Opinião

A concepção de veículo 'zero quilômetro' para fins de licitação

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16 de outubro de 2020, 16h17

Vemos em licitações conflitos entre concessionárias de fabricantes ou montadoras e revendedoras multimarcas acerca do que é veículo "zero quilômetro".

Em muitos certames, o poder público busca adquirir veículos para o atendimento de suas necessidades, iniciando pregões de que participam concessionárias, que representam apenas uma marca, e revendedoras, que trabalham com várias. Onde, almejando a Administração Pública a aquisição de veículos "zero quilômetro", concessionárias invocam o artigo 12 da Lei nº 6.729/1979, conhecida como "Lei Ferrari", para afastar revendedoras não autorizadas da disputa.

Pois esse dispositivo prevê no caput que "o concessionário só poderá realizar a venda de veículos automotores novos diretamente a consumidor, vedada a comercialização para fins de revenda", norma que, afirmam alguns, suprimiria a qualidade de "zero quilômetro" dos veículos que revendedoras compram e, subsequentemente, transferem à administração licitante. Ou seja, concessionárias alegam que, em tal caso, estaríamos diante da violação daquele artigo e que a administração não seria a primeira proprietária dos veículos fornecidos por revendedoras.

Mas revendedoras sustentam que veículo "zero quilômetro" é o não usado, havendo amparo a essa posição na lei, na jurisprudência e na doutrina.

Afinal, aceitar somente concessionárias nos pregões através da diminuição do campo de alcance do conceito de veículo "zero quilômetro" pregada por elas é ofender o desenvolvimento nacional sustentável, protegido pelo artigo 3º, II, da Constituição Federal [1], os princípios da isonomia e da impessoalidade, estabelecidos no caput do artigo 3º da Lei nº 8.666/1993 [2], e a livre concorrência, princípio da ordem econômica encontrado no artigo 170, IV, igualmente da CF [3].

O desembargador-relator José Maria Câmara Junior, da 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, citando Celso Antonio Bandeira de Mello e Adilson Abreu Dallari, asseverou no seu voto quando do julgamento da Apelação nº 1010193-81.2018.8.26.0566:

"Nesse sentido, não é possível interpretar as normas da licitação como regras que sujeitam os licitantes a verdadeira gincana. Há que se tem sempre em mente que as normas não devem impedir a administração de alcançar, pela licitação, sua tripla finalidade, que é 'proporcionar às entidades governamentais possibilidades de realizarem o negócio mais vantajoso (pois a instauração de competição entre os ofertantes preordena-se a isto), assegurar aos administrados ensejo de disputarem a participação nos negócios que as pessoas governamentais pretendam realizar com os particulares e concorrer para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável(Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 29ª ed., São Paulo: Malheiros, 2012, p. 534).
Este, inclusive, o dever legal imposto ao Estado, a teor do que dispõe o artigo 3º da Lei Federal nº 8.666/93:
Artigo 3º — A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos'.
Daí porque é imperativo compreender que as normas que determinam a vinculação da Administração ao instrumento convocatório devem ser lidas como ferramentas postas à disposição do Estado para agir com objetividade e impessoalidade, mas jamais devem consagrar a forma em detrimento da finalidade. Em outras palavras, 'não deve haver nos trabalhos nenhum rigorismo e na primeira fase da habilitação deve ser de absoluta singeleza o procedimento licitatório' (Adilson Dallari, RDP 14/240, TJRS AgPet 11.336).

Assim, a vinculação às regras do edital, estabelecida pelo artigo 41 da Lei de Licitações, deve ser interpretada à luz daquela regra geral, contida no já referido artigo 3º do mesmo diploma" (destaques feitos pelo autor).

O mesmo tribunal ainda consignou:

"Mandado de Segurança. Pregão. Aquisição de veículo zero quilômetro. Menor preço ofertado por vendedora de automóveis multimarcas. Concessionária insurgindo-se, pois só ela em condições legais para venda de veículo zero quilômetro. Dúvidas trazidas na inicial sobre a certeza de seu direito. Zero quilômetro significa: carro novo, ainda não usado. Segurança denegada Recurso não provido"(TJSP; Apelação Cível 0002547-12.2010.8.26.0180; Relator (a): Francisco Vicente Rossi; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Público; Foro de Espírito Santo do Pinhal — 2ª. Vara Judicial; Data do Julgamento: 26/03/2012; Data de Registro: 29/03/2012) (destaques feitos pelo autor).

Então, a restrição que concessionárias exaltam destoa dos princípios de Direito público acima mencionados e de outros, a exemplo dos que apontam o julgamento objetivo e a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, também vistos no artigo 3º, caput, da Lei nº 8.666/1993.

