Tribuna da Defensoria

A elitização da linguagem jurídica como obstáculo ao acesso à Justiça

Autor

  • Renata Martins de Souza

    é defensora pública do estado de Minas doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG e professora de graduação do curso de Direito.

29 de setembro de 2020, 8h01

A possibilidade de todos terem acesso, sem restrições, à tutela jurisdicional constitui uma das grandes preocupações da sociedade contemporânea.

Cappelleti e Garth (1988, p.12) destacam que o acesso à Justiça pode ser encarado "como o requisito fundamental o mais básico dos direitos de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não proclamar os direitos de todos".

A ideia de acesso à Justiça, que tomou relevo sobretudo no bojo do Estado Social, não implica, porém, apenas possibilitar o acesso à Justiça como instituição estatal, mas também viabilizar o acesso à ordem jurídica justa (GRINOVER, 1996, p. 115-116).

Dada a relevância da matéria, o acesso à Justiça, ao menos em tese, é um direito humano consagrado pela grande maioria das Constituições. No Brasil, o citado direito encontra-se previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, segundo o qual "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Contudo, a despeito de sua previsão no plano formal, não há como desconsiderar a existência de inúmeros obstáculos que tendem a refletir diretamente na capacidade de efetividade de tal direito. Nesse sentido, a título de mera ilustração, cabe mencionar que o próprio hermetismo da linguagem jurídica pode figurar como um instrumento de cerceamento do amplo acesso à Justiça.

Quanto a isso, convém lembrar que a linguagem e o Direito, como práticas sociais, são elementos interligados, não se questionando o fato de que o discurso jurídico no país, geralmente estabelecido por meio de linguagem formal (expressões técnicas), torna-se inacessível à maioria das pessoas, o que leva alguns a denunciar que a matriz liberal do Direito se ocupa, assim, de ocultar a realização de propósitos autoritários.

A própria análise das obras da literatura brasileira, que se ocupam das razões que operam a marginalização e a exclusão social no país, facilita no processo de compreensão do uso erudição da linguagem jurídica no Brasil. Nessa lógica, cumpre destacar, que ao tratar da formação do patronato político-jurídico no país, o sociólogo Raymundo Faoro (2001, p. 885), além de advogar que as especificidades brasileiras decorreriam de sua herança lusitana, também apresenta-nos uma concepção de que o estamento patrimonial continua a controlar o Estado brasileiro segundo interesses particularistas, fazendo perpetuar um sistema de privilégios no âmbito do aparelho estatal, inclusive por meio do emprego do formalismo jurídico, traduzido, em grande medida, por leis, retóricas e elegantes, criadas dentro de uma estrutura tendenciosa a concentrar o poder político nas mãos de poucos. Sintetizando tais ideias, destaca o sociólogo: "O poder — a soberania nominalmente popular — tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre" (FAORO, 2001, p. 885).

Nessa linha de reflexão, é possível apontar que, no Brasil, além dos obstáculos diretamente relacionados às desigualdades sociais que, há muito, protraem-se no tempo, o próprio tecnicismo da linguagem, aliado ao uso de vestes talares nos tribunais e o uso das formalidades excessivas dos ritos judiciários, também corrobora para o afastamento do cidadão comum das instâncias do Judiciário e, por conseguinte, do pleno acesso à Justiça.

Deveras, a linguagem rebuscada da legislação e seu distanciamento da linguagem coloquial, além de impedir a necessária comunicação entre os jurisdicionados, por vezes também implica em dificuldade de compreensão por parte dos próprios profissionais da área jurídica. Senão vejamos. Em meio a um julgamento, o magistrado de Barra Velha, comarca de Santa Catarina, teria proferido a seguinte ordem: "Encaminhe o acusado ao ergástulo público" (Jornal Folha de São Paulo, 23/1/2005, com adaptações). A sofisticação da linguagem por parte do magistrado, Ricardo Roesler, impossibilitou que sua ordem fosse cumprida de imediato, dada a ausência de compreensão por parte dos servidores do Poder Judiciário acerca do sentido e significado da expressão "ergástulo"  palavra arcaica usada como sinônimo de cadeia. Quando Roesler descobriu que nem seus subordinados entendiam o que ele falava, decidiu substituir os termos pomposos e os em latim por palavras mais simples.

Em meio a tal contexto, marcado pela vagueza e violência simbólica do estilo hermético que muitas vezes se transmuda em exercício de poder e intimidação contra os mais humildes, propõe-se a adequação da linguagem jurídica na interlocução das partes processuais, com vista a possibilitar mudanças progressivas no universo do Direito.

Com efeito, o fomento ao emprego de técnicas processuais amparadas na simplicidade e informalidade, contribuem para o empoderamento de grupos oprimidos e a garantia de seus direitos, além de propiciar a interação das pessoas comuns com a cultura jurídica e estimulá-las a deliberar e apresentar seus argumentos no processo decisório, refutando concepções paternalistas e elitistas.

Ao destacarem a necessidade de a Constituição ser levada a sério pela sociedade, ponderam Soares e Barros, citando Pablo Lucas Verdú (VERDÚ, 1998 apud SOARES; BARROS, 2014, p. 163), que o sentimento constitucional se manifesta como "expressão de afeição do cidadão pela justiça e pela equidade, relacionando-se diretamente à norma fundamental, pois esta dispõe sobre valores como liberdade". Daí surge a necessidade de se encontrar mecanismos aptos a incorporar as pessoas que não têm acesso à justiça, repensando as instituições para o povo, para o qual a Constituição foi criada.

