Opinião

A desjudicialização da execução fiscal: reflexões sobre o PL nº 4.257/2019

Autores

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) doutor e mestre (Universidade Federal do Pará) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) procurador do estado do Pará e advogado.

  • Marcelo Veiga Franco

    é advogado doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) visiting scholar na University of Wisconsin-Madison professor de Direito Processual Civil na Faculdade Milton Campos procurador do Município de Belo Horizonte/MG e diretor científico do Instituto de Direito Processual (IDPro).

9 de abril de 2021, 6h04

O objetivo deste texto é enfrentar diversos aspectos ligados ao Projeto de Lei nº 4.257/2019, que procura ampliar as hipóteses de desjudicialização dos atos executivos, mediante a proposta de instituição da execução fiscal administrativa. Conforme exposição de motivos, a proposta legislativa busca "soluções que desburocratizem os procedimentos atualmente previstos na legislação para a cobrança da dívida ativa, tornando-a mais efetiva".

Com efeito, o International Institute for the Unification of Private Law (Unidroit) e o American Law Institute (ALI), ao comentarem a efetividade da adjudicação estatal e a eficiência dos métodos de solução de conflitos, destacam que muitos sistemas jurídicos possuem procedimentos arcaicos e ineficientes para o cumprimento das sentenças, embora a execução efetiva da decisão seja um elemento essencial de justiça [1].

O sistema jurídico brasileiro se enquadra nessa classificação.

De fato, não obstante a adequada prestação da tutela executiva consista em direito fundamental e o CPC consagre a efetividade da atividade satisfativa como uma das normas fundamentais do processo civil (artigos 4º e 6º), verifica-se que, no plano dos fatos, a fase executiva no Brasil é predominantemente inefetiva e ineficiente.

De acordo com o CNJ, os processos em fase de execução "constituem grande parte dos casos em trâmite e etapa de maior morosidade" [2].

No último relatório do projeto "Justiça em Números", o CNJ noticiou que 55,8% dos processos pendentes de baixa no final do ano de 2019 se referiam a processos na fase de execução. Do total de processos executivos, a maioria absoluta — cerca de 70% — diz respeito às execuções fiscais.

No final do ano de 2019 tramitavam mais de 30 milhões de execuções fiscais nos órgãos judiciários brasileiros. Além do altíssimo volume, as execuções fiscais apresentam índices insatisfatórios de recuperação dos créditos inscritos em dívida ativa. A elevada taxa de congestionamento de 87% e o longo período médio de tramitação de oito anos contribuem para esse cenário.

Por essa razão, o CNJ afirma que os processos de execução fiscal são "os principais responsáveis pela alta taxa de congestionamento do Poder Judiciário" e retratam o grande "gargalo da execução" [3].

Diante dessa realidade, algumas práticas vêm sendo adotadas para tentar enfrentar esse contexto. Percebe-se uma tendência de se buscar medidas voltadas à desjudicialização da execução fiscal, com a ampliação das possibilidades de cobrança de créditos fiscais pela Fazenda Pública mediante o emprego de técnicas e medidas executivas extrajudiciais.

Nesse contexto, o CNJ editou a Resolução nº 261/2018, a qual institui a Política e o Sistema de Solução Digital da Dívida Ativa. Entre as previsões, destaca-se "o objetivo de estimular e facilitar o acordo entre as partes, incentivando a pacificação social e a redução dos litígios fiscais, ampliando a probabilidade de recebimento de dívidas consideradas irrecuperáveis" (artigo 4º).

Já na Resolução nº 325/2020, o CNJ indica, dentro da Estratégia Nacional do Poder Judiciário para o sexênio 2021-2026, a busca pela "agilidade e produtividade na prestação jurisdicional", destacando a busca por "soluções para um dos principais gargalos do Poder Judiciário, qual seja a execução fiscal".

No âmbito legislativo, o parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 9.492/1997 inclui as certidões de dívida ativa dentre os títulos passíveis de protesto extrajudicial.

Na esfera jurisprudencial, o STJ, no julgamento do REsp nº 1.807.923/SC (Tema Repetitivo 1026), fixou tese jurídica de que "o artigo 782, §3º do CPC é aplicável às execuções fiscais, devendo o magistrado deferir o requerimento de inclusão do nome do executado em cadastros de inadimplentes, preferencialmente pelo sistema SERASAJUD, independentemente do esgotamento prévio de outras medidas executivas, salvo se vislumbrar alguma dúvida razoável à existência do direito ao crédito previsto na Certidão de Dívida Ativa — CDA".

