Opinião

É o fim da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública?

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24 de novembro de 2020, 13h34

"A verdadeira sanção das leis políticas se encontra, pois, nas leis penais, e, se falta a sanção, a lei perde mais cedo ou mais tarde sua força"
 (Alexis de Tocqueville) [1]

No processo penal romano acusatório, a acusação era uma tarefa difusa, exercitável por qualquer do povo. Esse sistema trazia os seguintes perigos, listados por Hélio Tornaghi: "impunidade de criminosos; facilitação da acusação falsa; desamparo dos fracos; deturpação da verdade; impossibilidade de julgamento, em muitos casos; inexequibilidade da sentença, em outros" [2]. A ação penal era popular e trazia esses inconvenientes. A gradativa evolução do processo penal exigiu que as acusações, para não deixarem de serem feitas em alguns casos, ou feitas com excesso em outros, fossem atribuídas a um órgão específico e bem estruturado para tão importante mister: eis o Ministério Público. Segundo Galdino Siqueira, "antes do século XIV, o direito de acusação era privado e pertencia aos particulares. É a partir daquele século que semelhante direito se tornou predicado de um corpo de funcionários que, segundo uma expressão consagrada e característica, exercem um Ministério Público" [3]. A seriedade da acusação criminal, seja para que os crimes não permaneçam impunes, seja para que não se acuse levianamente, impõe, assim, a existência do Parquet, cuja importância na nossa realidade é indiscutível.

A Constituição Federal de 88 atribuiu, então, com exclusividade, o exercício da ação penal pública ao Ministério Público, no seu artigo 129, I. No entanto, o monopólio da ação penal pública conferida ao Parquet pode levar, e de fato leva, muitas pessoas a confundir coisas essencialmente distintas: acusação, pretensão e imputação. Não se trata de algo tertúlico, sem interesse prático. Pelo contrário, essas distinções revelam a verdadeira essência dos princípios da ação penal pública e do direito de punir. Carnelutti, com a genialidade e precisão que lhe eram peculiares, descreveu o fenômeno:

"Quem formula a imputação penal? À primeira vista, a resposta a esta pergunta parece que deva ser: quem a propõe. Quem respondesse, também à primeira vista: o Ministério Público, correria o risco de confundir a imputação, e até a própria pretensão, com a acusação (…). Diferença que se aguça até o ponto de que, ao passo que falar de uma pretensão penal anônima não seria um contrassenso, a pretensão civil é sempre estritamente nominal: se a opinião pública permanece assim indiferente ante um letra de câmbio que não foi paga, comove-se por outro tão vivamente quanto a um homem assassinado que amiúde reclama vivamente a descoberta e punição do assassino. Eis aqui por que, se temos em vista a distinção entre acusação e pretensão, a resposta fácil de que a pretensão é proposta pelo Ministério Público não nos satisfaz; o que o Ministério Público faz é recolher uma pretensão que existe no ar, poder-se-ia dizer, ou seja, que serpenteia na sociedade quando aparece a notícia de um delito" [4].

Quando Carnelutti disse que a pretensão penal é anônima, quis ele dizer que ela é da sociedade inteira, um interesse difuso, por assim dizer, em ver os delitos punidos exemplarmente. A pretensão civil de ressarcimento ou de restituição, por outro lado, ele diz que é nominal, eis que tem um interessado específico, o ofendido, que pode abrir mão dessa pretensão. E pode abrir mão dela pois a pretensão civil lhe pertence e lhe é disponível, ao passo que a pretensão de punir permanece viva ainda que haja essa disposição do ressarcimento civil pelo ofendido. Ocorrido um furto ou um roubo, o Ministério Público deve agir ainda que chegue ao seu conhecimento o desinteresse do ofendido pelo objeto furtado ou roubado, pois este desinteresse do ofendido pela res furtiva não afasta a necessidade social de se punir o ilícito penal praticado, danoso por si independentemente do ressarcimento civil operado. Da mesma forma, se um membro do Ministério Público, agora como cidadão, for credor de uma nota promissória no valor de R$ 20 mil, tem ele plena disponibilidade sobre esse seu crédito, disponibilidade que lhe permite rasgar o título, remitir a dívida, dispor da execução já ajuizada, ceder o crédito, enfim, dispor do direito da forma que lhe melhor aprouver, pois o direito que ele deduz em juízo, no caso, é dele. Por outro lado, quando esse mesmo promotor, agora na condição de representante do Parquet, atua no juízo penal, a res in judicio deducta já não é um crédito particular seu ou um outro direito que integra seu exclusivo patrimônio, mas uma pretensão punitiva indisponível cuja expectativa de aplicação é de toda a sociedade.

