Opinião

O prazo para o processo revisional disciplinar do CNJ

Autor

17 de setembro de 2020, 19h43

Ante o texto da Constituição Federal, em seu artigo 103-B, §4º, V (incluído no sistema jurídico a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004), a princípio não sobrariam dúvidas a respeito do prazo para o processo revisional das sanções disciplinares contra os magistrados, perante o Conselho Nacional de Justiça, uma vez que ao CNJ compete, entre outras:

"Rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano".

Seguindo tal ditame constitucional, o CNJ disciplinou tal procedimento em seu regimento interno, no artigo 82:

"Poderão ser revistos, de ofício ou mediante provocação de qualquer interessado, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano do pedido de revisão".

Aparentemente a matéria é de uma simplicidade ímpar e despida de qualquer controvérsia jurídica, pois até o STF tem posição plenária nesse sentido:

"O pedido de revisão disciplinar para o CNJ deve ser feito até um ano após o julgamento do processo disciplinar pelo respectivo tribunal, nos termos do artigo 103-B, §4º, V, da Constituição. Dessa forma, esgotado tal prazo só restará ao interessado socorrer-se da via judicial para discutir a punição que lhe foi aplicada". (MS 27.767 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 23-3-2011, DJE de 8-4-2011).

Todavia, alguns aspectos passaram despercebidos na abordagem do tema, e se faz necessário o resgate deles para a sua melhor compreensão. Passaremos a eles:

Da ação revisional — a qualquer tempo
Uma das maiores e mais importantes razões de existência de um órgão julgador é a sua função de corrigir injustiças. E quando essa injustiça é praticada na esfera punitiva, mediante sanção aplicada ao cidadão, o sistema jurídico normalmente não impõe prazo para que a incorreta punição seja revista/retificada/anulada. Afinal de contas, é muito melhor corrigir uma injustiça do que perpetuá-la.

O Código de Processo Penal é expresso em referir que a ação revisional será apresentada a qualquer tempo:

"Artigo 622 — A revisão poderá ser requerida em qualquer tempo, antes da extinção da pena ou após".

Mas não é apenas na esfera penal que tal se faz possível. Aos servidores públicos a Lei nº 8.112/1990 também prevê a possibilidade de revisão de qualquer sanção disciplinar administrativa, sem limitação temporal:

"Artigo 174 — O processo disciplinar poderá ser revisto, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando se aduzirem fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada".

Mais DO que isso, qualquer cidadão que vier a sofrer uma sanção por parte da Administração Pública poderá solicitar a revisão da punição sem um prazo específico para tal medida. A Lei do Processo Administrativo, nº 9.784/1999, igualmente dispensa qualquer exigência de prazo para tal medida:

"Artigo 65 — Os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção aplicada".

Como facilmente se observa, o sistema jurídico brasileiro, acertadamente, adotou a política de permitir a correção de injustiças, sem estabelecer um prazo limite para isso. A compreensível inaceitabilidade de punição injusta é própria da natureza humana que, somada ao princípio da inocência, justifica que a sociedade reconheça essa necessidade de previsão de instrumentos jurídicos para o resgate da honorabilidade, sem o estabelecimento de prazo limite. Aos próprios advogados também é garantida a revisão do processo disciplinar, conforme estabelecido no Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/1994), em seu artigo 73, §5º.

Essa revisão da sanção aplicada é um instrumento colocado à disposição daquele que foi punido, como um modo de obter a sua absolvição ou alteração da punição para uma situação mais equilibrada legalmente, desde que, claro, existentes elementos fáticos e/ou jurídicos que justifiquem a revisão da decisão original.

O processo revisional, no entanto, não se presta a piorar a condição daquela pessoa sancionada legalmente. O Código de Processo Penal expressamente refere que "não poderá ser agravada a pena imposta pela decisão revista" (artigo 626, parágrafo único). Igual limitação é prevista no Estatuto dos Servidores da União (Lei nº 8.112/1990, artigo 182, parágrafo único) e na Lei do Processo Administrativo (Lei nº 9.784/1999, artigo 65, parágrafo único).

