Opinião

A Lei Complementar nº 175/2020 e o novo passo rumo à desestruturação do ISS

Autores

  • Paulo Ayres Barreto

    é advogado professor associado ao Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da USP livre-docente em Direito Tributário pela USP doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP.

  • Caio Augusto Takano

    é advogado professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutor e mestre em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).

7 de outubro de 2020, 20h55

Com a promulgação da Lei Complementar nº 175/2020, inicia-se um novo capítulo no tormentoso debate sobre a possibilidade de se alterar, por intermédio de lei complementar, o aspecto espacial da norma de incidência do Imposto sobre Serviços (ISS).

Sob o pretexto normativo de dispor sobre o "padrão nacional" de deveres instrumentais do ISS, mas com o assumido intuito de "fazer cessar a suspensão liminar da eficácia da Lei Complementar nº 157/2016 e de prevenir eventual declaração de inconstitucionalidade por arrastamento" [1], a Lei Complementar nº 175/2020 buscou regulamentar e reafirmar o deslocamento da competência tributária para exigir o ISS aos municípios em que estiver situado o domicílio do tomador, para os serviços de: 1) plano de saúde (subitens 4.22 e 4.23); 2) planos veterinários (subitem 5.09); 3) administração de cartões de crédito e débito, fundos e congêneres (subitem 15.01); e 4) o "serviço" de arrendamento mercantil (subitem 15.09). Nesse ponto, repete a Lei Complementar nº 157/2016, retirando de seu escopo, apenas, as atividades de agenciamento, corretagem ou intermediação de contratos de arrendamento mercantil (leasing), de franquia (franchising) e de faturização (factoring) (subitem 10.04).

Ocorre, entretanto, que a Lei Complementar nº 175/2020 se propõe, em verdade, a reafirmar parcialmente uma alteração legislativa, cuja constitucionalidade é objeto de análise na ADI nº 5.835 pelo Supremo Tribunal Federal. Partindo do pressuposto de que as regras instituídas pela Lei Complementar nº 156/2016 são constitucionais, a novel legislação não apenas prevê um sistema nacional de deveres instrumentais para operacionalizar a pretensa modificação do aspecto espacial do ISS para os serviços mencionados, como também veicula uma regra de transição para a partilha do produto da arrecadação do ISS entre o município do local do estabelecimento prestador e o município do domicílio do tomado — matéria que não compete à lei complementar, mas à própria Constituição Federal, a exemplo do que se encontra em seus artigos 157 a 159 ou do que previu a Emenda Constitucional nº 87/2015, no que tange ao ICMS em operações interestaduais destinadas ao consumidor final.

Atitude que, à toda evidência, merece críticas, pois fere o princípio da moralidade e da separação dos poderes, consubstanciando-se em verdadeira deslealdade do Poder Legislativo a reafirmação, em nova legislação, de regras de condutas previamente existentes e que estão com eficácia suspensa por ordem do Poder Judiciário, com o assumido intuito de que a medida judicial perca o seu objeto.

Ademais, incorre a Lei Complementar nº 175/2020 nos mesmos vícios que a Lei Complementar nº 157/2016, tais como: 1) inadequação à norma de competência constitucional veiculada no artigo 156, inciso III da Constituição Federal; 2) desproporcionalidade do ônus que cabe aos contribuintes para se conformar à alteração legislativa; e 3) potenciais inobservâncias de princípios e garantias constitucionais dos contribuintes pelos municípios.

Em relação ao primeiro aspecto, conquanto caiba à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária sobre os fatos geradores dos impostos discriminados na Constituição, não poderá o legislador nacional, nesse mister, desobedecer às diretrizes impostas no próprio texto constitucional. A competência de lei complementar para dirimir conflitos de competência não abrange a faculdade de livremente alocar a percussão tributária, em prejuízo de elementos sistemáticos e lógicos do sistema constitucional em vigor [2]. É que a Constituição circunscreveu a exigência do ISS em conformidade com uma regra de competência conceitual, que limita o espaço de atuação do legislador municipal às efetivas prestações de serviço [3]. Não há competência tributária para o município em que se situa o tomador, ausente autorização constitucional para a incidência do ISS sobre o mero "tomar um serviço".

