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A escolha do ministro para o Supremo: o legado de Ruth Ginsburg e Celso de Mello

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28 de setembro de 2020, 13h01

Spacca
Considero a escolha de uma pessoa para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal um dos pontos altos e mais significativos da Presidência da República. Junto com a formatação das leis, é o momento em que é dado àquele que ocupa uma posição com mandato transitório de poder influir nos anos que vão além do seu mandato. É o único momento em que é dado ao Presidente e ao Senado influenciar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, com a indicação de alguém com estatura jurídica para exercitar essa função fundamental da República.

O Brasil e os Estados Unidos passam por uma simetria de situações políticas inacreditável. A começar por Presidentes ultraconservadores, usuários constantes das mídias sociais e em constante atrito com as instituições políticas que integram. Igualmente, ambos tem a oportunidade de indicar, quase simultaneamente, um Ministro para a Suprema Corte (nos Estados Unidos chamado de Justice).

Ruth Bader Ginsburg foi uma jurista e combatente pelo tratamento igualitário das mulheres. Ganhou de um estudante de direito a alcunha de "Notorius R.B.G." em referência ao rapper Notorius B.I.G, alcunha que acabou incorporando como sua. Apesar das diferenças de pensamento, era amiga de Antonin Scalia, reconhecido colega conservador da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Advogada ativista dos direitos da mulher, cumpriu com afinco a defesa da 14ª Emenda da Constituição Americana de igual proteção da lei. É interessante assistir o belíssimo filme "Suprema"( "On the Basis of Sex"), de 2018, que retrata parte da sua vida, especialmente a sua atuação como advogada no caso Charles E. Moritz v. Commissioner of Internal Revenue, julgado pela Corte de Apelação Federal do 10º Circuito. Nele ela defende, com a genialidade que lhe caracterizou durante toda a vida, um homem contra a discriminação realizada pela Receita Federal Americana que reconhecia um direito a um benefício fiscal apenas para as mulheres ou homens casados. No debate conforme registrado pelo filme, um dos membros da corte questiona Ginsburg que a palavra mulher não aparece na Constituição Americana, ao que ela responde que igualmente inexiste a palavra liberdade.

Em direção ao sul, no Brasil, surge a vaga do Ministro Celso de Mello que se retira a poucos dias da sua aposentadoria compulsória. Vitaliciedade, dada pela Constituição a ocupante de cargo de magistrado, tem significado diferente aqui e nos Estados Unidos. Lá, o magistrado escolhe quando e se aposenta. Aqui, a idade de 75 anos é o limite. Mesmo assim, o Ministro Celso de Mello cumpriu os seus 31 anos no Supremo Tribunal Federal como um dos mais significativos magistrados que lá passaram. Sua carreia, até a nomeação para o STF, foi no setor público, tendo iniciado como Promotor de Justiça. Nesta função fez duras críticas à tortura e ao autoritarismo, como lembra Sérgio Rodas em reportagem publicada na ConJur, críticas que mantém até hoje e são atualíssimas. Foi identificado, nos anos 70 no Jornal Nacional, pelo então Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Coronel Erasmo Dias, como "aquele promotorzinho de Osasco".

Na Suprema Corte é notável como um ministro equilibrado, extremamente fiel à tradição jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e demonstrando profundo conhecimento da história constitucional brasileira. Sempre aprecio as audiências com o ministro Celso de Mello, normalmente tarde da noite, em que, após uma breve apresentação do caso e dos meus argumentos, eu fico extasiado com as referências históricas das diversas Constituições do Brasil e da jurisprudência do STF, puxadas sempre de memória. Nestas audiências eu acabo sempre como um aluno a intoxicar-me pelo seu conhecimento, o qual ele sempre oferecia despretensiosamente com um prazer vivo.

É igualmente Ministro de coragem marcante. Durante o debate do mensalão, em que se discutia a possibilidade de apresentar Embargos Infringentes para o Plenário do STF em face da existência de divergência, ele acabou sendo o voto de desempate. Apesar já estar apto a votar no final de uma longa sessão da quinta-feira, esta foi suspensa e o processo só voltou em pauta na quarta-feira seguinte. No final de semana, foi submetido à pressão extrema de uma publicidade negativa, sendo capa de diversos periódicos. Mesmo assim, o seu voto foi magistral e silenciou a todos os detratores que buscavam romper a imparcialidade do STF e impor o resultado que desejavam.

Tanto Ruth, quanto Celso, terão os seus substitutos indicados por Presidentes de quem não compartilham a convicção ou a história pública e pessoal. É um debate que vai marcar a tensão entre as visões conservadoras e liberais em uma Corte Constitucional. Mas, mesmo assim, o legado que ambos deixam é um imperativo a marcar os seus sucessores. Os Presidentes guardam um desejo secreto de terem na Suprema Corte um magistrado que lhes seja leal e lhes façam as vontades. É a expetativa da gratidão. Mas invariavelmente apreende, assim como Nixon aprendeu com Warren E. Burger, que ser um magistrado da maior Corte de um país traz responsabilidades próprias e os desejos de Presidentes não estão entre elas. Como já disse o Ministro Ayres Brito, não se agradece ao Presidente pela indicação ao cargo com a Toga de Magistrado.

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