamento e isolamento social, com abrangência nacional. Registre-se: nos termos da CF/1988 art. 23, inciso II, essa competência é comum e se enquadra nas dimensões de um federalismo cooperartivo. Diante da tentativa de resinificar o sentido do federalismo brasileiro por meio de uma medida provisória, não seria exagerado afirmar que, agindo dessa forma, o executivo promoveu uma espécie de Gleichschaltung tupiniquim que, se fosse aplicada, representaria uma clara erosão do princípio federativo bem como a desarticulação do modelo de governança do sistema de saúde instituído na lei 8.080/1990.

Diante disso, o Supremo apenas fez o óbvio: garantiu a estrutura cooperativa do federalismo, declarando o exercício compartilhado das referidas competências. Aliás, é importante ressaltar que, na perspectiva da intervenção do Tribunal na decisão do poder Executivo, o efeito da decisão não pode sequer ser entendido como traumático, uma vez que, o seu resultado efetivo implicou a construção de uma interpretação conforme à constituição do dispositivo que havia sido impugnado, preservando, dessa forma, o ato normativo do presidente dentro da ordem jurídica determinando apenas que sua interpretação teria que ser, necessariamente, aquela que refletisse o sentido projetado pelas normas constitucionais aplicadas à hipótese.

Em sua campanha de desinformação jurídica, o presidente omite fatos. Assim, ainda na hipótese da ADI 6341, apesar de proclamar aos quatro ventos que havia sido “proibido” (sic) pelo Supremo de praticar atos de gestão da crise sanitária, editou ao menos dois decretos posteriores à decisão do tribunal e que tinham por objeto regulamentar o que seria “atividades essenciais”, na articulação dos mecanismos de distanciamento e isolamento social (decretos 10.282/2020 e 10.344/2020).

Calharia perguntar: se o presidente afirma em publico que lhe foi tolhido de sua competência pelo Supremo para praticar atos de gestão da crise e, ao mesmo tempo, nos atos oficiais da presidência, praticas atos de gestão (ou de não gestão, considerando o conteudo dos supracitados decretos), estaria ele incorrendo em um tipo de venire contra factum proprium? A ironia é uma cortesia da casa.

Sem embargo, esse tipo de comportamento mostra muito bem o tipo de incômodo de uma constituição e o Estado de Direito causa em personalidades, digamos assim, autocráticas. Há nelas uma certa hostilidade para com o direito, na belíssima expressão de Bernd Rüthers.2 Afinal, o direito impõe limites e busca imprimir racionalidade aos seus atos. E limites e racionalidade é tudo o que o autocrata não quer. O autocrata quer apenas manter o seu domínio e conservar o seu poder de mando.

Lamentavelmente, é preciso também lembrar, setores da imprensa contribuem muito para difundir a desinformação jurídica que exala do planalto aos borbotões. Com efeito, na questão da ADI 6341, jornalistas e jornaleiros esqueceram-se de que o Supremo apenas aplicara à hipótese julgado aquilo que está prescrito na Constituição e retrataram em reportagens e colunas de opinião que a situação seria uma espécie de conflito entre a presidência da república e os governadores e o supremo seria o árbitro da querela. Um famoso colunista chegou a afirmar que o Supremo havia formulado para a hipótese uma interpretação “criativa”…!

Ora, somos insuspeitos para tratar de críticas às decisões judiciais. De há muito alertamos para uma necessidade de construção de anteparos contra decisões ativistas e/ou solipsistas do poder judiciário. Mas, no caso da ADI 6341, em qual dimensão de análise seria possível afirmar que houve “criatividade” por parte do tribunal? Muito pelo contrário, a decisão concretizou a Constituição. De forma suave, vale dizer, principalmente se considerarmos que nela se realizou interpretação conforme a Constituição do dispositivo impugnado quando poderia, na hipótese, ter sido formulada uma decisão de rechaço, dada a evidente inconstitucionalidade da medida provisória objeto da ação.

