Embargos Culturais

O jeitinho brasileiro e a arte de ser mais igual do que os outros

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

18 de outubro de 2020, 8h00

Começo com algumas perguntas. Quando surgiu, na cultura brasileira, a expressão "jeitinho"? Há registros escritos? Há registros orais? Quando a expressão foi dicionarizada pela primeira vez? Que sentido lhe deram? Quando deixou de ser "geitinho" e passou a ser "jeitinho"? Em qual momento histórico "jeitinho" se tornou tema dos meios de comunicação? A noção de "jeitinho" é recente? Tem data? Sempre existiu? Há alguma ancestralidade? Seria uma herança portuguesa? Trata-se de um conceito-síntese? Quais seus domínios? Quais suas técnicas? Que personagens encarnam o "jeitinho"? "Jeitinho brasileiro" é mesma coisa do que "país do jeitinho"? Qual a relação entre "jeitinho" e identidade nacional? Há uma noção positiva de "jeitinho"?

Spacca
Se o leitor não tem resposta para uma dessas perguntas deve ler "O jeitinho brasileiro, a arte de ser mais igual do que os outros", de Lívia Barbosa. Se não tem resposta para todas, ou para a maioria das perguntas, ou se responde no achômetro, então o problema é mais grave. Se pretende entender a si próprio e a nossa cultura deve ler esse livro, imediatamente. Um livraço! Imperdível para quem nos preocupamos com o Brasil. Atualíssimo.

Trata-se de tese de doutoramento que a pesquisadora Lívia Barbosa defendeu em 1987, no programa de pós-graduação em Antropologia Social, junto ao Museu Nacional, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lívia foi orientada por Roberto DaMatta, que assina o prefácio desse precioso livro. Tenho comigo uma edição da Campus, de 1992. O livro de Lívia é provavelmente um dos mais esclarecedores estudos de antropologia social aplicada ao caso brasileiro. A autora havia feito o mestrado nos Estados Unidos (Chicago). Com ampla experiência internacional, leu o Brasil com os olhos cosmopolitas. Uma contribuição preciosa.

Esse pequeno-grande livro (145 p.) trata primeiramente de como o "jeitinho" entrou na História; nossa História, bem entendido. Explicita as várias percepções culturais que há em torno da expressão. Desenha um mapa social do "jeitinho". Decompõe seus idiomas, domínios e técnicas. Compara o conceito de "jeitinho" com a concepção de "você sabe com quem você está falando", que predica nas reflexões de seu orientador, Roberto DaMatta. Enfrenta o "jeitinho" no contexto de nossas fórmulas de hierarquia e de individualismo. Discute o conceito de "jeitinho" na concepção de uma identidade nacional. Penso que é um livro completo, que esgota o assunto e que, ao mesmo tempo, levanta um sem-número de questões insuspeitas.

Lívia chama a atenção para nossa complexa relação com o "não". Esse advérbio é complicado. Nossas negativas, muitas vezes, vêm em formas dissimuladas ou em concordâncias disfarçadas. Nós brasileiros temos problemas em dizer simplesmente "não". Nesse tema, Lívia apontou para referências recorrentes no campo, a exemplo do "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda, da miscigenação criativa de Gilberto Freyre e das "ideias fora do lugar", de Roberto Schwarz. Lívia relacionou a essas categorias conceituais uma fórmula indagativa muito comum entre nós: "o senhor não pode dar um jeitinho?

Quem foram os primeiros a estudar o assunto? Como opinaram? Segundo Lívia, o sociólogo Guerreiro Ramos (1915-1982), tratou da matéria em livro de 1966, "Administração e Estratégia do Desenvolvimento — Elementos de uma Sociologia Especial da Administração", publicado pela Fundação Getúlio Vargas. O "jeitinho", nessa leitura, seria estratégia secundária de ação, que respondia ao formalismo.  Regras universais, em algumas circunstâncias, deixariam de ser aplicadas.

Ainda segundo Lívia, Roberto Campos (1917-2001), em "A técnica e o riso" (1966), sustentou que o "jeitinho" não seria legal, e nem ilegal. O "jeitinho" seria, para o diplomata, paralegal. O "jeitinho" respondia ao irrealismo de formulações normativas gerais, abstratas e pretensamente universais. De Portugal herdávamos diferenças de tratamento e de aplicação da norma jurídica. Exemplifico com regra contida no Livro V das Ordenações Filipinas, que autorizava que maridos assassinassem esposas adúlteras, bem como quem com elas cometesse o adultério, a menos que fossem de classe social superior. Pediria perdão para os nobres…

João Camilo de Oliveira Torres (1915-1973), segundo Lívia, entendeu o "jeitinho" como uma fórmula de adaptação ao inesperado, que nos distinguiria. Isto é, definiu o "jeito" como "uma maneira de ser peculiarmente brasileira, fruto de condições históricas particulares que permitiram a criação desse tipo de filosofia de vida". As causas e origens desse comportamento se perderiam no tempo, radicando, inclusive, na educação humanística dos jesuítas, "de base generalista e, portanto, pouco capaz de resolver problemas definidos". Percebe-se o "jeitinho" como um mecanismo de navegação social. É resposta criativa a uma circunstância de emergência. O "jeitinho" ensejaria uma certa "situacionalidade ética", na amplidão do que esse conceito tão vago possa significar.

