Direitos Fundamentais

A democracia e os direitos fundamentais em luto

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30 de outubro de 2020, 17h49

A despeito de neste mesmo veículo, nesta sexta-feira (30/10) mesmo, já ter sido externado, mediante escrito firmado por uma plêiade de ilustres juristas, o sentimento de intenso pesar causado pelo falecimento do grande professor e jurista Paulo Bonavides, que nos deixou aos 95 anos de idade, não poderia eu deixar de aproveitar o espaço desta coluna, dedicado aos direitos fundamentais, para me pronunciar, fazendo-o tanto na condição de professor e pesquisador dedicado ao tema, quanto na condição de cidadão. Aliás, o simples fato de ser esse o foco da coluna, por si só, já tornaria imperativa tal manifestação, entre outras razões, pelo pioneirismo, pela relevância e pelo impacto da obra do nosso homenageado sobre os direitos e as garantias fundamentais.

Todos os que tiveram e seguem tendo algum envolvimento com o Direito Constitucional, a ciência política e a teoria do Estado bem sabem que a afortunadamente longa e fecunda trajetória pessoal e profissional de Paulo Bonavides, seja na condição de professor da tradicional Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, de diversas gerações de atores da cena jurídica e política brasileira, seja como conferencista, autor e jurista internacionalmente conhecido e respeitado, transcende em muito o domínio dos direitos fundamentais, ainda que este por si só já o faria merecedor de tal prestígio.

Mas Paulo Bonavides foi também um autêntico homem político, comprometido, com sua pena, sua voz e seus atos, com a democracia, a República (e o republicanismo), o Estado de Direito, ademais de sua defesa intransigente da justiça social, causas que abraçou ainda jovem e que defendeu de modo incondicional até o último suspiro, com talento, mas acima de tudo com vigor, coerência, consistência e coragem ímpares, não se calando ou curvando, independentemente das dificuldades e riscos.

Sua vasta obra, que inclui incursões pela literatura, história, ciência política, teoria do Direito, teoria do Estado e pelo Direito Constitucional, além de caracterizada pela densidade cultural e científica, é marcada pelo seu pioneirismo, originalidade e cunho propositivo, o que se pode ilustrar, entre tantos outros exemplos, mediante referência à sua tese de cátedra sobre o estado liberal e social, ao seu magnífico Curso de Direito Constitucional, os escritos sobre política e Constituição, constituinte e Constituição, sua história constitucional brasileira e a Constituição aberta, textos que foram determinantes para a minha própria formação e trajetória desde a graduação em Direito, como professor e pesquisador na área do Direito Constitucional e para a opção pelo tema da minha tese de doutoramento.

Já em idade madura, mas com invulgar juventude de espírito e pensamento, além de energia inesgotável (recordo-me das marcantes conferências ministradas já passada a marca dos 90 anos), Paulo Bonavides optou por abraçar com particular ênfase a bandeira da democracia participativa, o reconhecimento de um direito humano e fundamental à paz, assim como a luta contra a desigualdade e dependência, como dão conta as obras "Do País Constitucional ao País Neocolonial" e "Teoria Constitucional da Democracia Participativa", mas também o seu livro sobre a Constituição e a normatividade dos princípios, 2012.

À vista do mote da presente coluna, é de se destacar que Paulo Bonavides foi também um grande cultor do Direito comparado, trazendo para nosso meio institutos e ideias que não só oxigenaram o Direito Constitucional brasileiro como permitiram o seu desenvolvimento, isso sem descurar da necessária filtragem e ajustes à nossa realidade e ao Direito positivo, o que se deu não só, mas particularmente na seara dos direitos fundamentais.

Sublinharia, nesse contexto, a difusão entre nós da dupla dimensão subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, com os seus diversos desdobramentos, que veio a "contaminar" positivamente tanto a doutrina quanto a jurisprudência, em especial a do Supremo Tribunal Federal, dando sustentação a muitos e importantíssimos julgados. O mesmo vale para a teoria e a prática da interpretação dos direitos fundamentais, incluindo figuras como a proporcionalidade, núcleo essencial, normatividade de princípios e regras, entre tantas outras contribuições.

Antes de finalizar, contudo, é preciso agradecer não mais apenas como jurista, mas também na perspectiva pessoal, posto que Paulo Bonavides pela generosidade que lhe era peculiar foi também um grande incentivador e apoiador de minha trajetória acadêmica, agraciando-me não só com as por si só já suficientemente honrosas referências na sua bibliografia, como protagonizando o primeiro convite para proferir conferência em evento de grande envergadura após a conclusão do doutorado na Alemanha, ademais de me brindar com o prefácio do meu livro sobre a dignidade da pessoa humana, nunca deixando de me dispensar sua atenção e afeto.

Por tudo isso e muito mais, o momento, ainda que marcado pela tristeza de não poder mais contar com Paulo Bonavides no nosso meio e de lhe render pessoalmente justa e merecida homenagem, é também o de assumir compromisso público com as causas que abraçou e de dar continuidade, cada um a seu modo e de acordo com suas forças, ao seu bom combate pela democracia e pelos direitos fundamentais. Mais do que se poderia talvez imaginar há não muito tempo, é hora de seus escritos e sua voz serem levados a sério.

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