De todo modo, o governo não necessitaria do apoio da imprensa para fazer avançar sua campanha de desinformação jurídica. No julgamento da ADPF 811 realizado esta semana pelo plenário do Supremo Tribunal, o advogado geral da união voltou a afirmar, em sua sustentação oral, que o Supremo teria “delegado” (sic) a competência de gestão da crise para governadores e prefeitos.

De forma inacreditável, a interpretação formulada pelo AGU – afinal, a AGU é órgão de Estado ou de governo? – em sua intervenção oral durante o julgamento dá a entender que não existe Constituição no Brasil. Que o Supremo apenas dicta competências federativas por aí, ao seu talante.

Coube ao Ministro Alexandre de Morais restaurar um mínimo de civilidade diante da terra arrazada jurídica deixada depois da apresentação dos argumentos do AGU para lembrar que o ato do supremo não representou nenhum tipo de delegação de competências, uma vez que seriam elas decorrentes da própria Constituição. Na mesma linha, vários ministros que formaram a maioria de 9 votos.

O caso da CPI e os xingamentos do PR ao ministro Barroso
Hoje, 9 de abril de 2021, chegamos ao ápice da campanha de desinformação jurídica com um tweet do presidente da república, replicado por toda a imprensa, em que acusa o ministro Barroso de militância política por ter determinado que o presidente do Senado instalasse a chamada CPI da COVID.

Em um misto de diversionismo com fake news jurídica, tenta desqualificar a decisão do ministro afirmando que não há uma “contrapartida” igualitária, uma vez que o supremo não obriga o presidente do Senado a pautar os pedidos de impeachment contra ministros do tribunal.

Sempre é bom lembrar: o ministro jamais poderia fazê-lo no âmbito do MS que decidiu na noite de ontem pelo singelo motivo de que essa questão não fazia parte do pedido. Ademais, mesmo que houvesse pedido nesse sentido, não poderia prosperar pois, à semelhança da centena de pedidos de impeachment que existem contra o presidente da república e aguardam análise pela presidência da câmara, por questões regimentais, a decisão de “abertura” do processo é uma espécie de poder imperial do presidente da casa.

De fato, talvez essa não seja a opção mais democrática. Mas é aquela que existe no regimento. Uma decisão do supremo que interferisse nas disposições regimentais ou determinasse a sua interpretação, aí sim, indubitavelmente, seria uma decisão inconstitucional, violadora da independência do poder legislativo.

No caso da instalação da CPI não há que se falar em intervenção na independência pelo simples fato de que a decisão simplesmente aplica aquilo que vem previsto no parágrafo 3º. do art. 58 da Constituição, além de repercutir longa jurisprudência da corte que, em largas linhas, afirma que uma vez preenchidos os requisitos Constitucionais, não cabe ao presidente da casa ou à mesa diretora obstar o funcionamento da comissão.

Entender de forma diversa seria proclamar não a i9ndependencia do poder legislativo, mas, sim, colocá-lo acima da Constituição. Os poderes, obviamente são autônomos e independentes. Porém, todos estão submetidos à Constituição. A nenhum deles é dado o direito de descumpri-la a pretexto de afirmar sua independência.

A decisão do ministro Barroso, de igual forma, também não implica politização do judiciário. A instalação da CPI não decorre da decisão, mas, sim, da vontade de mais de um terço do Senado Federal, manifestada por meio da assinatura de seus membros; a indicação de fato determinado e de tempo certo. Do mesmo modo, o ministro responde ao pedido formulado por dois Senadores que, entendendo terem preenchido os requisitos que a Constituição e as regras regimentais determinam, insurgem-se contra a obstrução da instalação dos trabalhos que vinha sendo praticada pelo presidente daquela casa legislativa.

Quem instalou a CPI, portanto, foram os Senadores que assinaram o requerimento de sua Constituição. A decisão do ministro apenas desobstrui o seu caminho natural, que vinha sendo inconstitucionalmente bloqueado pela conduta – essa sim inconstitucional – do presidente do Senado.

Ponto interessante: o próprio presidente do Senado já havia se manifestado publicamente afirmando que os requisitos constitucionais para instalação da CPI haviam sido preenchidos pelo requerimento formulado. Cogitava, todavia, não ser o momento adequado para sua instalação por entender que ela viria a prejudicar os esforços de enfrentamento da pandemia que já matou 350 mil brasileiros. Esse morticínio, sem dúvida nenhuma, a todos consterna.

