Limite Penal

O reconhecimento de pessoas não pode ser porta aberta à seletividade penal

Autor

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

18 de setembro de 2020, 9h55

Há cerca de duas semanas, o país se chocou com o caso de Luiz Carlos da Costa Justino. Violoncelista da Orquestra da Grota, em 2 de setembro o jovem de 22 anos foi preso preventivamente em razão de um delito ocorrido em 2017. Segundo a acusação, na manhã de 5 de novembro daquele ano Justino teria realizado um roubo de celular e dinheiro na companhia de mais três pessoas valendo-se, inclusive, do emprego de arma de fogo. A participação de Justino foi determinada por reconhecimento fotográfico, realizado pela vítima ainda em 2017. O mandado de prisão foi cumprido apenas em 2020, por ocasião de uma abordagem policial efetuada após a apresentação musical de Justino, na região das barcas, centro de Niterói. Tomando como ponto de partida o dia em que a vida de Justino transformou-se em pesadelo, cabe-nos algumas perguntas: exatamente qual comportamento de Justino ensejou a suspeita policial? Por que uma prisão preventiva expedida em 2017 foi cumprida somente em 2020? Como a fotografia de uma pessoa sem qualquer registro/passagem policial foi parar nas mãos dos investigadores responsáveis pelo inquérito de 2017? De que modo tal foto foi mostrada à vítima? Em poucas linhas, muitas irregularidades. No artigo desta sexta-feira (18/9), vou abordar as que concernem à prova de reconhecimento.

Spacca
Como se sabe, o procedimento de reconhecimento é tratado pelo artigo 226 do Código de Processo Penal. A redação de 1941 estipula a forma a ser observada para que, em sede policial, proceda-se ao reconhecimento. Ali determina-se a realização de um alinhamento que deverá ser composto pelo suspeito e outras pessoas semelhantes a ele. Não há dúvidas quanto ao propósito normativo que a redação visa assegurar, no sentido de reduzir os riscos de que um inocente seja equivocadamente apontado como culpado. Diz o inciso II:

"A pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la".

No entanto, em razão da expressão "se possível", a realização do alinhamento foi interpretada pelos tribunais brasileiros como mera recomendação, não servindo a sua ausência como motivo de nulificação do reconhecimento. A partir dessa interpretação, o Superior Tribunal de Justiça publicou, ao ano de 2018, entendimento segundo o qual o reconhecimento por fotografia é válido e suficiente para fundamentar a condenação, desde que seja repetido em juízo, com contraditório e ampla defesa.

"O reconhecimento fotográfico do réu, quando ratificado em juízo, sob a garantia do contraditório e ampla defesa, pode servir como meio idôneo de prova para fundamentar a condenação" (Jurisprudência em teses, nº 105 [1]). 

Mas é preciso dizer que a relativização jurisprudencial das exigências normativas para a realização do reconhecimento descansa suas bases em premissa equivocada: não, a memória humana não funciona como um filme que conserva intactos os fatos pretéritos. Não, para que fatos já vividos possam ser facilmente acessados não basta a simples vontade de os recordar. Não, não basta estar de novo na presença do suspeito para reconhecê-lo, sem qualquer risco de que um inocente seja confundido com o culpado.

No que refere à determinação da autoria de um delito, é possível que, a despeito da vontade de contribuir para a correta determinação dos fatos, a vítima/testemunha chegue a reconhecer um inocente no lugar do culpado. Muito embora não tenhamos disponível a taxa de erros judiciários brasileiros, a experiência norte-americana pode nos servir de referência, principalmente porque as práticas probatórias de lá e nossas, ao menos no que tange às provas dependentes da memória, são semelhantes. Tanto lá quanto aqui, pessoas são apontadas a partir de álbuns de fotografias e de reconhecimentos por show up (quando há apenas um suspeito); tanto lá quanto aqui, o reconhecimento acompanhado de um grau elevado de certeza da vítima/testemunha é supervalorado mesmo quando a defesa chega a produzir provas de fatos incompatíveis com a hipótese acusatória. Tanto lá quanto aqui, a coerência da narrativa acusatória serve-se do inflado valor probatório conferido ao reconhecimento bem como da depreciação de toda e qualquer informação que não se coadune com ela. O que a experiência norte-americana pode nos dizer a respeito dos riscos de se reconhecer erroneamente inocentes?