De acordo com Lívia Barbosa o "jeitinho" se relaciona com outras expressões muito próprias de nossa língua: "colher-de-chá", "quebrar o galho", "jogo de cintura", "ginga", "boa vontade". Há graduações maliciosas. Menos do que o "jeito", tem-se um favor. Mais do que o "jeito", tem-se a corrupção. O "jeitinho" sugere também relações de dependência e de troca de ações. Nesse último quadro Lívia insere expressões como "cuspir no prato que comeu", "uma mão lava a outra", "só não há remédio para a morte".

O "jeitinho" trabalha com um conjunto de categorias emocionais. Opera com apelos sentimentais. Quem o invoca pretende transformar um problema privado em categoria de interesse público. A ansiedade que ocorre na formação de uma fila, por exemplo, pode ilustrar as várias estratégias do interessado em burlar regra geral, que é a ordem de chegada. Lívia explicita e tipifica os protagonistas do "jeitinho".

Considera que o "jeitinho" sugere uma certa ambiguidade. Transita entre favor considerado honesto e corrupção negativamente avaliada. Apresenta-se como procedimento social que indica criatividade e improvisação. Ocupa espaços pessoais e domínios impessoais. Centra-se no indivíduo. Não é ação social planejada. Segundo a autora aqui estudada, o "jeitinho" surge e é operacionalizado a partir de uma dada situação concreta. Presta-se para resolver um entrave.

No ideário brasileiro o "jeitinho" ajusta-se a estereótipos. É o caso das dissemelhanças entre o Rio de Janeiro (e o carioca) e São Paulo (e o paulistano). Antonio Candido explorou com sagacidade essas pretensas diferenças ao comentar a trajetória de Sérgio Buarque de Holanda, que viveu entre as essas duas cidades, com exceção do interregno do tempo que passou em Berlim e mais tarde em Roma. O "jeitinho", nessa leitura, estaria mais próximo (sempre metaforicamente, bem entendido) ao modo de ser carioca. O "jeitinho" seria ajustado ao clichê da calça branca e da camisa listrada. E como na música, ao invés de tomar chá-com-torrada, tomava "parati".

O "jeitinho" também se cola em imagens estereotipadas de nós brasileiros, que não sei se ainda fazem sentido. É a imagem de um povo alegre e brincalhão, boa-vida, emocional carinhoso, afetivo, inteligente, tropical, extrovertido e emocional. É o lado bom do tipo cordial da tradição de "Raízes do Brasil". Uma apreciação positiva do "jeitinho", prossegue Lívia, exaltaria nossa criatividade. Um juízo negativo revelaria descrença no País, que simplesmente "não teria jeito". Uma avaliação erudita revelaria um brasileiro bancando americano perplexo em relação a nosso modo de ser. Que país é esse? Retoma-se jargão de música conservadora fantasiada de hino de protesto, ao que eu acrescentaria a reação de Charles de Gaulle chegando ao Brasil em tempo de festa e questionando se éramos um país sério. Será que isso ocorreu mesmo, ou será que se trata de mais um golpe em nossa autoestima? Nelson Rodrigues especulou em torno de um "complexo de vira-latas", ainda que a origem da expressão decorra de uma infeliz jornada do futebol. Perdemos para o Uruguai, em pleno Maracanã, na decisão da Copa de 1950. O escritor reacionário (Nelson) radicou aí nosso senso de inferioridade.

Lívia comparou o "jeitinho" com a lógica do "você sabe com quem está falando?". Nesta última, usa-se a autoridade e o poder. No "jeitinho" o agente vale-se de barganha e da argumentação. No "você sabe com quem está falando?" o pressuposto é a desigualdade como um valor inerente às relações sociais. Nesse caso, entende-se que não haveria acesso aos bens sociais para todas as pessoas, em todas as situações. Ainda, haveria uma justificável aspiração de eficiência, um caminho desconhecido pela maioria da sociedade; é um mundo de iniciados.

No "jeitinho", por outro lado, o pressuposto é a igualdade, sua utilização é comum e acessível a todos, depende tão só de atributos de personalidade, transita anonimamente (não há apelo a hierarquias); seu conhecimento é compartilhado por toda a sociedade. O "jeitinho", creio, é fruto de uma igualdade apenas formal. O "você sabe com quem está falando?" predica na desigualdade real.

Lívia Barbosa compara muito nossa cultura com a cultura anglo-saxã, a exemplo do que fez Vianna Moog em "Bandeirantes e Pioneiros". Não força uma alegoria que nos diminui, como se lê e se ouve com frequência, em outros autores e nas pérolas do lugar-comum. Lívia é realista, há alguns pontos indiscutíveis de culturas distintas, o que não nos diminui, e nem aumenta os norte-americanos. Jesse Souza criticaria essas comparações, justamente porque pensadas para restringir nossas capacidades.

Na imagem de Sergio Milliet, somos todos um pouco lama e um pouco cristal. Isto é, somos condicionados e limitados por nossa educação e pelos costumes que vivemos. Não conseguimos nos libertar totalmente dos preconceitos que carregamos, porque somos intrínsecos a esse condicionamento. Parece que tudo conspira contra a compreensão de nós mesmos. A herança do "jeitinho" é um grande enigma. É também um elo perdido de um tempo civilizatório que talvez nunca vivemos. O livro de Lívia Barbosa enfrenta essa charada, mas não restaura o elo que se foi. Essa tarefa é nossa.

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