Inteligência artificial

Uso de dados uniformiza aplicação do Direito, mas tem de seguir LGPD, diz ministro

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22 de setembro de 2020, 19h51

O acesso às bases de dados do Judiciário é fundamental para o desenvolvimento de técnicas de inteligência artificial que ampliem e democratizem o acesso à justiça, assegurem tratamento isonômico às pessoas e uniformizem a aplicação do Direito. Porém, para evitar prejuízos à atividade jurisdicional, o uso dessas informações deve obedecer às prescrições da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.079/18), a critérios éticos e a regras técnicas. Essa é a opinião do ministro do Superior Tribunal de Justiça Ricardo Villas Bôas Cueva.

José Alberto/STJ
Ricardo Villas Bôas Cueva diz que uso de dados deve respeitar critérios éticos
José Alberto/STJ

O Plenário do Conselho Nacional de Justiça aprovou resolução que cria o Comitê Consultivo de Dados Abertos e Proteção de Dados do Judiciário. Também foi aprovada uma recomendação de diretrizes aos tribunais para acesso e processamento de dados disponibilizados pelos órgãos, em conformidade com a LGPD.

A norma, que já está em vigor, estabelece regras de coleta e tratamento de informações de pessoas, empresas e instituições públicas, os direitos de titulares de dados, as responsabilidades de quem processa esses registros, as estruturas e formas de fiscalização e eventuais reparos em caso de abusos na prática. A lei prevê ainda a garantia da segurança dessas informações e a notificação do titular em caso de um incidente de segurança. As novas regras entraram em vigor em agosto de 2020. 

Estudioso do assunto, Ricardo Villas Bôas Cueva discutiu os desafios da tecnologia na Justiça no artigo "Inteligência artificial no Judiciário", publicado no livro Emenda Constitucional 45/2004 – 15 anos do novo Poder Judiciário (CNJ e OAB), organizado por Dias Toffoli (ministro do Supremo Tribunal Federal), Felipe Santa Cruz (presidente do Conselho Federal da OAB) e André Godinho (conselheiro do CNJ).

No texto, Cueva afirma que, até o momento, ainda não houve mudanças substanciais nos instrumentos de apoio ao magistrado que lhe permitam reduzir o tempo de análise e decisão. No entanto, o ministro acredita que esse cenário deve se alterar com a implementação de iniciativas de inteligência artificial.

Entre elas, o magistrado destaca modelos de justiça preditiva. Baseados em decisões já proferidas, eles asseguram “a previsibilidade e a uniformidade das decisões, o fim da loteria judiciária, a possibilidade de detectar e propor alternativas para a solução dos conflitos, bem como de sugerir modelos de decisões, com fundamento na jurisprudência e na doutrina”.

Contudo, há desafios, ressalta Cueva. Entre eles, a observância de critérios de transparência, fidelidade, integridade dos dados, possibilidade de correção e de auditabilidade dos algoritmos utilizados. Também é fundamental, diz o ministro, obedecer a LGPD e seguir diretrizes éticas para a utilização da inteligência artificial.

"No Brasil, há importantes desafios técnicos a vencer para que a inteligência artificial – ou a justiça preditiva possa desenvolver-se plenamente nos tribunais. O primeiro, e quem sabe mais importante é a criação de um modelo nacional de interoperabilidade que permita que todos os 510 sistemas interajam de forma inconsútil. O segundo talvez seja uniformizar as tecnologias empregadas no processo eletrônico, de modo a favorecer a mineração de dados", avalia o ministro.

Robô do Supremo
Em prefácio à obra Tecnologia jurídica & Direito Digital (Fórum), o ministro do STF Dias Toffoli destaca que tecnologias de inteligência artificial tem a capacidade de “treinarem” sistemas a partir de um conjunto prévio de dados em diversos formatos, como textos, planilhas, notícias, legislações e publicações eletrônicas.

“A partir desse ‘treinamento’, usualmente baseado no reconhecimento de padrões pré-estabelecidos e pré-determinados, sistemas automatizados tornam-se ‘capazes’ de agir e até mesmo tomar decisões, de forma aparentemente autônoma e independente, configurando-se como uma poderosa ferramenta de apoio às atividades intelectuais humanas”, diz o ministro.

Ele lembra que, em 2018, o STF lançou o projeto de inteligência artificial Victor. A ideia inicial é que o robô ajude a identificar quais recursos extraordinários estão vinculados a determinados temas de repercussão geral. Porém, ressalta Toffoli, o sistema tem o potencial de ser ampliado para todos os tribunais do país. Dessa forma, as cortes poderiam utilizá-lo para fazer o primeiro juízo de admissibilidade dos recursos extraordinários logo após sua interposição, evitando matérias com repercussão geral cheguem ao Supremo.

Dados pessoais
No artigo "Anonimização e pseudonimização de dados pessoais no processo eletrônico", a ser publicado no livro O Direito Civil na era da inteligência artificial (Revista dos Tribunais), Ricardo Villas Bôas Cueva afirma que a LGPD preserva a independência do Judiciário e não permite que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados interfira na atividade jurisdicional.

Dessa maneira, ressalta o ministro, cabe ao CNJ definir as balizas que deverão orientar a observância da LGPD na Justiça. Isso, a seu ver, deve ser feito por meio de rotinas e práticas que assegurem a publicidade dos atos, sem ameaça aos direitos fundamentais à privacidade e à intimidade de jurisdicionados e terceiros.

O desenvolvimento tecnológico na economia digital demonstra a necessidade de anonimizar alguns dados pessoais contidos em processos eletrônicos, avalia Cueva. Isso para evitar a formação, dissociada da finalidade do tratamento originário dos dados, de perfis informacionais dos jurisdicionados e de terceiros. Entretanto, o ministro é contra anonimizar decisões quanto à identidade de juízes.

“Não parece adequado, contudo, anonimizar ou pseudominizar as decisões judiciais quanto à identidade dos magistrados e dos servidores da Justiça. A uma, pois tal medida afrontaria a garantia constitucional da publicidade dos atos processuais, que visa garantir transparência, imparcialidade e lisura nos trâmites processuais e no funcionamento do sistema de justiça. A duas, porque impediria a plena realização das promessas que alimentam a implantação de ferramentas de inteligência artificial nos tribunais, nomeadamente a previsibilidade das decisões e o tratamento isonômico das partes”.

Caso da França
Em 2019, a França proibiu a publicação de estatísticas sobre decisões judiciais. A pena para quem divulgar esses dados pode chegar a cinco anos de prisão.

A regra está no artigo 33 da Lei de Reforma do Judiciário, que adiciona dispositivos a outras leis, como o Código Penal. O dispositivo estabelece que "os dados de identidade de magistrados e servidores do Judiciário não podem ser reutilizados com o objetivo ou efeito de avaliar, analisar, comparar ou prever suas práticas profissionais, reais ou supostas".

Segundo o site Artificial Lawyer, magistrados franceses estavam incomodados com empresas que usam inteligência artificial para, com base em dados públicos, analisar como eles costumam decidir e se comportar em determinados assuntos para tentar prever o resultado de julgamentos e compará-los com colegas.

Na prática, a lei proíbe análises de dados relacionados ao Judiciário francês. A mudança foi avalizada pelo Conselho Constitucional da França. A corte considerou que os parlamentares franceses buscaram impedir que a coleta de dados em massa seja usada para pressionar juízes a decidir de determinada forma ou para desenhar estratégias que possam prejudicar o funcionamento do Judiciário.

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