Opinião

Comentários sobre ações contra as autarquias federais

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26 de setembro de 2020, 15h12

Vale rememorar, a título introdutório, da precisa e sintética definição do saudoso Prof. João Mendes Junior, segundo a qual: "Competência é a medida da jurisdição". Tal exprime a ideia de saber até onde abrange ou se estende, a competência de um juízo ou tribunal, para conhecer e julgar uma lide, sob os prismas territorial, material, funcional etc.  Para tanto é necessário perquirir o que dispõe a CF, especialmente a partir do seu artigo 102, as normas de processo e, residualmente, as regras estaduais, incluindo as suas Constituições, leis de organizações judiciária, regimentos internos dos tribunais.

Há, ainda, hipóteses em que se faz necessária a interpretação da jurisprudência para fixar o exato sentido e alcance de determinado preceito legal que disponha a respeito. Foi o que se deu com a espécie ora abordada.

Com efeito, a CF prescreve, em seu artigo 109 — "Aos juízes federais compete processar e julgar: … § 2º As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal".

Verifica-se que são quatro opções: domicílio do autor; local da ocorrência do ato ou fato; situação da coisa ou, ainda, no DF. Literalmente, a parte autora dispõe de tais alternativas para escolher o foro ou melhor, a seção ou subseção judiciária federal, quando a demandada for a UF, a qual encarna, por excelência, a natureza de pessoa jurídica de direito público, não só interno mas, também externo, acrescendo-se o atributo da soberania estatal. Os demais entes federativos — Estados, DF e municípios, ostentam tão só a qualificação de pessoas jurídicas de direito público interno. Todos, no entanto, compõem as respectivas administrações estatais diretas. A par disso há, também, os entes jurídicos que integram a chamada administração pública indireta, como autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista.

Em face de tal dispositivo magno, ascendeu ao eg. STF o RE 627.709/DF, sendo recorrente a autarquia federal Cade, sustentando a incidência de tal preceito tão só em demandas aforadas contra a UF, administração direta, não compreendendo as suas autarquias, pessoas jurídicas distintas, componentes da sua administração indireta. O órgão recorrente defendeu a tese, mencionando precedentes, inclusive do eg. STJ, de aplicação do artigo 100, IV, a e b, do anterior CPC, cujo símile é o artigo 53, III, a e b, do vigente diploma processual, ou seja, na dicção legal: "É competente o foro: do lugar: onde está a sede, para a ação em que for ré pessoa jurídica".

 Resultou do julgamento, por maioria, de tal recurso, o seguinte acórdão:

CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA. CAUSAS AJUIZADAS CONTRA A UNIÃO. ART. 109, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CRITÉRIO DE FIXAÇÃO DO FORO COMPETENTE. APLICABILIDADE ÀS AUTARQUIAS FEDERAIS, INCLUSIVE AO CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA – CADE. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.

I – A faculdade atribuída ao autor quanto à escolha do foro competente entre os indicados no artigo 109, § 2º, da Constituição Federal para julgar as ações propostas contra a União tem por escopo facilitar o acesso ao Poder Judiciário àqueles que se encontram afastados das sedes das autarquias.

II – Em situação semelhante à da União, as autarquias federais possuem representação em todo o território nacional.

III – As autarquias federais gozam, de maneira geral, dos mesmos privilégios e vantagens processuais concedidos ao ente político a que pertencem.

IV – A pretendida fixação do foro competente com base no artigo 100, IV, a, do CPC nas ações propostas contra as autarquias federais resultaria na concessão de vantagem processual não estabelecida para a União, ente maior, que possui foro privilegiado limitado pelo referido dispositivo constitucional.

V – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem decidido pela incidência do disposto no artigo 109, § 2º, da Constituição Federal às autarquias federais. Precedentes.

VI – Recurso extraordinário conhecido e improvido.

(RE 627709, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 20/08/2014, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-213  DIVULG 29-10-2014  PUBLIC 30-10-2014)   

A seu turno, o Tema 0374 ficou assim redigido: "A regra prevista no § 2º do art. 109 da Constituição Federal também se aplica às ações movidas em face de autarquias federais".

Consignado no decisum que o objetivo primordial é facilitar o acesso da parte ao Judiciário. Na sequência, o STJ passou a observar, exemplarmente, tal jurisprudência, conforme previsão do artigo 927, do CPC (vide, dentre outros: CCs 154.470; 153.138; 153.724; 166.130; 167.534 etc.).

 Note-se que o julgamento do tema, ao que se depreende, resultou de demanda ordinária e não de mandado de segurança. No entanto, a despeito das peculiaridades inerentes à ação de pedir segurança, garantia magna (CF, 5º, LXIX), regrada pela Lei nº 12.016/2009, na qual se leva em conta, como regra, para firmar a competência, a categoria e sede funcional da autoridade coatora, desde que não se trate de competência originária de tribunal (no caso, TRF ou mesmo STJ ou STF), incide, também, a tese fixada pelo STF quando o impetrado for autoridade autárquica federal, como coatora. Vale dizer, por exemplo, um suposto impetrante pode, a sua escolha, ajuizar MS, também, perante juízo federal de Seção ou Subseção Judiciária que compreenda seu domicílio ou residência, seja qual for o seu "rincão", embora a autoridade autárquica tenha sede funcional, por hipótese, em Brasília ou qualquer capital ou cidade, mesmo de de unidade federativa diversa daquela onde mora o impetrante.

Escusado lembrar que tal se aplica, por compreensão extensiva, também às chamadas fundações de direito público (ex. UnB, IBGE etc.), que se entrelaçam, por sua natureza, com as autarquias, estritamente, sejam quais forem, incluindo, por compreensão, a própria OAB.

Em síntese, a diretriz hermenêutica consubstanciada no Tema 0374, que ampliou o conteúdo normativo do aludido § 2º, do artigo 109, com o nobre propósito de  facilitar à parte autora a escolha, dentre as opções oferecidas pela norma, do órgão judicante da Justiça Federal de primeiro grau perante o qual deseja litigar contra a UF, suas autarquias, fundações, órgãos delegatários de serviço público etc., foi muito importante, considerando, além de outros motivos, a dimensão de nosso País, a carência, de toda natureza, de expressiva parcela da comunidade, a grande quantidade de demandas contra tais entes da administração indireta etc. É certo, no entanto, que o ramo do Judiciário destinatário é a Justiça Federal, pois o preceito interpretado encontra-se exatamente na Seção IV, Capítulo III, da CF, que dispõe sobre "Tribunais e Juízes Federais", inclusive competências (artigo 109).

Em síntese, refoge mesmo à razoabilidade um modesto servidor federal autárquico, por exemplo, lotado em unidade sediada em longínquo município interiorano, onde tem domicílio, ter que ajuizar eventual MS em BSB porque o apontado coator, diretor que lhe puniu em um PAD, trabalha na sede do órgão, na referida Capital.

O louvável precedente, embora de 2014, é bastante atual, aplicando-se, naturalmente, tanto a pessoas naturais quanto jurídicas, no polo ativo do pleito.

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