Paradoxo da Corte

Responsabilidade objetiva da parte que pleiteia tutela de urgência

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

22 de setembro de 2020, 8h00

Todo cidadão deve pensar duas vezes antes de ajuizar uma ação, não apenas pelo custo e demora inerentes à tramitação do processo, como também pelos potenciais ônus e obrigações derivados da sorte da demanda!

A esse propósito, o advogado desempenha papel fundamental no aconselhamento ao seu cliente das chances, perspectivas e riscos advindos da iniciativa de provocar a jurisdição em busca da satisfação do direito alegado.

E isso porque o abuso do processo gera consequências desfavoráveis àquele que promove ação descabida ou se escuda em fundamentos inconsistentes, causando prejuízo à parte demandada.

É por esse relevante motivo que as legislações processuais modernas procuram introduzir mecanismos de repressão à conduta do improbus litigatur, isto é, do litigante que faz “mau uso” do processo, com o intuito deliberado, ou mesmo involuntariamente, de prejudicar o outro litigante ou mesmo terceiros.

O artigo 302 do vigente Código de Processo Civil reproduziu praticamente com a mesma redação a regra do artigo 811 do diploma revogado, ao dispor que:

Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:

I – a sentença lhe for desfavorável;

II – obtida liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias;

III – ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal;

IV – o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor.

Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível”.

Dessume-se, pois, que, além das regras gerais atinentes à litigância de má-fé (artigos 79 a 81), o Código de Processo Civil em vigor continuou aderindo à tese da responsabilidade objetiva, que já havia sido sustentada pela literatura processual mais antiga e que se inspirou no ZPO alemão (v., a respeito, Galeno Lacerda, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 8, t. 1, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1981, pág. 432).

Na verdade, o regime adotado pelo nosso atual Código de Processo Civil é rigorosamente aquele contemplado nos tradicionais sistemas alemão e austríaco, da responsabilidade objetiva, abandonando a teoria subjetiva consagrada pelo artigo 688 do Código de 39. Não há se cogitar, sequer, da prudência ou imprudência do causador do dano, como preconizam os diplomas processuais português e italiano. Basta verificar uma das situações previstas no apontado artigo 302 para caracterizar a responsabilidade do autor.

Não há se falar, portanto, em presunção de culpa para justificar o dever de indenizar. “O que se dá é, puramente, um caso de responsabilidade objetiva, à qual o elemento culpa é de todo estranho ou dispensável” (cf. Humberto Theodoro Júnior, Processo cauletar, São Paulo, Leud, 1996, pág. 172).

Acrescente-se que a doutrina em geral, ao examinar esta temática, esclarece que, a despeito da responsabilidade objetiva regrada pelo supra transcrito artigo 302, deve necessariamente haver relação de causalidade entre o ajuizamento da tutela de urgência e o dano provocado pela sua respectiva efetivação.

Importa, pois, reconhecer que o fator determinante da responsabilidade civil aquiliana ou objetiva centra-se no nexo etiológico entre o evento resultante de ato comissivo ou omissivo e a lesão sofrida.

Como enfatiza Carlos Roberto Gonçalves (Responsabilidade civil, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 1995, pág. 27), o liame de causalidade “é a relação de causa e efeito entre a ação ou omissão do agente e o dano verificado… Sem ela, não existe a obrigação de indenizar. Se houve o dano mas sua causa não está relacionada com o comportamento do agente, inexiste a relação de causalidade e também a obrigação de indenizar”.

Em idêntico senso posiciona-se a generalidade dos civilistas pátrios, como, e. g., Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de direito civil, vol. 3, 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, pág. 366) e Arnoldo Wald (Curso de direito civil brasileiroobrigações e contratos, 13ª ed., São Paulo, Ed. RT, 1998, pág. 556/557).

A obrigação de indenizar pelo dano provocado pela execução da tutela de urgência pressupõe, como é evidente, a comprovação do prejuízo.