Ao firmar o precedente, o STJ salientou que "a inclusão em cadastros de inadimplência é medida coercitiva que promove no subsistema os valores da efetividade da execução, da economicidade, da razoável duração do processo e da menor onerosidade para o devedor (artigos 4º, 6º, 139, inc. IV, e 805 do CPC)". O STJ frisou que a Fazenda Pública pode incluir o nome do executado em cadastros de inadimplentes "sem interferência ou necessidade de autorização do magistrado", a fim de permitir "uma maior perspectiva de sucesso" na arrecadação fiscal ante a desnecessidade de ajuizamento de execuções fiscais "que abarrotarão as prateleiras (físicas ou virtuais) do Judiciário, com baixo percentual de êxito".

Por seu turno, o Projeto de Lei nº 4.257/2019, de autoria do senador Antônio Anastasia, propõe a instituição da execução fiscal administrativa, prevendo, entre outras possibilidades: a) o envio pela Fazenda Pública de notificação administrativa ao executado instruída com a certidão de dívida ativa (proposta de acréscimo do artigo 41-A à Lei nº 6.830/1980); b) a lavratura pela Fazenda Pública de termo de penhora, caso não haja o pagamento espontâneo do débito, com respectiva averbação na matrícula de imóvel ou no registro de veículo (proposta de acréscimo do artigo 41-D à Lei nº 6.830/1980); e c) a realização pela Fazenda Pública de leilão extrajudicial de imóvel ou veículo penhorado (proposta de acréscimo do artigo 41-G à Lei nº 6.830/1980).

Uma primeira questão a ser discutida é se essa desjudicialização executiva ou, mais precisamente, a instituição de execução fiscal na instância administrativa para cobrança de IPTU, ITR, IPVA, contribuição de melhoria e taxas devidas em função de propriedade, posse ou usufruto, encontra (ou não) assento constitucional.

Na exposição de motivos, consta que "não há motivo para que a cobrança desses tributos se dê exclusivamente por meio da execução fiscal", uma vez que "a edição de lei autorizando a execução administrativa desses tributos não ofende ou retira qualquer direito ou garantia fundamental do cidadão". Destacou-se procedimentos similares, como o previsto no Decreto-Lei n.º 70/1966 (que institui a cédula hipotecária) — já declarado constitucional pelo STF no RE 408224 — e na Lei nº 9.514/1997 (que dispõe sobre a alienação fiduciária de imóveis).

A indagação a ser feita se dirige à constitucionalidade da condução administrativa da execução de tais créditos fiscais, à semelhança de outras previsões já existentes no ordenamento jurídico. Não se pode esquecer que o projeto de lei, ao incluir vários dispositivos à Lei de Execução Fiscal, pretende permitir penhora, avaliação e atos de expropriação pela Administração Pública, ficando o Poder Judiciário com atuação apenas secundária ou supletiva (como, v.g., no processamento e julgamento de embargos à penhora — proposta de acréscimo do artigo 41-F à Lei nº 6.830/1980 — e no pedido de imissão na posse do imóvel ou do veículo após a averbação da carta de arrematação — proposta de acréscimo do artigo 41-O à Lei nº 6.830/1980).

Outra pergunta importante: será que a execução fiscal administrativa poderá culminar em atos de invasão patrimonial do executado? Quanto ao assunto, vale a pena observar duas situações que estão sendo tratadas pelo STF e que podem conduzir a uma resposta positiva ou negativa. No Tema 249 (RE RG 627.106: execução extrajudicial de dívidas hipotecárias contraídas no regime do Sistema Financeiro de Habitação), a Suprema Corte está analisando a constitucionalidade da invasão patrimonial exercida por quem não é magistrado. Já no Tema 982 (RE RG 860.631: constitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial nos contratos de mútuo com alienação fiduciária de imóvel, pelo Sistema Financeiro Imobiliário SFI, conforme previsto na Lei nº 9.514/1997), o STF discute a constitucionalidade da alienação fiduciária de imóveis, inclusive a consolidação extrajudicial da propriedade ao credor fiduciário e a possibilidade de leilão extrajudicial do bem.