Logo, estando assentado que o cidadão comum deve integrar a ordem jurídica, não podendo figurar como mero espectador, resta comprovada a relevância da simplicidade da linguagem jurídica, que pode figurar como mais uma ferramenta de emancipação de enorme contingente de pessoas que encontram obstáculos quanto ao acesso à Justiça.

Ressalte-se, nesse sentido, o trabalho desempenhado pela Defensoria Pública, instituição ligada ao sistema de Justiça que, calcada na expansão da cidadania, além de prestar o serviço de assistência jurídica integral aos vulneráveis, encontra-se diretamente comprometida com a democratização e pluralização do acesso à Justiça, priorizando a clareza e transparência na comunicação com seus assistidos.

À luz do princípio da dignidade humana, a Defensoria não se presta apenas ao patrocínio judicial da causa dos necessitados (condição que deve ser aferida do ponto de vista não apenas econômico, mas também social e organizacional), uma vez que também é responsável pela orientação extrajudicial de enorme parcela da população, fomentando a participação popular, possibilitando a prevenção de litígios e educando grupos vulneráveis na consolidação de seus direitos e garantias fundamentais.

Assim, no intuito de franquear o acesso à Justiça a todos, bem como a necessária acessibilidade ao seu público-alvo, afastando-se do cientificismo exacerbado, a instituição prima pelo emprego da linguagem coloquial, reconhecendo que esta exerce um papel indispensável na constituição significativa do mundo e do próprio Direito.

Cabe, nesse aspecto, citar iniciativas simples tomadas por órgãos de execução da Defensoria de todo o país, capazes de ilustrar a atuação da instituição no papel de educação em direitos e promoção da inclusão, por meio da linguagem. A Defensoria Pública do Estado da Bahia, por exemplo, lançou no fim do ano de 2019 cartilha que trata dos direitos das pessoas com deficiência, objetivando criar condições para que os cidadãos possam ocupar mais os espaços de reivindicação e de construção de políticas públicas. A publicação busca sintetizar em linguagem acessível o rol das garantias legais do público das pessoas com deficiência, como o direito à saúde, à mobilidade, educação, trabalho, previdência, lazer, acessibilidade, entre outros.

Seguindo a mesma trilha, a Defensoria Pública do Estado do Pará lançou, no mesmo período, o Manual de Direitos do Cidadão na Abordagem Policial. A ideia partiu de uma demanda exposta por movimentos sociais, em decorrência de algumas abordagens policiais que possivelmente violaram os direitos humanos. Como foi solicitado pelas lideranças, o manual é acessível e possui uma linguagem simples, tendo por finalidade permitir que os cidadãos entendam os seus direitos diante de tal situação.

Os casos acima retratados revelam a preocupação por parte da Defensoria em educar a população, por meio de linguagem acessível para o alcance de todos, além de reconhecer na alteridade um pressuposto filosófico relevante e capaz de fundar um discurso que reconhece os invisíveis como humanos, empreendendo esforços para assegurar aos seus assistidos patamares mínimos necessários de tutela da dignidade humana.

Por derradeiro, medidas como essas tornam-se necessárias para gerar conhecimento e condições para superação de problemas sociais e estruturais da sociedade brasileira, identificando e combatendo situações de opressão e violação de direitos humanos, além de alçar os indivíduos à condição de verdadeiros cidadãos.

Com base nas considerações tecidas, necessário identificar que o Judiciário e as instituições que integram o sistema de Justiça devem perder seu isolamento e articular-se com a sociedade civil, priorizando o emprego de uma linguagem acessível e menos elitizada, de forma a contribuir para fazer minimizar as injustiças ocorridas à luz de uma ordem constitucional e para a construção de uma Justiça de proximidade, assegurando ao cidadão comum condições de poder se expressar juridicamente, com base em mecanismos postos à disposição.

 

Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Texto constitucional de 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas emendas constitucionais. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 2/4/2020.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.

DPBA. Defensoria lança cartilha sobre Direitos das Pessoas com Deficiência. Defensoria Pública da Bahia. Salvador, 06 de dez. 2019. Disponível em: < https://www.defensoria.ba.def.br/noticias/defensoria-lanca-cartilha-sobre-direitos-das-pessoas-com-deficiencia/>. Acesso em: 24/8/2020.

DPPA. Defensoria Pública lança manual de Direitos do Cidadão na Abordagem Policial. Defensoria Pública do Pará. Belém, 05 de dez. 2019. Disponível em: <http://www2.defensoria.pa.gov.br/portal/noticia.aspx?NOT_ID=4132>. Acesso em: 24/8/2020.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato brasileiro. 3. ed. São Paulo: Globo, 2001.

GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.

SOARES, Mário Lúcio Quintão; BARROS, Renata Furtado de. Limites constitucionais do ativismo judicial. In: MORAIS, José Luiz Bolsan de; BARROS, Flaviane Magalhães (Org.). Novo constitucionalismo latino-americano. Belo Horizonte: Arraes, 2014. v. 1. p. 156-184.

VERDÚ, Pablo Lucas. Teoría de la Constitución como ciencia cultural. Madrid: Dykinson, 1998.

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