Ademais, esse dever decorre do risco inerente ao próprio deferimento e respectivo cumprimento da antecipação. Assim, se a tutela de urgência não se confirma, devido à extinção do próprio processo antecedente ou mesmo do principal, surge o dever de responder pelo prejuízo. Não importa se o pleito de tutela urgente era adequado e se coexistiam os requisitos autorizadores para sua concessão.

Recentemente, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça foi instada a se pronunciar sobre essa questão, à luz do Código de Processo Civil de 2015, no julgamento do Recurso Especial n. 1.641.020/RJ, da relatoria do ministro Marco Buzzi.

O caso concreto se referia ao ajuizamento de um pedido antecedente de natureza cautelar, visando a impedir que o navio Eugênia, supostamente avariado, deixasse o porto de Praia Mole (ES) enquanto não fosse feita inspeção comprovando que teria condições de executar o contrato de transporte de 50 mil toneladas de aço até o porto de Antuérpia, na Bélgica.

Deferida a tutela de urgência, o navio ficou ancorado por 431 dias no aludido porto brasileiro.

Mais tarde, o processo principal foi extinto, sem resolução do mérito, com fundamento no artigo 485, inciso VII, do Código de Processo Civil, porque o contrato celebrado com a transportadora continha cláusula arbitral, tendo as partes eleito, como sede da arbitragem, a cidade de Londres.

No âmbito da liquidação dos prejuízos, nos próprios autos (cf. parágrafo único do artigo 302), o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro assentou que inexistia obrigação de indenizar porque o pleito de tutela cautelar fora regularmente ajuizado, tendo sido deferida a liminar diante da plausibilidade do direito e o perigo na demora, “tanto que seus efeitos foram mantidos mesmo após a extinção da ação principal”.

Contudo, no Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do reexame da matéria de direito, prevaleceu o voto do relator, ministro Marco Buzzi, segundo o qual a obrigação de indenizar produz efeito automático, previsto na lei processual, como decorrência do simples fato de ter sido extinto o processo principal, com ou sem julgamento do mérito. Esse entendimento foi também sufragado pelo ministro Antonio Carlos Ferreira.

Em senso contrário, secundando o fundamento do aresto recorrido, ficaram vencidos os ministros Raul Araújo e Isabel Gallotti, que negaram provimento ao recurso especial, ao argumento de que não se encontravam presentes os pressupostos para a caracterização da responsabilidade objetiva, regrada no Código de Processo Civil.

Suspenso o julgamento diante do pedido de vista do ministro Luis Felipe Salomão, foi concluído na sessão do dia 15 de setembro passado, ocasião em que proferiu voto de desempate, acompanhando o relator, ao asseverar que: “Parece não ser possível afastar a responsabilização pelos danos decorrentes da cautelar com base na confirmação da aparente regularidade de sua concessão quando a responsabilização deve referir-se à confirmação ou não do direito outrora salvaguardado, sob pena do total esvaziamento da responsabilidade processual”.

Defensor declarado dos precedentes, em particular, daqueles do próprio Superior Tribunal de Justiça, o ministro Salomão, ao aderir à maioria, ressaltou que:

“Pobre do tribunal que não cumpre a própria jurisprudência. Colegas que não vislumbram esse viés não conseguem perceber o mal que causam para a segurança jurídica e o desvirtuamento do papel de um tribunal que deveria ser de superposição, mas que se apequena ao não observar as próprias interpretações que fixa”.

No voto de desempate, o ministro Salomão fez referência a precedente da 2ª Seção, no qual restou decidido que a obrigação de indenizar pelo dano causado em decorrência da execução da tutela antecipada constitui efeito natural da extinção do processo principal.

Em conclusão, observo que, no referido julgamento, prevaleceu a tese que já se formara sob a vigência do diploma processual revogado, mantendo-se, portanto, coerência com a jurisprudência consolidada, tudo em prol da previsibilidade e segurança jurídica!

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