Assim, considerando que um dos maiores entraves da execução fiscal é a recuperação do crédito (localização do devedor, e penhora, avaliação e expropriação de bens), é de extrema relevância indagar se essa atividade executiva pode ou não ser exercida pelo Administrador Público, agente fiduciário ou instituição financeira (proposta de acréscimo do artigo 41-G à Lei nº 6.830/1980), o que, em caso negativo, poderá comprometer o objetivo principal que é a efetividade e celeridade da execução.

Portanto, em que pese a complexidade e os problemas ligados à efetividade da execução fiscal, a retirada da titularidade do Poder Judiciário deve necessariamente passar pelo debate constitucional sobre a sua compatibilidade com a garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição estatal (artigo 5º, XXXV, da CRFB) e sobre a possibilidade (ou não) de deslocamento de atos executivos de invasão patrimonial ao Administrador Público ou aos demais agentes indicados no projeto de lei.

Para responder a essas indagações, algumas reflexões são relevantes.

Em primeiro lugar, a (aparente) necessidade de que a execução de créditos fiscais ocorra exclusivamente na esfera judicial parece não mais encontrar subsistência no atual panorama de evolução do sistema jurídico. É cada vez mais consolidada a ideia de que a indisponibilidade do interesse público não representa obstáculo automático para que a Fazenda Pública possa buscar o adimplemento de obrigações no âmbito administrativo.

Nesse particular, Eduardo Talamini acentua que a indisponibilidade do direito material não corresponde à "indisponibilidade da pretensão à tutela jurisdicional estatal". Dito de outro modo, os direitos e deveres atinentes à Administração Pública "podem e devem ser cumpridos independentemente da instauração de um processo judicial", tendo em vista que "a ação judicial e a intervenção jurisdicional, em princípio, não são necessárias no âmbito das relações de direito público" [4].

Os casos em que a Administração Pública pode resolver os seus conflitos fora da instância judicial são diversos como, v.g., mediante arbitragem (artigo 1º, §1º, da Lei nº 9.307/1996), Câmaras de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos (artigo 32 da Lei nº 13.140/2015 e artigo 174 do CPC) e processos administrativos disciplinares. Em nenhuma dessas hipóteses, há discussão atual acerca da compatibilidade constitucional.

De igual maneira, não se vislumbra óbice constitucional que impeça o deslocamento da cobrança fiscal para a esfera administrativa. Ao fim e ao cabo, a prática de atos de execução fiscal na arena judicial e extrajudicial consiste em opção de política legislativa, e não propriamente em exigência da ordem constitucional.

Isso não significa, por óbvio, permissão para que o processo administrativo de cobrança fiscal transcorra sem observância das garantias constitucionais de legitimidade do procedimento e com exclusão de instrumentos de controle externo.

O processo administrativo de cobrança fiscal deve respeitar não apenas os princípios da Administração Pública (artigo 37, caput, da CRFB), como também as garantias processuais constitucionais e as normas fundamentais do processo civil (artigo 15 do CPC). É indispensável que o devido processo administrativo observe, entre outros princípios, juridicidade, impessoalidade, igualdade, moralidade, publicidade, razoável duração, boa-fé objetiva, ampla defesa e contraditório efetivo.

Outra questão importante diz respeito à indispensabilidade de assegurar a fiscalização a posteriori da legitimidade do processo administrativo por parte do Poder Judiciário. A fim de compatibilizar a proposta de execução fiscal administrativa com a garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição estatal (artigo 5º, XXXV, da CRFB), é imprescindível que se resguarde o espaço de reserva judicial para o fim de controle de eventual ilegalidade praticada no âmbito extrajudicial em desfavor da proteção dos direitos dos administrados (artigo 1º da Lei nº 9.784/1999).

O projeto de lei é arrojado ao atribuir instrumentos de autotutela executiva à Administração Pública. Nesse ponto, a proposição legislativa aponta para um compartilhamento da execução entre atos do Poder Executivo — como deflagração da cobrança, lavratura de termo de penhora, promoção de leilão extrajudicial e alienação administrativa do bem — e do Poder Judiciário — como exercício de atividade cognitiva sobre alegação de matérias de defesa no bojo dos embargos à penhora.