Difícil ficar insensível à tragédia humana que se abateu sobre nós em pleno século XXI. No entanto, não seria inadequado perguntar: por que essa avaliação de conveniência e oportunidade formulada imperialmente por uma única pessoa, deveria prevalecer sobre aquela que se encontra expressa pela assinatura de trinta e duas? Neste caso, ao invés de confiar na avaliação autocrática do presidente do senado, não seria melhor seguir a Constituição?

Voltando para a decisão do ministro, é preciso destacar, ainda, que a natureza jurídica – e não política – de sua decisão encontra-se também afirmada pela relação de coerência que se estabelece entre a liminar concedida e as decisões anteriores da Corte. Com efeito, ponto importante lembrado pelo jornalista Reinaldo Azevedo em sua coluna na Folha de S. Paulo, diz respeito àquilo que ficou assentado pelo tribunal por ocasião do julgamento do MS 26441 que determinou, em 2007, a chamada CPI do Apagão Aéreo. Naquela oportunidade, o Supremo voltou a reconhecer que o preenchimento dos requisitos constitucionais bastava para que a CPI fosse instalada e, para além, reconheceu o direito das minorias parlamentares de fazerem prevalecer suas prerrogativas institucionais contra decisões da maioria.

Note-se: o caso de 2007 tinha nós jurídicos muito mais difíceis de serem desatados do que aqueles que estão presentes na questão decidida pelo Ministro Barroso. Na ocasião da decisão de 2007, houve por parte do presidente da casa a prática do ato de instalação da comissão e, contra esse ato, foi promovido u8m requerimento de apreciação pelo plenário. Por maioria, o plenário da casa (na época a Câmara dos Deputados) votou pelo arquivamento do requerimento de abertura da CPI. A minoria derrotada provocou o STF pela mesma via que a atual e o relator, ministro Celso de Melo, determinou o desarquivamento do requerimento com a consequente instalação da Comissão. Tal decisão monocrática foi, posteriormente, referendada pelo plenário. De se frisar: no caso atual, da chamada CPI da COVID, a questão jurídica é ainda mais simples, uma vez que não envolve uma decisão do tribunal que, na prática, revogaria um ato do plenário do Senado. Ao contrário: cuida-se apenas de uma decisão que opera a desobstrução, indevida, promovida por uma conduta autocrática do presidente da casa.

A decisão do ministro, portanto, aplica a Constituição e se mantem aliada à jurisprudência afirmada pela corte há mais de duas décadas. É preciso parar de brincar de atribuir significados às coisas como se elas não tivessem uma história; uma tradição.

A Constituição é da República Federativa do Brasil; não do presidente da república. Não é possível admitir que a cada decisão que aplique a constituição e contrarie os interesses do planalto o nosso espaço público seja entulhado por informações falsa, distorções conceituais e uso aleatório de ideias. Novamente, estamos aqui em uma posição muito tranquila para fazer esta análise. Ao longo de nossa trajetória acadêmica já divergimos, por diversas vezes, do ministro Barroso, sempre de forma lhana e com o respeito que devido. Porém, neste caso em específico, estamos plenamente de acordo com a decisão. Novamente: trata-se de uma decisão que aplica a Constituição. Quem vê nisso algum tipo de militância talvez o faça por espelhar na decisão algo que constitui intimamente o seu modo próprio de se conduzir no trato com a coisa publica.

Todo jurista tem o dever cívico de defender a Constituição e combater a hostilidade para com o direito.

Só existe estado constitucional se houver responsabilidade política e efetivo controle das ações perpetradas pelos detentores de poder que ultrapassem os limites constitucionais.

Ver a concretização da constituição como um ato de mera militância já é, por si só, uma forma de afrontá-la.


1 LOEWENSTEIN, Karl. Brazil under Vargas. New York: The Macmillan Company, 1942.

2 RÜTHERS, Bernd. Derecho degenerado. Madrid: Marcial Pons, 2016.

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