De acordo com o Innocence Project, cerca de 70% das condenações sobre as quais a referida iniciativa conquistou revisões criminais deveram-se a falsos reconhecimentos [2]. Trata-se de um dado avassalador. A cada dez condenações de inocentes, sete deveram-se a reconhecimento falso. As práticas probatórias brasileiras não permitem que assumamos qualquer postura otimista quanto aos erros judiciários brasileiros. O reconhecimento realizado sem observância de protocolos capazes de emprestar mínima fiabilidade faz par perfeito com o viés confirmatório que acomete os diversos atores da Justiça criminal (investigadores, acusadores e juízes) [3]. Sem entraves institucionais à sua debilidade probatória, o reconhecimento ad hoc tem sido bastante para o oferecimento de denúncias, decretação de cautelares [4], chegando até mesmo a ser suficiente para a condenações com base em visão de túnel.

"Visão de túnel é uma tendência humana natural que tem efeitos particularmente perniciosos no sistema de justiça criminal. Por visão de túnel, referimo-nos a um 'compendio de heurísticas comuns e falácias lógicas' as quais estamos todos suscetíveis, que conduzem os atores do sistema de justiça criminal a focarem no suspeito, selecionarem e filtrarem as provas que construirão o caso para a condenação, ao mesmo tempo que ignoram ou suprimem as provas que apontam para longe da culpa" [5].

Como mudar o lamentável estado de coisas atual?

Em primeiro lugar, é preciso desfazer a ideia de que falsidade e mentira necessariamente caminham juntas [6]. É possível que a vítima/testemunha esteja sendo sincera e, ao mesmo tempo, contribua com algo falso. Isso porque, embora haja correspondência entre o que ela declara e o que recorda, o que recorda e declara não corresponde à realidade dos fatos. Isso não pode ser confundido com a mentira, em que há correspondência entre a realidade dos fatos e o recordado, mas não há correspondência entre o recordado e o declarado. Na mentira, o que é declarado destoa propositalmente da realidade dos fatos; quem declara sabe que falta com a verdade. Nas falsas memórias, o que é declarado também destoa da realidade dos fatos, mas quem declara não sabe que falta com a verdade. Logo, é perfeitamente possível que a vítima aponte em erro um inocente. Sendo assim, reduzir o problema do reconhecimento falso à ética dos participantes não satisfaz o compromisso com a redução dos riscos de se condenar inocentes. É o que fica claro, por exemplo, no episódio seis da série documentário "O DNA da Justiça", que retrata o caso de Janet Burke, vítima de estupro que, com 100% de certeza, apontou o inocente Thomas Haynesworth como seu estuprador. Em sua entrevista, Janet conta que no dia do julgamento estava nervosa na sala de audiências:

"Eles (os policiais) o trouxeram. Assim que o vi comecei a me descontrolar. Parecia que eu estava revivendo a experiência de novo na frente de cem pessoas. Me lembro de ter apontado para o Thomas e ter dito 'tenho 100% de certeza de que é ele'".


 

 

 

 

 

 

 

Entre o início de sua oitiva em juízo e o momento em que apontou Thomas como seu estuprador, a audiência precisou ser suspensa para que Janet se recompusesse. Seu corpo respondia às fortes recordações daquele dia trágico. Perguntada pelo promotor como ela tinha 100% de certeza de que se tratava de seu estuprador, Janet reforçou que nunca seria capaz de esquecer aquele rosto. Thomas foi condenado a mais de 70 anos de prisão, dos quais cumpriu 27. Foi declarado inocente apenas em 2011, a partir da comparação do DNA dele com o material genético colhido por ocasião do estupro cuja incompatibilidade demonstrou, de uma vez por todas, a sua inocência. Em suma, vítimas e testemunhas podem não ter motivos para mentir, o que não afasta o perigo de erros honestos sejam por elas cometidos em razão de falsas memórias.

 

Mas não é só. Além de desfazermos a falaz associação entre falsidade e mentira, considerar as peças que a memória pode nos pregar de forma séria requer conhecimento acerca de quais fatores podem comprometer a sua fiabilidade. Nos estudos da psicologia do testemunho, já se pode dizer que é tradicional a distinção entre variáveis de estimação e variáveis sistêmicas [7]. São chamadas sistêmicas as variáveis que estão sob controle do sistema de justiça; são conhecidas como variáveis de estimação aquelas que, por oposição, não estão sob controle do sistema de justiça, cabendo conhecê-las para valorar que peso deve ser-lhe atribuído uma vez que sejam constatadas nos casos individuais. Não está sob o controle do sistema de justiça, por exemplo, que o crime tenha ocorrido pela noite, em área sem iluminação; por outro lado, está sob o controle do sistema de justiça que o reconhecimento do suspeito tenha sido realizado mostrando-se a sua fotografia pelo WhatsApp, com oferecimento de feedback positivo à vítima/testemunha após a realização do reconhecimento.