O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, no acórdão proferido no Processo TC-011589/989/17-7, mostrou-se contrário à restrição:

"1.2. A representante insurge-se contra o teor do item '3.1' do instrumento convocatório, que dispõe que poderão participar da licitação empresas brasileiras ou empresas estrangeiras em funcionamento no Brasil, pertencentes ao ramo do objeto licitado, que atenda à Lei 6.729/79 (Lei Ferrari) (destaques do autor).
Aduz que a administração estaria restringindo a participação no certame apenas às concessionárias de veículos através desta menção à Lei nº 6.729, de 28 de novembro de 1979, a qual dispõe exatamente sobre a concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículos automotores de via terrestre.
Conclui, desta feita, que a administração, ao fixar uma reserva de mercado ao concessionário, prejudica a livre concorrência e desatende ao artigo 3º, §1º, I da Lei 8.666/93 e a Lei Complementar nº 123/06 e suas alterações, além dos princípios da legalidade, isonomia e da impessoalidade.
1.3. Nestes termos, requereu a representante fosse concedida a liminar de suspensão do procedimento licitatório, e, ao final, o acolhimento das impugnações, com a determinação de retificação do ato convocatório.
1.4. As críticas levadas a efeito pela insurgente quanto à pretensão da municipalidade em adquirir o objeto apenas de concessionárias de veículos forneceu indícios de inobservância do preceito do artigo 3º, §1º, inciso I da Lei 8.666/93.
(…)
A crítica incide sobre o teor do item '3.1' do instrumento convocatório, que dispõe que 'poderão participar da licitação, empresas brasileiras ou empresas estrangeiras em funcionamento no Brasil, pertencentes ao ramo do objeto licitado, que atenda a Lei 6.729/79 (Lei Ferrari)'. A insurgência em questão articula que a administração estaria restringindo a participação no certame apenas às concessionárias de veículos através desta menção à Lei nº 6.729, de 28 de novembro de 1979.
O silêncio da municipalidade, aliás, impede uma melhor reflexão acerca das genuínas razões pelas quais foi incluído, como condição para a participação de um certame que se destina à aquisição de um veículo, o atendimento à Lei 6.729, de 28 de novembro de 1979, a qual dispõe sobre a concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículos automotores de via terrestre.
Aliás, em meio às práticas usuais adotadas pela Administração Pública para a compra de veículos automotores, a menção a dispositivos da Lei 6.729/79, entre as condições gerais de participação em licitações, inspira postura praticamente inédita.
Neste passo, considerando a possível e temerária pretensão de se restringir a participação no certame apenas às concessionárias de veículos, é de rigor que se determine a retificação do edital, a fim de que seja ampliado o espectro de fornecedores em potencial, elevando-se as perspectivas para a obtenção da proposta mais vantajosa ao interesse público, através de uma disputa de preços mais ampla.
Não há na Lei 6.729/79 qualquer dispositivo que autorize, nas licitações, a delimitação do universo de eventuais fornecedores às concessionárias de veículos. E, ainda que houvesse, certamente não teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988.
A preferência em se comprar veículos exclusivamente de concessionárias, com desprezo às demais entidades empresariais que comercializam os mesmos produtos de forma idônea, é medida que não se harmoniza com o princípio da isonomia e as diretrizes do inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal, além de também contrariar o comando do artigo 3º, §1º, inciso I da Lei 8.666/93.
Portanto, a cláusula '3.1' deverá ser retificada para que seja excluída a inscrição 'que atenda a Lei 6.729/79 (Lei Ferrari)' ou aprimorada sua redação a fim de que seja admitida a participação de quaisquer empresas que regularmente comercializem o veículo automotor que a Administração pretende adquirir.
(…)
2.4. Ante todo o exposto e por tudo o mais consignado nos autos, voto pela procedência da representação e dos questionamentos adicionados por este relator no bojo do despacho que deferiu a medida liminar de suspensão do certame e determino à Prefeitura Municipal de Avaré que, caso deseje prosseguir com o certame, reformule o edital, de forma a: 1) excluir da cláusula '3.1' a inscrição 'que atenda a Lei 6.729/79 (Lei Ferrari)' ou aprimorar sua redação a fim de que seja admitida a participação de quaisquer empresas que regularmente comercializem o veículo automotor que a administração pretende adquirir(…)".

Logo, editais que se apoiam na Lei Ferrari para admitir o fornecimento de veículos só por concessionárias atraem o questionamento da constitucionalidade desse diploma e infringem o princípio da competitividade, aludido no artigo 3º, §1º, I, da Lei nº 8.666/1993 [4].

Quanto maior o número de licitantes, maior é a probabilidade de as propostas contemplarem preços mais vantajosos para a Administração Pública, raciocínio que contribui para não coibirmos a participação de revendedoras nos procedimentos licitatórios.

Portanto, é lícita a participação de revendedoras nas licitações, devendo os editais não conterem regras em sentido diverso.

 


[1] "Artigo 3º — Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…)
II – garantir o desenvolvimento nacional;".

[2] "Artigo 3º — A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos".

[3] "Artigo 170 — A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…)
IV – livre concorrência".

[4] "Artigo 3º — (…)
§1oÉ vedado aos agentes públicos:
I. admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5oa 12 deste artigo e no artigo 3o da Lei no 8.248, de 23 de outubro de 1991".

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