Opinião

Desinformação e colonialidade são desafios à democracia no Brasil

Autores

  • João Paulo Allain Teixeira

    é advogado professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco membro do Instituto Publius e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

  • Raquel Fabiana Lopes Sparemberger

    é professora-adjunta da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) professora do programa de mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) professora dos cursos de graduação e do programa de mestrado em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP–RS) professora pesquisadora do CNPq e Fapergs pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

1 de setembro de 2020, 10h33

Intensificada a partir da década passada, a popularização da internet foi recebida como um importante instrumento de democratização do acesso à informação. A expectativa de acesso horizontal à informação anunciava um espaço igualitário de circulação de ideias e perspectivas sobre a vida cotidiana. Como resultado da digitalização da vida, uma explosão de informações fragmentadas em uma miríade de plataformas com as quais convivemos em casa, no trabalho, no trânsito e nos momentos de lazer. Contudo, o cenário de desordem informacional trouxe a possibilidade de manipulação da informação com objetivos diversos (políticos, econômicos etc) [1]. A desinformação [2] aparece, assim, como perversão do jogo democrático na medida em que a sua disseminação solapa as bases do diálogo horizontal.

No momento em que o "dataísmo" [3] se afirma como a religião do nosso tempo, Nick Couldry e Ulises Mejias apontam a permanência de um projeto colonial inacabado. Se o colonialismo historicamente consistiu em anexar territórios e explorar as suas riquezas naturais a partir da subalternização dos corpos que neles trabalhavam, o "colonialismo de dados" ao qual se referem Couldry e Mejias consiste em algo mais simples, porém muito mais profundo. A captura e o controle da própria vida humana mediante a apropriação de dados a ela relativa e convertendo-os em lucro [4]. Os neocolonialismos decorrem assim de um conjunto de práticas que reafirmam a continuidade de um processo histórico ainda inacabado. A apropriação e o manejo de dados com finalidade política e econômica é a forma contemporânea que o colonialismo assume. Ao apontar os custos de uma vida hiperconectada, Couldry e Mejias denunciam os efeitos da disponibilização de dados através das redes de computadores. A tendência para a digitalização de todos os aspectos da vida facilita a apropriação e controle dos dados pessoais para finalidades diversas. Cada vez mais conectadas e cada vez mais cercadas por câmeras, sensores etc., as pessoas disponibilizam voluntariamente informações cuja utilização é controlada por um universo restrito de empresas [5].

No contexto das democracias liberais, o debate sobre a democratização da internet é geralmente pautado pelas tensões inerentes às políticas regulatórias diante da liberdade de expressão. Em realidades em que o colonialismo operou feridas profundas como acontece com o Brasil, o desafio do enfrentamento à desinformação torna-se ainda mais complexo. No Brasil, as desigualdades sociais e as relações assimétricas de poder dificultam a concretização de um espaço democrático e apresentam impactos significativos na disseminação e consumo de desinformação nas redes sociais [6].

O enfrentamento da questão parte de diferentes atores: em primeiro lugar, é preciso pensar na postura do poder público diante da desinformação. No Brasil, as repostas oficiais diante da proximidade das eleições municipais em novembro próximo desencadearam um amplo processo de enfrentamento da desinformação tanto no âmbito do Congresso Nacional como no âmbito do Supremo Tribunal Federal. No Congresso, tramita em regime acelerado o PL 2630 e ,no Supremo Tribunal Federal, o Inquérito das Fake News.

Em segundo lugar, esse enfrentamento demanda respostas também das próprias plataformas sociais que não se eximem da responsabilidade sobre os conteúdos nelas veiculados Nesse sentido, o aumento da pressão sobre as redes sociais tem determinado respostas no sentido da observação de comportamentos que indicam inautenticidade dos usuários cadastrados. Nessa linha, o Facebook anunciou também a criação de um comitê de supervisão para decidir sobre remoção de conteúdos [7].

Em terceiro lugar, é preciso destacar que a responsabilidade com as formas de utilização das redes digitais tem uma dimensão claramente social. Iniciativas da sociedade civil como o movimento Sleeping Giants Brasil e o projeto Redes Cordiais contribuem para a construção de uma cultura de transparência e confiança nas redes sociais. Para além dessas iniciativas, a responsabilidade pela qualidade do debate público nas redes sociais é também de cada um dos usuários. Pensar a construção de um horizonte decolonial nas redes sociais pressupõe a possibilidade de ampla participação desde que comprometida com os valores da inclusão democrática e da sinceridade do debate público.

 


[1] A esse respeito, ver por exemplo o impacto das redes sociais nas eleições dos EUA e da campanha pelo Brexit no Reino Unido.

[2] Existem modelos de classificação das diferentes formas de manifestação da desinformação como por exemplo Desinformation, Misinformation, Mal-information proposto pelo Conselho da Europa. No mesmo sentido, as chamadas fake news podem ser compreendidas a partir das espécies falsa conexão, conteúdo enganoso, falso contexto, conteúdo impostor, conteúdo manipulado, conteúdo fabricado e sátira-paródia.

[3] HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã. São Paulo: Companhia das Letras.

[4] COULDRY, Nick; MEJIAS, Ulises. The Costs of Connection: How Data is Colonizing Human Life and Appropriating it for Capitalism. Stanford: Stanford University Press 2019 p. xi

[5] COULDRY, Nick; MEJIAS, Ulises. The Costs of Connection: How Data is Colonizing Human Life and Appropriating it for Capitalism. Stanford: Stanford University Press 2019.

[6]No Brasil, 76% da população é usuária da rede, sendo que quase a totalidade (97%) tem acesso via telefone celular. O telefone celular é o único meio de acesso à internet sobretudo nas classes C (61%), e DE (85%). Ocorre que nessas classes, o uso da Internet se dá basicamente através da contratação de planos de aces­so limitados nos quais o provedor disponibiliza uma franquia de dados ao fim da qual somente aplicativos específicos ficam disponíveis para uso. Essa prática, conhecida como zero-rating, é estabelecida a partir da parceria entre empre­sas – como Facebook, Whattsapp e Twitter – e provedores de serviços Internet. Os aplicativos dessas empresas aca­bam se tornando o principal meio de informação e comuni­cação para essa parcela da população. Dentro deste cená­rio, a disseminação massiva de conteúdo enganoso pode ser favorecida pela ampla utilização deste tipo de aplicativo, como ocorreu em 2018 com o WhatsApp, que tinha seu acesso permitido mesmo após o consumo integral do plano de acesso à Internet”. Relatório Internet, Desinformação e Democracia. Disponível em: https://cgi.br/media/docs/publicacoes/4/20200327181716/relatorio_internet_desinformacao_e_democracia.pdf

Autores

  • é advogado, professor da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade Federal de Pernambuco, professor do programa de pós-graduação em Direito de ambas universidades e líder do Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC).

  • é professora-adjunta da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), professora do programa de mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), professora dos cursos de graduação e do programa de mestrado em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP–RS), professora pesquisadora do CNPq e Fapergs, pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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