Assim, no grupo das variáveis de estimação, podemos reunir tempo de exposição, distância, iluminação, emprego de arma de fogo, o estresse, o efeito da raça diferente, pluralidade de sujeitos envolvidos no delito, disfarces e transcurso temporal etc. Já como variáveis sistêmicas, é adequado agrupar as instruções que o responsável oferece á vítima/testemunha, a composição do enfileiramento, o conhecimento da identidade do suspeito pelo responsável pelo ato, a apresentação do suspeito mais de uma vez. São numerosas as pesquisas, fundamentadas em experimentos empíricos, que constatam que estes fatores podem influenciar o conteúdo da memória humana, fazendo que o recurso a ela mereça cuidados redobrados.

Quanto às variáveis do primeiro grupo, é preciso estudo por parte dos operadores jurídicos. Investigadores, promotores, defensores, advogados e magistrados devem saber que, conforme estudos de Loftus e outros estudiosos [8], a presença de armas de fogo, por exemplo, tende a captar a atenção da vítima/testemunha, sendo mais difícil guardar detalhes da feição daquele que ameaça a sua integridade física ou mesmo de outrem. Além disso, também há mais dificuldade de precisar detalhes de rostos de pessoas de raças diferentes. Isso porque, a seleção natural preparou a memória humana para reconhecer rostos de pessoas do nosso mesmo grupo, e não para reconhecer pessoas diferentes de nós e que nunca vimos antes.

Finalmente, ainda sobre variáveis de estimação, estudos amparados em experimentos diversos desautorizam a afirmação, própria do senso comum, de que em situações de estresse estaríamos com atenção redobrada a tudo o que nos acontece [9].

Sobre as variáveis sistêmicas, como o procedimento por show up é inerentemente sugestivo [10], é preciso levar a sério a exigência de construção de um alinhamento justo, em que um conjunto de pessoas semelhantes seja exposto à vítima/testemunha. Conforme o alertado por Cecconello e Stein, a seleção dos não-suspeitos que comporão o alinhamento deve obedecer dois princípios: 1) nenhum rosto deve se sobressair em relação aos outros; 2) os não suspeitos devem atender às descrições do culpado da mesma forma que o suspeito [11]. Essas exigências refletem a preocupação com a redução dos riscos de falsos positivos; de que pessoas inocentes venham a ser indevidamente apontadas. Como realizar alinhamentos justos presencialmente? Como esperar que as delegacias de polícia sempre contem com uma pluralidade de pessoas semelhantes aos suspeitos disponíveis em todos os inquéritos em que o reconhecimento se fizer necessário?

Isso me leva a um ponto polêmico: o reconhecimento por fotografia é, sim, uma alternativa a ser considerada. As dificuldades de se reunir presencialmente pessoas semelhantes com os suspeitos em cada um dos inquéritos em que o reconhecimento fosse necessário podem ser superadas a partir do uso das fotografias. Novamente valho-me dos estudos realizados por pesquisadores da psicologia do testemunho, de acordo com os quais, o reconhecimento por fotografia não perde para o reconhecimento presencial [12]. No entanto, é sempre importante frisar que a fotografia a ser utilizada no procedimento não é qualquer fotografia. Sob nenhuma hipótese o reconhecimento por fotografia poderá ser realizado mediante álbum de suspeitos, "baralho do crime" ou coisa parecida. Sob nenhuma hipótese a fotografia poderá ser mostrada por whatsapp, sem que se realize a formalidade do alinhamento justo. Sob nenhuma hipótese a vítima/testemunha poderá ser pressionada a reconhecer alguém por foto de rede social, como condição para a continuidade da investigação criminal. Dedicar esforços à construção de protocolos para a produção de reconhecimentos por fotografia é passo imprescindível à fase que antecede e prepara o processo penal. Assumir a alternativa do reconhecimento fotográfico não deve servir à naturalização das irregularidades praticadas até o presente momento, sendo imprescindível controlar a qualidade e a procedência das fotos que passem integrar a biblioteca.