A afirmação constante no parecer do Senado Federal, no sentido de que a modificação no aspecto espacial do ISS por lei complementar não afronta as regras de discriminações de competência plasmadas no altiplano constitucional porque "busca garantir a eficácia do princípio federativo e porque decorre de comando  implícito na própria Constituição e reconhecido pelo STF", trata de um verdadeiro sofisma. A opção do legislador constituinte por um sistema fechado, baseado em regras para a discriminação das competências tributárias, afasta a tributação fundada exclusivamente em dicções principiológicas, o que deixaria parcialmente aberto o caminho para que o Estado pudesse tributar quaisquer fatos que, a seu modo de ver, seriam condizentes com a promoção dos ideais constitucionais [4]. Assim, construções hermenêuticas abertas e vagas sobre o conteúdo normativo do princípio federativo e do princípio do destino, por mais relevantes que sejam, não têm o condão de afastar a aplicação de regras constitucionais postas.

Pelo contrário, reconhecer a validade da pretensa extensão do aspecto espacial do ISS implica admitir uma extraterritorialidade da lei instituidora do tributo, o que não se mostra compatível com o nosso ordenamento jurídico, que, nas hipóteses em que autoriza uma eficácia extraterritorial das normas dos entes tributantes, o faz por intermédio por enunciados prescritivos inseridos no bojo do texto constitucional, a exemplo do que ocorre no Imposto sobre a Renda. Consentir com a livre interferência de ordens jurídicas municipais, permitindo que as municipalidades tributem fatos jurídicos ocorridos para além de seus territórios, significa permitir a violação da autonomia municipal e da igualdade horizontal dos municípios, aspectos fundamentais para o equilíbrio da federação brasileira.

Igualmente merece críticas a proposta para se criar um sistema eletrônico de padrão unificado para o cumprimento dos deveres instrumentais tributários necessários para apuração e declaração do ISS devido aos municípios dos tomadores de serviços.

Ainda que tenha havido uma evolução no tema em relação à disciplina normativa da Lei Complementar nº 157/2016, exigindo-se, na legislação novel, que a efetiva implementação dos deveres instrumentais seja em nível nacional e a partir de um leiaute único a ser definido pelo Comitê Gestor das Obrigações Acessórias do ISSQN (CGOA), o modelo proposto ainda não passa pelo controle de constitucionalidade do eventual excesso dos custos de conformidade e das restrições às liberdades econômicas deles decorrentes.

Com efeito, o artigo 2º, §1º, da Lei Complementar nº 175/2020 prevê que o referido sistema eletrônico de padrão unificado "será desenvolvido pelo contribuinte, individualmente ou em conjunto com outros contribuintes sujeitos às disposições desta lei complementar". Dito de outro modo, há plena transferência dos custos para a criação, gestão e adequado funcionamento deste sistema eletrônico para cumprimento da legislação, dentro da lógica do fenômeno da "privatização da gestão tributária" a que se refere Ferreiro Lapatza [5].

Essa opção legislativa inequivocamente conduzirá a um aumento nos chamados "custos de conformidade", caracterizados por sua tendência à regressividade e à desigualdade horizontal, geradora de distorções concorrenciais, restrições à livre iniciativa e à neutralidade da tributação (artigo 170 da CF/88 [6]). Tome-se, por exemplo, o universo de administradoras de cartão de crédito ou débito, normalmente associado a grandes instituições financeiras. Mesmo nesse setor, há prestadores de serviços de diferentes portes e realidades econômicas, no qual os menores sentirão com muito mais intensidade (em relação a sua receita) os custos para a criação ou implementação do sistema unificado, treinamento de seus colaboradores para um adequado compliance fiscal, contratação de consultorias etc. Além de custos de oportunidade, no que se refere ao tempo e dinheiro gastos e que poderiam ser revertidos para o exercício da própria atividade empresarial, recursos que são especialmente caros a empresas de menor porte econômico.

Fica evidente a transferência do ônus de fiscalização ao particular na regra inserida no artigo 15, §2º, da Lei Complementar nº 175/2020, que prevê a atribuição pelo município do domicílio do tomador do serviço às instituições financeiras arrecadadoras a obrigação de reter e de transferir ao município do estabelecimento prestador do serviço os valores correspondentes à respectiva participação no produto da arrecadação do ISS, nos casos de ausência de convênio, ajuste ou protocolo firmado entre os municípios interessados e caiba ao domicílio do tomador do serviço transferir ao município do local do estabelecimento prestador a parcela do imposto que lhe cabe na repartição de receitas prevista na lei complementar.

Assim, em que pese os evidentes esforços para a regulamentação e concepção de um sistema unificado para o cumprimento de deveres instrumentais, a solução veiculada pela Lei Complementar nº 175/2020 ainda se mostra longe do ideal, implicando desproporcional e substancial ônus econômico para os contribuintes que, rigorosamente, incumbiria às administrações tributárias dos municípios.

