Opinião

A vitimização secundária da vítima de estupro pelo poder público

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30 de setembro de 2020, 13h03

1) Considerações preliminares
O Estado, com a pretensa realização do seu dever de punir, nos últimos anos, tem violado a privacidade da vítima de estupro, inclusive quanto ao seu direito privativo de instaurar ou não a persecução penal do agressor (Lei nº 12.015/09). Agora, com portarias do Ministério da Saúde, pretende transformar os médicos em agentes de polícia, violando, inclusive, o que lhes é mais sagrado, qual seja, seu código de ética, revitimizando a infeliz vítima da violência sexual. A nosso juízo, como demonstraremos adiante, denunciar ou não à autoridade policial a violência sexual é um direito sagrado da vítima de violência sexual. E eventual investigação criminal não é a atribuição do Ministério da Saúde, mas atribuição exclusiva da polícia, do Ministério Público e do Judiciário.

Com essa política fascista de fiscalizadora dos "supostos bons costumes", o atual governo confunde questões ético-morais e religiosas com o Direito Penal, bem como com o sagrado e constitucional direito da vítima de manter a sua privacidade sexual e intimidade pessoal preservadas.

A violência sexual da vítima de estupro pode ser entendida como vitimização primária, a qual, em tese, compete ao Estado proteger, que, no entanto, confronta-se com o direito irrenunciável da vítima de autorizar ou não o Estado a instaurar a persecução penal, via poder repressor estatal. Contudo, o Estado, ao ignorar a manifestação de vontade da própria vítima ou antecipando-se a ela, expondo à sociedade, amigos e conhecidos a violência sexual por esta sofrida, significa outra espécie de vitimização dessa mesma vítima, agora causada pelo próprio sistema de Justiça penal. Pois essa, digamos, revitimização denomina-se vitimização secundária de quem já foi vítima da violência sexual, que outra coisa não é senão a violência institucional do sistema processual penal, fazendo das vítimas de estupro novas vítimas do próprio Estado, ou seja, do estigma procedimental-investigatório [1].

A violência das portarias do Ministério de Educação pretende obrigar os médicos a transformarem-se em "verdadeiros inquisidores", além de determinarem que estes questionem sobre os aspectos fáticos da violência sexual sofrida pela vítima, invadindo a privacidade desta e ainda exige que "dedurem" os fatos às autoridades repressoras. No entanto, jamais os médicos poderão (e, certamente, nem concordarão com isso) constranger (ilegalmente) a vítima a ver ou olhar o embrião produto da violência sexual sofrida, constrangendo-a, torturando-a e, consequentemente, revitimizando-a, como pretende determinado segmento do governo Bolsonaro.

Ademais, essa "violência estatal" pretendida pelo Ministério da Saúde pode dificultar, senão inviabilizar, o processo de superação do trauma sofrido pela violência sexual, provocando-lhe ainda uma imensa sensação de frustração, impotência e desamparo com o pretenso sistema de controle social, aumentando o descrédito e a desconfiança desta nas instituições públicas, principalmente da Justiça criminal.

2) Natureza da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual
Desde o surgimento do Código Penal de 1940, ação penal, nos então denominados, impropriamente, "crimes contra os costumes", sempre foi de "iniciativa privada", isto é, como regra, eventual persecução penal dependeria diretamente da iniciativa da própria vítima, através de seu advogado, ou não, impulsionar eventual ação penal. A partir da Lei nº 12.015/09, esses crimes, inclusive o de estupro, passaram a ser de ação penal pública condicionada à representação da vítima! Ficou no meio termo, passou a ser pública, mas ainda dependente de representação da vítima, que terá o direito de silenciar, de não autorizar a abertura de investigação criminal.

Em outros termos, mesmo assim, a instauração de eventual ação penal dependerá diretamente manifestação da vítima, que, se o desejar, não haverá instauração de processo, pois poderá preferir preservar a sua dignidade e liberdade pessoal e sexual. Esse direito é exclusivo da vítima e não compete ao Estado intervir, direta ou indiretamente, e aos médicos, que não podem denunciar eventual crime, compete respeitar seu código de ética e não lhes compete investigar os fatos causadores do estupro, bem como lhe impede denunciar a quem quer que seja, sob pena, inclusive, de responderem pelos crimes de constrangimento ilegal e violação de sigilo profissional, além das questões éticas previstas em seu  código específico.