O que a Constituição faz, portanto, no artigo 129, I, não é atribuir ao Ministério Público a pretensão punitiva, mas, sim, a acusação penal em juízo. Esta lhe pertence, com exclusividade, nos crimes de ação penal pública; aquela pertence à sociedade, interessada na segurança pública e na punição dos delitos. Daí nascem os dois grandes princípios norteadores da ação penal pública: obrigatoriedade e indisponibilidade. "O princípio da obrigatoriedade", ensina o mestre Tourinho Filho, "se embasa no apotegma nec delicta maneant impunita (os delitos não podem ficar impunes)" [5]. A obrigatoriedade impõe o dever de propor a ação penal, quando há elementos de autoria e materialidade. Já a indisponibilidade impede o Ministério Público de transigir ou desistir do conteúdo da ação penal já proposta, que, como dito, não lhe pertence. Daí o artigo 42 do Código de Processo Penal lhe impedir de desistir da ação penal e o artigo 576 lhe tolher a possibilidade de "desistir de recurso que haja interposto". Nesse sentido são os ensinamentos de Galdino Siqueira:

"O direito de punir com a ação respectiva pertence à sociedade que delega seu exercício somente aos funcionários do Ministério Público. Daí decorre que estes funcionários não têm a faculdade de dispor da ação publica, quer antes de intentá-la, quer depois de pô-la em movimento. (….). Assim: 1) o Ministério Público não tem o direito de transigir sobre o delito ou contravenção, nem antes, nem depois de iniciadas as diligências da instrução criminal" [6].

Se o legislador coloca determinado crime sob a alçada da iniciativa privada, por meio da ação penal privada, "reconhece o próprio Estado que, às vezes, o interesse tutelado pela lei penal tem um caráter tão assinaladamente particular, que 'podría decirse que cuando ésta no se manifesta lesionado, en realidad no existe lesión', na arguda observação de Soler" [7]. Daí sucede o princípio da oportunidade da ação penal privada: cabe ao particular lesado a avaliação de ingressar em juízo para exigir a punição do autor. Pode o particular, ainda, dispor da ação penal de pois de proposta, concedendo o perdão ao autor. Daí serem os crimes de ação penal privada regidos pelo princípio da disponibilidade. "Antagônico a tal princípio", insiste Tourinho Filho, "é o princípio da indisponibilidade, que rege a ação penal pública. Nesta, o órgão do Ministério Público dela não pode dispor, porquanto ela não lhe pertence, e sim ao Estado. Ora, o órgão do Ministério Público não pode dispor de algo que não lhe pertence. Incisivo, a respeito, o artigo 42 do CPP" [8]. Por isso que, se o legislador colocou determinado crime sob os cuidados do Ministério Público, por meio da ação penal pública incondicionada, é justamente porque o legislador entendeu que esse crime extravasa a mera lesão particular para atingir a tranquilidade social e a segurança pública, afastando, assim, os critérios de oportunidade e disponibilidade da iniciativa do ofendido, para impor uma obrigatoriedade e indisponibilidade na tutela penal daquele interesse social lesado.