No ordenamento jurídico pátrio, portanto, a lógica do sistema revisional é permitir ao cidadão — e, claro, desde que haja elementos para esse fim — a possibilidade de ser revista a qualquer tempo a punição aplicada pela Administração Pública. Portanto, seria um ponto totalmente fora da curva prever exclusivamente aos integrantes da magistratura e do Ministério Público a imposição de tempo máximo para essa possibilidade, uma vez que não há qualquer justificativa específica para tal limitação.

Por qual razão um cidadão sancionado administrativamente, pelo simples fato de ser juiz, não poderia pleitear a revisão da pena imposta, se existentes motivos fundamentados para isso? Essa distinção operaria quase como uma nova sanção, se comparada aos demais integrantes do sistema administrativo, já que o servidor público e qualquer cidadão pode pleitear a revisão da punição imposta pela Administração Pública. Tal limitação se afigura discriminatória, porquanto violado o princípio da igualdade a que, em tese, submetidos todos os cidadãos, pouco importando sua profissão (artigo 5º e artigo 7º, XXXII, da Constituição Federal).

Limitação temporal na reforma do Judiciário
Se a revisional é um instrumento à disposição do cidadão, sem limitação de prazo, de modo a privilegiar a correção de injustiças, qual teria sido o motivo de se estabelecer essa limitação temporal na reforma do Judiciário, promovida pela Emenda Constitucional 45/2004? Para responder essa questão é preciso compreender o enfoque dado à reforma do Judiciário, quando da criação do Conselho Nacional de Justiça.

Naquele momento histórico, o país havia atravessado alguns escândalos relacionados ao Poder Judiciário (em especial os desvios decorrentes da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo), o que exigia a criação de um órgão de controle administrativo central, com abrangência sobre todos os tribunais, que conduzisse uma política judiciária nacional. Esse órgão receberia reclamações e exerceria a fiscalização do Judiciário, "sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais" (artigo 103-B, §4º, III). Equivale dizer, a atuação do CNJ não prejudicaria a competência dos tribunais, os quais continuariam tendo garantida a sua autonomia para julgar os magistrados. Segundo a EC 45/2004, artigo 103-B, §4º, portanto, o CNJ poderia avocar os processos disciplinares em curso (inciso III) ou rever os processos administrativos julgados pelos tribunais (inciso V).

Se o conselho tem a competência para "avocar" ou "rever" processo administrativo disciplinar, parece ser claro que a competência originária não é sua quanto aos mesmos processos. Assim, a princípio, o CNJ não teria competência para julgar originariamente processo administrativo disciplinar, fora da situação da avocatória, pois do contrário estaria "prejudicando a competência" dos tribunais a respeito dessa matéria, o que estava sendo vedado pela EC 45/2004.

Todavia, como uma das razões da criação do CNJ era justamente impedir a impunidade de atos irregulares praticados por integrantes da magistratura, a emenda constitucional incluiu a possibilidade de o CNJ avocar processo em curso e de rever os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais. No entanto, diferentemente da tradicional ação revisional de sanção disciplinar (que não pode operar para prejudicar o administrado), aqui o Conselho Nacional de Justiça poderia rever integralmente a decisão disciplinar adotada pelo tribunal, inclusive para impor ou ampliar a sanção ao magistrado. Como essa função punitiva revisional excepcional não poderia ficar aberta eternamente, estabeleceu-se limite temporal de um ano, de modo a salvaguardar os magistrados dessa atuação sancionatória excepcional.

Assim, o CNJ, na sua atuação fiscalizatória, poderia rever a decisão disciplinar tomada pelos tribunais e impor medidas mais drástica aos magistrados, inclusive de ofício, desde que assim atuasse no prazo de um ano. Essa medida excepcional punitiva, não prevista aos demais integrantes da Administração Pública, até faz sentido, ante a necessidade de um controle central e padrão disciplinar nacional da magistratura. Correto, assim, limitar-se o tempo para que o Conselho Nacional de Justiça possa rever processos disciplinares e impor nova sanção ao magistrado, para que não se eternize essa possibilidade de ação punitiva adicional.