Essa divisão de tarefas vai ao encontro da tendência atualmente verificada em países europeus no sentido da maior abertura para a prática de atos executivos na instância extrajudicial, inclusive pelo próprio credor. No caso da Fazenda Pública, a própria autoexecutoriedade dos atos administrativos reforça a possibilidade da autotutela executiva.

O regime jurídico administrativo autoriza, em determinadas hipóteses, a coerção unilateral e a satisfação forçada de obrigações administrativas, independentemente de concordância do particular e sem que haja prévia provocação da via judicial. É o que ocorre, v.g., nos casos de retenção de caução em contrato administrativo inadimplido, interdição de estabelecimento comercial em virtude de violação de norma urbanística, demolição de imóvel no caso de risco de desabamento, ou aplicação de penalidade funcional a servidor público em processo administrativo disciplinar.  

Assim, não se vislumbra impedimento para que também seja prevista a autoexecutoriedade de créditos fiscais, desde que respeitado o devido processo administrativo e assegurada a possibilidade de controle judicial a posteriori, inclusive para aferição da proporcionalidade e adequação do emprego da medida executiva (artigo 2º, parágrafo único, VI, da Lei nº 9.784/1999).

Finalmente, uma possível crítica ao projeto de lei é se ele, de fato, resolverá o "gargalo" das execuções fiscais. Ao que parece, a proposição legislativa se limita a "transferir o problema", isto é, apenas a deslocar parcela da problemática execução fiscal para a seara administrativa, mantendo o espaço da atuação judicial para julgamento de embargos e determinação de imissão possessória. Ademais, a proposição legislativa é tímida ao prever somente a penhora administrativa de imóvel ou veículo, deixando de avançar para a possibilidade de constrição extrajudicial de dinheiro ou outros bens e direitos.

A rigor, nenhuma modificação do sistema de medidas executivas surtirá o efeito desejado se não enfrentar as reais causas que travam a recuperação de créditos e a satisfação forçada de obrigações. A reforma da execução — seja ela civil ou fiscal — deve vir acompanhada do aperfeiçoamento das técnicas de localização do devedor e de investigação patrimonial. A efetividade executiva não será alcançada sem um eficiente sistema de combate à ocultação ilegítima de bens com o intuito de fraudar credores.

Enfim, essas são algumas reflexões iniciais sobre o projeto de lei. A inserção da cobrança fiscal no campo de abrangência do sistema multiportas de execução [5] é uma provável tendência e requer o amadurecimento do debate legislativo e doutrinário.

 


[1] International Institute for the Unification of Private Law — UNIDROIT. ALI / UNIDROIT Principles of Transnational Civil Procedure. 13 out. 2020. Disponível em: https://www.unidroit.org/instruments/civil-procedure/ali-unidroit-principles. Acesso em: 16 mar. 2021.

[2] BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2019, p. 126. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em: 15 mar. 2021.

[3] BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2020, p. 150-160. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em: 15 mar. 2021.

[4] TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: consequências processuais (composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem, negócios processuais e ação monitória) — versão atualizada para o CPC/2015. In: ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier (Coord.). DIDIER JR., Fredie (Coord. Geral). Justiça Multiportas: Mediação, Conciliação, Arbitragem e outros meios de solução adequada de conflitos. Salvador: Jus Podivm, 2016, p. 276-280.

[5] Sobre o Sistema Multiportas de Execução, conferir: FARIA, Márcio Carvalho. Primeiras impressões sobre o PL 6.204/2019: críticas e sugestões acerca da tentativa de se desjudicializar a execução civil brasileira (parte um). Revista de Processo, v. 313, p. 393-414, mar. 2021; DIDIER JR., Fredie; SICA, Heitor. Live Jurídica — Execução Extrajudicial. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2dANrtyoRos; FRANCO, Marcelo Veiga; RETES, Tiago Augusto Leite. Sistema Multiportas de Execução. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/sistema-multiportas-execucao-justica-processos-30032021.

Autores

  • é pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; doutor e mestre pela Universidade Federal do Pará; professor do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP); procurador do estado do Pará e advogado.

  • é advogado, doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), visiting scholar na University of Wisconsin-Madison, professor de Direito Processual Civil na Faculdade Milton Campos, procurador do Município de Belo Horizonte/MG e diretor científico do Instituto de Direito Processual (IDPro).

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