Por todas essas considerações, tenho que a chamada Justiça penal negociada é inconstitucional, por ferir o verdadeiro conteúdo do artigo 129, I, da nossa Carta Política. O legislador infraconstitucional se excedeu ao permitir a livre disponibilidade da pretensão punitiva pelo parquet. "Obrigatoriedade e indesistibilidade", ensina Tornaghi, "são formas de uma só realidade jurídica: a indisponibilidade. Dispor da ação penal acarretaria a consequência de dispor da punição, o que não é dado a este órgão do Estado e sim a outros: presidente da República, em caso de indulto (…), Congresso Nacional, no caso de anistia (…), os dois juntos na hipótese de novatio legis" [9]. O novo modelo de Justiça penal consensual rompe radicalmente com esses princípios sagrados do processo penal brasileiro e permite ao Ministério Público dispor da ação penal, negociando sobre penas e até mesmo sobre o proveito ou o produto do crime [10]. Note-se que o rol de crimes em que o acordo de não persecução penal é cabível é extenso, incluindo crimes contra a Administração Pública e os crimes eleitorais: sequestro ou cárcere privado — artigo 148 do CP; apropriação indébita — artigo 168; furto simples — artigo 155, caput do CP; moeda falsa — artigo 289 do CP; associação criminosa — artigo 288 do CP; peculato — artigo 312 do CP; corrupção passiva — artigo 317 do CP; corrupção ativa — artigo 333 do CP; contrabando — artigo 334-A do CP; entre outros. Tudo isso poderá ser objeto de negociação e transação pelo Ministério Público. Como bem resumiu o insigne professor Tourinho Filho, isso implica em "atribuir-lhe um desconchavado poder de indulto" [11].

A Justiça penal negociada vem sendo recebida com excessivo entusiasmo pela comunidade jurídica, sem uma avaliação mais profunda sobre o cabimento desse modelo na nossa realidade legal e constitucional. O acordo de não persecução penal é inconstitucional e confere poderes demais aos membros do Ministério Público. E eles sabem disso. Tanto que se apressaram em instituí-lo, à revelia do legislador, por meio de resolução do CNMP [12]… Embora agora exista previsão expressa no Código de Processo Penal, isso não afasta a sua duvidosa constitucionalidade, que, como dito anteriormente, atribui poderes ao Ministério Público que ele jamais deveria ter.

 


[1] TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América, Livro I: Leis e costumes, Trad. Eduardo Brandão, Martins Fontes, 2014, p. 319.

[2] TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal, V. 3, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1959, p. 471.

[3] SIQUEIRA, Galdino. Curso de Processo Criminal, Livraria Magalhães, São Paulo, 2ª Edição, 1930, p. 44.

[4] CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, V. 4, Trad. Francisco José Galvão Bruno, Editora Bookseller, 2004, p. 19, 20. (sem grifos no original)

[5] FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal, V. 1, Editora Saraiva, 34ª Edição, 2012, p. 388.

[6] SIQUEIRA, Galdino. Curso de Processo Criminal, Livraria Magalhães, São Paulo, 2ª Edição, 1930, p. 71.

[7] FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal, V. 2, Editora Saraiva, 34ª Edição, 2012, p. 544.

[8] FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal, V. 1, Editora Saraiva, 34ª Edição, 2012, p. 523.

[9] TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal, V. 3, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1959, p. 311.

[10] Vinícius Gomes de Vasconcellos noticia que "as práticas negociais brasileiras também têm autorizado cláusulas que admitem a manutenção de bens originários das atividades ilícitas em poder do acusado ou de seus familiares. Em âmbito da operação 'lava jato', firmou-se acordo que permitiu a permanência de bens produtos/proveitos de crimes com familiares do delator, como carros blindados e imóveis, (…)" (Colaboração premiada no processo penal, Revista dos Tribunais, 3ª Edição, 2020, p. 186).

[11] FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal, V. 1, Editora Saraiva, 34ª Edição, 2012, p. 389.

[12] Resolução 181/CNPM.

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