Ocorre que em 2012, todavia, o STF decidiu por seis votos a cinco, na ADI 4638, que o CNJ teria competência disciplinar "concorrente" à dos tribunais. Por conta dessa nova situação emanada do STF, o Conselho Nacional de Justiça tem a possibilidade de julgar originariamente os processos disciplinares envolvendo magistrados, e isso prejudica, no nosso entender, a competência disciplinar dos tribunais prevista na Constituição. Atuando originariamente na questão disciplinar, não faz sentido a regra constitucional da revisional ex officio. No entanto, como revisor das decisões disciplinares dos tribunais, inclusive para acrescer ou impor sanções não previstas na decisão revista, faz todo sentido o limite temporal aplicado ao CNJ, o qual é decadencial.

O que não faz sentido, todavia, é a limitação temporal da possibilidade da revisão da sanção disciplinar a pedido do magistrado, na busca da correção de eventual injustiça contra si praticada, seja diretamente no tribunal originário da respectiva sanção, seja perante o CNJ. Perpetuar-se uma injustiça não é o que pretende o sistema jurídico pátrio, que, ao contrário, estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a busca pela justiça e a promoção do bem geral de todos, sem qualquer preconceito ou discriminação (artigo 3º, I e IV, da Constituição Federal).

Os magistrados se encontram submetidos ao ineditismo de terem o seu processo administrativo disciplinar revisto unilateralmente pelo CNJ (inclusive para agravar a decisão originária), o que não encontra correlação no sistema adotado em face dos demais cidadãos ou servidores públicos. Mas impor-lhes, ainda, a limitação temporal da revisão disciplinar para corrigir eventual injustiça é algo que não encontra qualquer justificativa de ordem prática, legal ou social.

Nas causas em que o CNJ atua como órgão disciplinar originário, por certo não há que se falar em possibilidade de revisão unilateral ou de ofício, com a finalidade de ampliar a sanção antes imposta. Estaria sendo violado o princípio do trânsito em julgado administrativo, o que impossibilita o mesmo órgão de impor nova medida prejudicial de ofício à mesma pessoa e quanto aos mesmos fatos.

Assim, a única interpretação capaz de trazer razoabilidade a todo o sistema é entender que a revisão prevista na competência constitucional do CNJ e com lapso temporal especificado diria respeito à possibilidade do órgão rever de ofício ou mediante provocação os processos disciplinares dos tribunais, e impor ou ampliar as sanções originalmente estabelecidas. O dispositivo constitucional não diria respeito, portanto, à possibilidade da revisão disciplinar a ser apresentada pelo próprio magistrado, visando a correção de injustiças, se presentes os requisitos necessários para tanto.

Distinção entre revisão e recurso no âmbito do CNJ
Essa competência do CNJ para conhecer do pedido revisional promovido pelo magistrado dispensaria uma previsão constitucional específica, até porque disponibilizada essa possibilidade para qualquer cidadão (Lei do Processo Administrativo, nº 9.784/1999) e para os servidores públicos (Estatuto dos Funcionários Públicos, nº 8.112/1990). Afinal, o CNJ possui muitas atribuições não previstas expressamente no ordenamento constitucional, e a revisão disciplinar a pedido do próprio magistrado é mero reflexo da competência disciplinar maior. Afinal, quem tem competência para o "mais", que é punir, por certo teria competência para o "menos", que seria a redução ou anulação da sanção antes aplicada.

Portanto, se mostra equivocada, no nosso entender, a posição mais recente do CNJ no sentido de não conhecer de revisão disciplinar de processo por ele próprio julgado, sob o argumento de que isso equivaleria a um recurso, o que não seria aplicável naquele órgão:

"Recurso administrativo. Revisão disciplinar contra decisão do próprio plenário do CNJ. Impossibilidade.
1. A revisão disciplinar só é cabível para rever os processos disciplinares apreciados pelos tribunais contra seus magistrados, julgados a menos de um ano, e desde que julgados pelo órgão colegiado competente, nos termos do artigo 103-B, § 4º, V, da Constituição Federal e do artigo 82 do RICNJ.
2. O CNJ, conhecendo revisão disciplinar em face das decisões do seu próprio plenário, estaria, por via reflexa, admitindo recurso administrativo das decisões do Conselho, o que é expressamente vedado"
. (CNJ, Processo 0004290-58.2018.2.00.0000, Rel. Cons. Valdetário Andrade Monteiro, pleno, unânime, j. 11/9/2018).