Portanto, além de o poder público não poder disciplinar a obrigatoriedade, por qualquer meio, de registro da ocorrência de eventual violência sexual sofrida pelas vítimas, muito menos pode querer obrigar os médicos a transformarem-se em "agentes investigadores" do Estado. A iniciativa de registrar ou não ocorrência policial, repetindo, é exclusiva da vítima de violência sexual, que poderá preferir preservar a sua privacidade e a sua dignidade sexual. Por outro lado, jamais os médicos poderão constranger (ilegalmente) a vítima a ver ou olhar o embrião produto da violência sexual sofrida por esta, que seria revitimizá-la, injustamente. Se o fizerem, os médicos ainda poderão responder por danos pessoais e morais, além dos crimes supracitados, e o agente público poderá responder por crime de constrangimento ilegal e abuso de autoridade.

3. O equívoco da alteração da ação penal privada para pública condicionada a representação
Fica claro que não compartilhamos do entusiasmo daqueles que viram na publicização da ação penal maior proteção das vítimas da violência sexual, pois, a nosso juízo, não passa de um grande e grave equívoco ideológico; além de representar uma violência não apenas à liberdade sexual, mas, fundamentalmente, ao seu exercício, que é tolhido pelo constrangimento estatal, que obriga a vítima a se submeter publicamente ao strepitus fori, à exploração midiática, aos fuxicos tradicionais, que casos como esses, invariavelmente, provocam. Atribuir, por outro lado, a titularidade da ação penal ao parquet não é sinônimo de maior proteção à vítima ou ao bem jurídico tutelado. Pelo contrário, desrespeita o direito daquela que, nesses casos, tem o direito preponderante à proteção de sua intimidade e sua privacidade, além de ignorar a tradição de nosso sistema jurídico que, historicamente, nos crimes contra a liberdade sexual, atribuía a titularidade da ação penal exclusivamente à vítima ou a seu representante legal.

Aliás, ninguém se preocupa mais que a própria vítima, com seus valores morais, íntimos e pessoais, e, inclusive, com sua dignidade sexual. O Estado não é o titular da dignidade e intimidade sexual do ser humano, competindo-lhe, somente, assegurar que todos respeitem esses valores, mas não deve retirar-lhe a iniciativa da ação penal privada. Ninguém, instituição alguma tem legitimidade para substituir a vontade da vítima, isto é, em hipótese alguma o Estado tem interesse maior na proteção da intimidade, da privacidade e da liberdade sexual da vítima do que ela própria. Somente esta pode avaliar adequadamente a dimensão da sua dor, do seu sofrimento, da sua angústia, e, especialmente, a sua capacidade de enfrentar a repercussão espetaculosa que esses fatos produzem no meio social e midiático, e, inclusive, as especulações que normalmente ocorrem no seio do sistema repressivo penal [2].

Por todas essas razões, certamente, a obrigatoriedade da ação penal pública (a partir da denúncia) afastará, ainda mais, as vítimas da busca pela Justiça, para não se submeterem à obrigatoriedade da ação penal. Em sentido semelhante, embora se satisfazendo com a necessidade de condicionar a atuação do parquet à manifestação da vítima, o saudoso amigo Luiz Flávio Gomes [3] afirmava, in verbis: "A tendência publicista do Direito não pode chegar ao extremo de ignorar completamente os interesses privados da vítima, quando o delito atinge sua intimidade, que é um dos relevantes aspectos (que lhe sobra) da sua personalidade". O direito à liberdade sexual, garantido constitucionalmente, somente se concretiza se o Estado assegurar os meios legítimos e necessários para o seu exercício, e, não sendo assim, não passará de simples falácia demagógica.

Muitas vozes levantaram-se contra a ação penal privada, afirmando tratar-se de resquícios da vindita privada, alimentadora de sentimentos perversos. Esses argumentos, repetidos de tempos em tempos, não procedem, até porque, na realidade, a ação continua pública, uma vez que administrada pelo Estado por meio da sua função jurisdicional. E o que se permite ao particular é, tão somente, a iniciativa da ação, a legitimidade para movimentar, ou não, a máquina judiciária, nos estreitos limites do devido processo legal, que é de natureza pública. Essa iniciativa privada exaure-se com a sentença condenatória. A execução penal é atribuição exclusiva do Estado, onde o particular não tem nenhuma intervenção. Obtida a decisão condenatória, esgota-se o direito do particular de promover a ação penal; a partir daí, o Estado reintegra-se plenamente na função de punir, que é intransferível [4].