No que se refere a potenciais inobservâncias de princípios e garantias constitucionais dos contribuintes pelos municípios, é forçoso reconhecer que as modificações em questão devem ser analisadas do prisma das condicionantes constitucionais para sua eficácia, em especial das normas fundamentais da legalidade e da anterioridade. Nesse ponto, embora tenha havido avanços em relação à legislação anterior, ainda há ponto preocupantes.

A necessária observância ao princípio da anterioridade foi expressamente reconhecida no artigo 4º, §2º, da Lei Complementar nº 175/2020, que dispõe que quaisquer alterações de informações fornecidas pelos municípios diretamente no sistema eletrônico do contribuinte, que se refere à base de cálculo e à alíquota, "somente produzirão efeitos no período de competência mensal seguinte ao de sua inserção no sistema, observado o disposto no artigo 150, inciso III, alíneas 'b' e 'c', da Constituição Federal". Assim, depreende-se do comando legal que uma atualização de informações no sistema unificado quanto aos aspectos quantitativos da norma de incidência do ISS somente terá efeito desde que cumpridos, cumulativamente, dois requisitos: 1) a lei que alterou a base de cálculo ou alíquota do ISS está em plena aderência com o princípio da anterioridade; e 2) a atualização das informações afetam apenas períodos de apurações futuros.

No entanto, no que tange à obediência ao princípio da legalidade, a redação legal causa preocupação, ao ter como objeto "alterações de informações inseridas no sistema". A norma constitucional da legalidade, inscrita no artigo 150, I da CF/88, exige que todos os elementos da regra-matriz de incidência estejam previstos em lei em sentido estrito. Se assim é, qualquer "alteração de informação no sistema" deve ser necessariamente precedida de adequada modificação normativa veiculada por lei ordinária. Não apenas isso, caso venha a ser considerada constitucional a modificação do aspecto espacial do ISS pela Lei Complementar nº 156/2016, é imprescindível, ainda, que cada município edite uma nova lei ordinária, para se conformar a nova permissão constitucional e em lei complementar, não sendo suficiente, apenas "informar no sistema unificado", nos termos do artigo 4º da Lei Complementar nº 175/2020: 1) as alíquotas aplicáveis, conforme o período de vigência; 2) os arquivos da legislação vigente que versem sobre os serviços abrangidos pela alteração do aspecto espacial do ISS; e 3) os dados do domicílio bancário para recebimento do ISSQN.

Em síntese, dúvidas não há de que o sistema tributário brasileiro é complexo e que reformas que busquem promover maior simplicidade e justiça tributária são bem-vindas. Evidentemente, desde que se respeitem os limites positivados no ordenamento jurídico, em especial as balizas plasmadas no altiplano constitucional, como as rígidas regras de discriminação de competências tributárias e a harmonia entre os entes tributantes, pressuposto inafastável do pacto federativo. Nesse sentido, o que se verifica é que a Lei Complementar nº 175/2020 vai de encontro a esses propósitos, não se prestando a dirimir, mas a fomentar conflitos de competência. Tal como a lei complementar que lhe antecedeu, promove uma desestruturação do ISS, com potencial redução de arrecadação global e incentivo de guerra fiscal.

Aos contribuintes, resta aguardar que o Supremo Tribunal Federal se posicione quanto às complexas questões jurídicas que gravitam em torno dos comandos normativos da Lei Complementar nº 175/2020, sendo de rigor que se mantenha a suspensão da eficácia do artigo 1º da Lei Complementar nº 157/16, nos termos da medida cautelar concedida na ADI 5.835, como pressuposto inafastável para se garantir um ambiente de segurança jurídica para os prestadores dos serviços abrangidos pela alteração do aspecto espacial do ISS.

 


[2] Cf. BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na lei. 4ª Edição. Atualizado por Paulo Ayres Brreto. São Paulo: Noeses, 2018, p. 574.

[3] Cf. BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na lei. 4ª Edição. Atualizado por Paulo Ayres Brreto. São Paulo: Noeses, 2018, p. 572.

[4] Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário.  4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 163.

[5] Cf. FERREIRO LAPATZA, José Juan. La privatización de la gestión tributaria y las nuevas competencias de los Tribunales Económico-Administrativos. Revista Española de Derecho Financiero, n. 37. Madrid: Civitas, 1983, pp. 81-94.

[6] Cf. TAKANO, Caio Augusto. Deveres instrumentais dos contribuintes. São Paulo: Quartier Latin, 2017, pp. 256-261.

Autores

  • é advogado, professor associado ao Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da USP, livre-docente em Direito Tributário pela USP, doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP.

  • é advogado, professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, doutor e mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP.

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