Processo revisional não se confunde com recurso, até porque são distintos os requisitos para uma e outra medida. O fato de não ser possível recurso das decisões plenárias do CNJ (aqui também um equívoco, na medida em que ao menos os embargos declaratórios deveriam ser admitidos, inclusive pela clara dicção do CPC, artigo 1.022, caput, no sentido de que "qualquer decisão" comporta aclaratórios), por certo isso não impede a apreciação da revisão disciplinar se preenchidos os requisitos. O texto da Constituição não limita a revisão às decisões disciplinares dos tribunais, o que faz presumir que também as decisões do CNJ possam ser objeto desse procedimento. Do contrário, joga-se fora a oportunidade de corrigir possível injustiça, o que deveria ser a função primordial do Conselho Nacional de Justiça.

O próprio Supremo Tribunal Federal definiu que revisão disciplinar não se confunde com recurso. Assim diz a notícia publicada no site do STF:

"2ª Turma decide que revisão disciplinar no CNJ não tem natureza de recurso. (…) Na sessão desta terça-feira (4), a turma negou provimento a agravo regimental da Procuradoria-Geral da República (PGR) no Mandado de Segurança (MS) 30072 e confirmou entendimento do ministro Gilmar Mendes de que a revisão disciplinar no CNJ não tem natureza recursal". (www.stf.jus.br, notícias, 4/6/2019).

É claro que ao magistrado ainda caberia a via judicial para questionar a decisão disciplinar. Todavia, essa possibilidade é limitada às questões de legalidade, pois o Judiciário irá apreciar apenas essa vertente. A revisão disciplinar, por sua vez, é mais ampla, inclusive quanto à injustiça ou adequação da sanção antes aplicada. Não se pode perder de vista que muitas vezes uma decisão, ainda mais colegiada, é tomada sob o calor dos argumentos e do momento, circunstâncias que podem se mostrar inadequadas posteriormente. Uma fala desconexa ou um discurso mais inflamado pode influenciar uma decisão, não refletindo adequadamente o entendimento jurídico sobre o caso em situação de normal serenidade.

Mesmo ofertada a ação judicial para atacar a legalidade da punição disciplinar, isso não impediria a revisão administrativa da decisão pelo próprio órgão. Trata-se de duas coisas distintas e que não se prejudicam. O cidadão pode ingressar com ação judicial questionando a punição, ter o pedido indeferido, e a qualquer tempo solicitar a revisão, que se operará em condições distintas da via judicial anterior ou simultaneamente utilizada.

Conclusão
Considerando que qualquer cidadão pode recorrer das decisões administrativas que lhe imponham sanções (artigo 56 da Lei 9.784/1999), o julgamento dos magistrados pelo CNJ encerra juízo único, sem duplo grau de apreciação e sem possibilidade recursal. Além dessa significativa restrição ao direito de se defender adequadamente, o magistrado ainda pode ter seu processo disciplinar revisto de ofício pelo CNJ para aplicar ou ampliar a pena. Ante todas essas limitações, ainda negar ao magistrado a via revisional administrativa das decisões do CNJ ou impor um prazo determinado para a revisão das decisões dos tribunais constitui discriminação não admitida pela carta constitucional. Não convém negar-se aos magistrados um direito que é garantido a todo e qualquer cidadão, pois isso diminui a estatura da própria magistratura, que sai desprestigiada pelo órgão que teria a função primordial de protegê-la.

Autores

  • é advogado, ex-juiz do Trabalho, foi conselheiro do CNJ (2011/2013), vice-presidente da AMB (2008/2010), presidente da Amatra-SP (2004/2006), vice-diretor da Escola Judicial do TRT/SC, PhD em curso pela Universidade de Strathclyde, pós-graduado em Arbitragem Internacional pela Universidade de Aberdeen, mestre em Direito Pela Universidade de Lisboa, autor, parecerista e árbitro.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!