Referida espécie de ação — de iniciativa privada — inspira-se em imperativos de foro íntimo e na colisão de interesses coletivos com interesses individuais, podendo o ofendido preferir afastá-los do strepitus fori, para evitar a publicidade escandalosa que a divulgação processual provocaria; por isso, nesses casos, o Estado permite a subordinação do interesse público ao particular. "Nos crimes sexuais — afirmava Luiz Flávio Gomes — não existem interesses relevantes apenas do Estado. Antes, e sobretudo, também marcantes são os interesses privados (o interesse de recato, de preservação da privacidade e da intimidade etc.)" [5]. Assegurar a iniciativa da vítima para a persecutio criminis, nos crimes sexuais, visa a evitar novo e penoso sofrimento desta, que, pela inexpressiva ofensa, desproporcional gravidade entre a lesão e a sanção estatal correspondente, ou pela especialíssima natureza do crime (que é o caso), lesando valores íntimos, prefere amargar a sua dor silenciosamente. Essa decisão é exclusiva da vítima que pode decidir livremente. Pretende-se, assim, evitar a divulgação e a repercussão social, que podem causar ao ofendido ou a seus familiares dano maior do que a impunidade, gerando a conhecida vitimização secundária, geralmente ignorada não só pelas autoridades repressoras como também pelo próprio legislador.

Aliás, é exatamente o que ocorrerá, nos crimes sexuais, com a transformação da ação penal em pública condicionada. Certamente, o tiro sairá pela culatra, pois essa publicização da ação penal levará as sofridas vítimas dos crimes sexuais a ficarem mais reticentes, mais temerosas e desencorajadas a denunciar seus possíveis agressores, por não disporem, privatisticamente, do exercício da ação penal. Nos crimes sexuais, quando há desinteresse da vítima, a instrução probatória resulta visivelmente prejudicada. Por isso, é recomendável que se procure conciliar os interesses privados com o interesse público, facilitando o resultado positivo da prestação jurisdicional.

A partir da nova política criminal, que prioriza o interesse estatal em prejuízo do interesse privado da vítima, iniciada a ação penal não mais poderá ser interrompido o seu fluxo, não haverá desistência, conciliação, renúncia, perdão, perempção etc. Nesse sentido, ainda que a vítima se arrependa, terá que suportar o strepitus fori até o final, ignorando-se a advertência de Paganella Boschi, para quem, "se para a imposição da pena tivéssemos que destroçar ainda mais uma vida, então o sistema jurídico seria uma iniquidade" [6]. Essa é a palavra adequada: a eliminação da ação penal de natureza privada representa para a vítima uma verdadeira iniquidade! Em síntese, por todas as razões expostas, temos sérias dúvidas sobre a constitucionalidade da eliminação da ação penal privada nos crimes contra a liberdade sexual, malferindo o artigo 5º, caput, in fine, e inciso X, da CF.


[1] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal —  Crimes contra a dignidade sexual, 14ª ed., São Paulo, Editora Saraivajur, 2020, vol. 4,  p. 112,

[2] Em palestra que fizemos sobre este tema, na II Conferência Estadual dos Advogados do Tocantins, em 19 de agosto de 2011, ao final, nas perguntas, recebemos o seguinte relato: "Eu entendo muito bem a questão de se expor e ser apontada por todos: eu fui estuprada dos oito aos dez anos por meu pai, nunca tive coragem de fazer nada, justamente para não me expor. Realmente, só quem sofre na pele, sabe do que o professor está falando… hoje tenho 30 anos".

[3] Gomes,  Luiz Flávio, A ação penal é pública condicionada. Disponível em: <http://www.lfg.com.br>. Acesso em: 28 set. 2009.

[4] Bruno, Aníbal, Direito Penal, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1967, v. 3, p. 237.

[5] Gomes,  Luiz Flávio, A ação penal é pública condicionada. Disponível em: <http://www.lfg.com.br>. Acesso em: 28 set. 2009.

[6] Boschi, José Antonio Paganella.  Ação penal, Rio de Janeiro, Aide, 1993, p. 119.

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