Longe de significar o esvaziamento das garantias do investigado/acusado, o reconhecimento por fotografia deve refletir robusta preocupação quanto à forma [13], de modo a que a sua regulamentação represente o genuíno zelo à liberdade dos cidadãos, imposto pela presunção de inocência. O reconhecimento fotográfico deve servir à redução do risco de se condenar inocentes, nunca à facilitação. Aprender com as soluções construídas por outros sistemas jurídicos sem desconsiderar o processo penal invisível [14] porém vigente é desafio que requer o empenho de diversas áreas, complementares em suas perspectivas. Essa é a motivação que atualmente move o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, no âmbito de desenvolvimento das próximas atividades do projeto Prova sob Suspeita [15]. Advogados, promotores, defensores, magistrados e pesquisadores irão se reunir em torno a uma preocupação comum: é urgente que o reconhecimento deixe de ser porta aberta à seletividade penal que encarcera a juventude, enjaula sonhos e destrói futuro Brasil afora.


 

 

 

 

 

 

 

P.S.: Agradecimentos a Lívia Moscatelli e a Rachel Herdy pela leitura atenta.

 

 


[3] Sobre o viés confirmatório, ver Gloeckner. “Prisões cautelares, confirmation bias e o direito fundamental à devida cognição no processo penal”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 117, ano 23, 263-286. São Paulo: RT, 2015. Sobre o juiz brasileiro como continuidade ao trabalho policial, “espécie de centroavante de uma equipe na qual participam policiais militares, policiais civis, promotores”, ver Semer, Marcelo. Sentenciando tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento”. São Paulo: Tirant lo blanch, 2019, p. 287.

[4] Em pesquisa recente realizada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em 58 casos (recebidos entre 1o de junho de 2019 até 10 de março de 2020) que culminaram em sentenças absolutórias, o reconhecimento por fotografia (álbum de suspeitos, foto enviada por whatsapp etc.) ensejou decretação de prisão cautelar em 50 deles (equivalente a 86,2%). Acesso em 17 de setembro de 2020: http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/imagens/d12a8206c9044a3e92716341a99b2f6f.pdf.

[5] Findley, Keith; Scott, Michael.“The Multiple Dimensions of Tunnel Vision In Criminal Cases”. Wisconsin Law Review. Wisconsin, n. 1023, p. 291-397. jun. 2006.

[6] Sobre isso, ver também Ramos, Vitor de Paula. Prova testemunhal: do subjetivismo ao objetivismo. Do isolamento científico ao diálogo com a psicologia e a epistemologia. São Paulo: RT, 2018.

[7] Wells, G. L. Applied Eyewitness-Testimony Research: System Variables and Estimator Variables. Journal of Personality and Social Psychology, vol. 36, n. 12, pp. 1546-1557. As variáveis de estimação e sistêmicas também foram tratadas em Matida, J. “Standards de prova: a modéstia necessária a juízes e o abandono da prova por convicção”. In Arquivos da resistência: ensaios e anais do VII Seminario Nacional do IBADPP, Florianópolis, 2019; Badaró, C. “A prova testemunhal no Processo Penal brasileiro: uma análise a partir da epistemologia e da psicologia do testemunho”, RBCCRIM, n 156, 2019.

[8] Loftus, E; Loftus, G.R; Messo, J. “Some Facts about ‘Weapon Effects’”, Law and Human Behaviour, vol. 11, 55-62, 1987. No mesmo sentido, Morais da Rosa, A. Guia do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos, item 16.16.4, p.763 e ss.

[9] Morgan, C.A.; Hazlett, G.; Doran, A; Garret, S; Hoyt, G; Thomas, P.; Baranoski, Madelon, Southwick, S.M. “Accuracy of Eyewitness Memory for Persons Encountering During Exposure to Highly Intense Stress”. International Journal of Law and Psychiatry, vol 27, 265-279, 2004.

[10] Zimmerman, D.M.; Austin, J.L; Kovera, M.B. “Suggestive Eyewitness Identification Procedures” In Conviction of the Innocent: Lessons from Osychological Research. American Psychological Association Washington, DC, 2012.

[11] Cecconello, W., Stein, L. Prevenindo injustiças: como a psicologia do testemunho pode ajudar a compreender e prevenir o falso reconhecimento. Avances en Psicología Latinoamericana, 38 (1), 172-188, 2019, p. 180.

[12] Ibidem.

[13] Vieira, A; Matida, J.; Badaró, C.; Nardelli, M.M. “A toda prova”, n. 1, In Boletim Trincheira Democrática, IBADPP. “[…] não parece razoável – e de fato não é – que a validade do reconhecimento por fotografia possa significar verdadeiro desprezo ao pressuposto racional de que é preciso contar com critérios para tudo o que se pretenda considerar como prova”.

[14] Amodio, Ennio. La procedura penale dal rito inquisitorio ao giusto proceso. Cassazione penale, vol 43, 1419-1424, 2003.

[15]. Para mais informações, acesse: http://www.provasobsuspeita.org.br.

Autores

  • é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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