Opinião

O Supremo Tribunal Federal e seu Galahad

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13 de outubro de 2020, 10h35

Neste momento de despedida de uma das estadas mais longevas do Supremo Tribunal Federal, o sentimento é de perda. Perda de um ilustre franciscano que valorizou a casa maior da Justiça. Perda do promotor que, alçado à magistratura, honrou-a por mais de três décadas. Perda do historiador do STF. Perda, enfim, de um dos mais valorosos juízes daquela corte, algo como um Galahad a ser destacado.

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Segundo as lendas arturianas, Galahad, filho de Lancelot, além de piedosos, era o mais puro dos cavaleiros, e merecedor das maiores honras. Outros ainda terminam sua missão, dizem os contos, mas apenas ele é capaz de alcançar seu propósito final. Em leituras contemporâneas dos fins do século XIX, menciona-se que a ele era destinada a chamada cadeira perigosa (siege perilous), onde unicamente poderia se sentar o mais nobre e hábil dos cavaleiros. A figura ajusta-se, pois, a José Celso de Mello Filho. Corajoso, hábil, de labor incansável, e, de significativa importância, acima de tudo, sempre na busca do justo.

Oriundo de Tatuí, São Paulo, formou-se na turma de 1969 da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, desde logo seus predicados mostraram-se conhecidos. Detalhista e minucioso, rapidamente ingressou no Ministério Público bandeirante. Convocado à Consultoria-Geral da República, como secretário-geral e, depois, como consultor-geral interino, mostrou junto ao governo central seus múltiplos dotes, sendo, em 1989, nomeado ao STF.

Seus votos, com filigranas próprias, são exemplo de dedicação. Seu labor sem fim pode, a seu tempo, eventualmente fustigar alguns de seus assessores, pois estes incansavelmente acompanham o trabalho noite adentro do ministro, mas, por outro lado, dão segurança de olhar detido sobre a busca da Justiça. Em 1997 foi eleito para seu respectivo biênio como presidente do Pretório Excelso, cargo que igualmente tão bem representou.

Celso de Mello representa, ainda hoje, a figura de dois tribunais. Embora tenha sido nomeado em momento posterior à Constituição de 1988, ainda conviveu com o Supremo Tribunal em metamorfose à sua atual feição. Viveu o momento clássico e o de consagração dos direitos postos pelo novo Texto Maior. Foi elo motriz, portanto, de um novo desenho da leitura constitucional.

Sem dúvida, foi um dos responsáveis pelo papel de protagonista assumido pela corte, em especial no que diz respeito à defesa dos direitos fundamentais. Foi um dos defensores da vinda de mulheres ao tribunal, anos antes que isso fosse efetivado, com a nomeação da ministra Ellen Gracie. Sua sensibilidade, enfim, antecedeu, muitas vezes, a jurisprudência ou as leis.

Seu pensamento sempre foi de coerência destacada, como evidencia a publicação do STF, de 2014, intitulada "Ministro Celso de Mello 25 anos no STF". Lá se verifica que, nos anos 1990, já expunha ele problemas do sistema repressivo, em especial do usuário de drogas; bem como em avaliação sobre aborto legal em caso de anencefalia. Inovou a percepção sobre a união estável homoafetiva, consubstanciada, em 2011, com o julgamento da ADPF 132/RJ. Sempre expôs suas posições sobre noções de infidelidade partidária, liberdade de expressão ou a necessidade de participação do advogado em tantos feitos. Isso para não se falar de tantas outras posições de extremada importância.

Talvez um dos momentos recentes mais complexos tenha se dado quando de seu voto na ADO 216, de 22/2/2019, em relação à ação por omissão que pede a criminalização da LGBTfobia. De forma substanciosa, em 155 laudas, declarou a mora institucional do Congresso Nacional nessa criminalização e, assim, defendeu a interpretação conforme a Constituição enquanto não se der legislação específica —, que equipara a conduta ao racismo. Muito embora possam existir  e existem inúmeras objeções ao papel assumido pelo tribunal, inegável sua coragem e coerência ao que sempre defendeu, desde a década de 1990. Nisso, se faz lembrar a importância posta à própria dogmática jurídica, qual seja, espelhar-se como fonte de segurança jurídica do porvir. Concorde-se com esse voto do ministro Celso de Mello, ou não, mostra ele coerência com seu pensar.

Inúmeras histórias podem ser ditas e repetidas, enfim, sobre ele. Avesso a atuações fora da corte, o Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) outorgou-lhe, em 2016, seu maior prêmio, a medalha Barão de Ramalho. Tenho, aliás, em viva lembrança visita que fiz a seu gabinete, na qualidade de presidente do IASP, juntamente com o letrado diretor institucional Edgard Silveira Bueno. Tantas foram as colocações, de lado a lado, que as horas se passaram como se fossem minutos, sempre tendo como destaque maior o respeito posto pela academia e à advocacia.

Nas lendas, somente Galahd, enfim, foi, por seus méritos pessoais, capaz de encontrar o Graal. O mesmo de se dizer de Celso de Mello. E o teve na noção da Justiça e serenidade, invulgares e que só os justos podem empunhar. Certamente ingressou nos anais da história como um dos valorosos membros do maior dos tribunais nacionais. Ele o fez com o merecimento que o tempo sedimentou, e com os aplausos da comunidade jurídica. Críticas podem existir, aqui ou acolá, e, por certo lhe foram feitas muitas. Mas é de se dizer que seus méritos a tudo parecem superar. Espera-se que ainda venha a dar luzes ao mundo do Direito, enriquecendo, ainda mais, o debate a construção jurídica nacional, agora como integrante da advocacia, que o recebe em glória, como também o faz o Iasp e o seu galardão, a que sempre fará justiça.

A renovação da Justiça, por certo, é sempre necessária. Mas o decano fará falta. Aos que tiveram a honra de poder vê-lo no exercício da judicatura, a felicidade. Aos seus jurisdicionados, a certeza da busca do justo. E, ao futuro, apenas de augurar que se eternizem as palavras de Celso de Mello quando de sua posse na presidência do STF, em 22.5.1997: "Nunca é demasiado relembrar que, sem juízes independentes, não há sociedades livres".

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