Implementação do juiz das garantias na violência doméstica é indispensável
19 de novembro de 2020, 21h57
A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, com vigência em 23 de janeiro de 2020, introduziu no Código de Processo Penal os artigos 3º-B a 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F [1], o qual trata do juiz das garantias.
Entretanto, no dia 22 de janeiro, o ministro Luiz Fux, na condição de relator das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, suspendeu sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, a implementação do juiz das garantias, nos seguintes termos:
"No caso em tela, a análise comparada do juiz das garantias demanda a observância de outras questões, como, por exemplo: 1) a capacidade que o sistema judiciário brasileiro possui para a recepcionar o juiz de garantias (e.g. contingente processual, bem como os recursos humanos e financeiros disponíveis); 2) a proximidade e/ou vinculação institucional entre os órgãos de acusação e de julgamento nos países em análise; 3) as regulamentações das competências do juiz das garantias nos países comparados. Em verdade, torna-se também imprescindível analisar justamente as experiências comparadas que foram infrutíferas, nas quais a instituição foi implementada, porém não obteve os resultados esperados e/ou foi posteriormente extinta" [2].
Sem embargo dessa suspensão da eficácia pelo ministro Luiz Fux, é relevante citarmos que menos de uma semana antes, o ministro Dias Toffoli concedeu parcialmente medida cautelar na ADI nº 6.298/DF, mantendo a implementação do juiz das garantias e concedendo prazo de 180 dias para os tribunais se ajustarem a nova sistemática, pois considerou insuficiente o prazo de 30 dias concedido pelo Congresso Nacional [3].
Malgrado as discordâncias, é dentro desse contexto que a Lei 13.964/19, com a introdução dos artigos 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F, valida o padrão acusatório e promove uma importante mudança em direção de um processo penal democrático. Considerando a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a incorporação de vários tratados internacionais sobre direitos humanos, é cristalino que a estrutura da legislação processual penal deve se pautar no modelo acusatório. É o que se extrai do artigo 129, inciso I, da Constituição Federal e artigo 8º, nº 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos. Nesse sentido, Geraldo Prado (2005, p. 177/188), reforça:
"(…) A natureza verdadeiramente acusatória de um princípio processual constitucional demanda, para verificar-se, não só a existência de uma acusação (mesmo os procedimentos inquisitoriais podem conviver com uma acusação), mas tanto, e, principalmente, que esta acusação revele uma alternativa de solução do conflito de interesses ou caso penal oposta à alternativa deduzida no exercício do direito de defesa, ambas, entretanto, dispostas a conformar o juízo ou solução da causa penal.
Em outras palavras, ambas, acusação e defesa, surgem como propostas excludentes de sentença.
Tal conformação só admitirá a influência das atividades realizadas pela defesa, se o juiz, qualquer que seja ele, não estiver desde logo psicologicamente envolvido com uma das versões em jogo.
Por isso, a acusatoriedade real depende da imparcialidade do julgador, que não se apresenta meramente por se lhe negar, sem qualquer razão, a possibilidade de também acusar, mas, principalmente, por admitir que a sua tarefa mais importante, decidir a causa, é fruto de uma consciente e meditada opção entre duas alternativas, em relação às quais se manteve, durante todo o tempo, equidistante (…)".
Com relação à (in)existência de juiz das garantias no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher, o ministro Dias Toffoli, quando concedeu parcialmente a medida cautelar pleiteada em 15/1º/2010, conferiu interpretação conforme aos artigos 3º-B a 3º-F, elucidando que tal regramento não seria aplicável aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Nas palavras do ministro:
"Revela-se necessário, também, ressalvar os processos criminais relativos aos casos de violência doméstica e familiar. De fato, a violência doméstica é um fenômeno dinâmico, caracterizado por uma linha temporal que inicia com a comunicação da agressão. Depois dessa comunicação, sucede-se, no decorrer do tempo, ou a minoração ou o agravamento do quadro. Uma decisão rígida entre as fases de investigação e de instrução/julgamento impediria que o juiz conhecesse toda a dinâmica do contexto de agressão. Portanto, pela sua natureza, os casos de violência doméstica e familiar exigem disciplina processual penal específica, que traduza um procedimento mais dinâmico, apto a promover o pronto e efetivo amparo e proteção de violência doméstica".
Na mesma linha, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) afirmou que "a norma vai causar prejuízos à aplicação da Lei Maria da Penha" [4].
Não obstante as respeitáveis posições, evidentemente que a introdução da nova sistemática não causará prejuízo algum. A intenção de afastar a aplicação do instituto não leva em consideração que a imparcialidade do juiz da instrução e julgamento gera um ganho imenso para toda sociedade, pois confere tratamento isonômico aos acusados, independentemente da natureza do delito. Nesse sentido, o professor Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 152) explica:
"Por mais grave e repulsivo que seja toda e qualquer forma de violência doméstica e familiar contra a mulher — e isso não negamos —, não se pode admitir essa crescente e perigosa restrição a direitos e garantias fundamentais nessa seara. Se a possibilidade de atuação de um juiz das garantias na fase preliminar da persecução penal, diverso do que conduzirá o processo e julgará o caso penal, oferece um espectro maior de diminuição dos fatores de contaminação subjetiva, auxiliando na exclusão de dúvidas acerca da sua imparcialidade, e se a Lei 13.964/19 admitiu sua aplicação em relação a delitos gravíssimos, como, por exemplo, crimes hediondos e equiparados (tráfico de drogas, terrorismo e tortura), por que não aplicar essa mesma sistemática às infrações penais praticadas no contexto da Lei Maria da Penha? A pretexto de viabilizar o conhecimento 'de toda a dinâmica do contexto de agressão', nas palavras do ministro Dias Toffoli, poderíamos outorgar ao autor desses delitos, então, um juiz menos parcial? Pensamos que não".
Além disso, tais interpretações partem do raciocínio de que a Lei Maria da Penha é regulamento especial e, consequentemente, a aplicação do juiz das garantias seria inviável. No entanto, não é o que se extrai da recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), dirigida ao Brasil, destacando a importância de levarmos em consideração fatores estruturais no âmbito social e institucional:
"A CIDH enfatiza que os assassinatos de mulheres não se tratam de um problema isolado e são sintomas de um padrão de violência de gênero contra elas em todo o país, resultado de valores machistas profundamente arraigados na sociedade brasileira. Da mesma forma, a comissão alerta para o aumento dos riscos enfrentados por mulheres em situação de particular vulnerabilidade por conta de sua origem étnico-racial, sua orientação sexual, sua identidade de gênero — real ou percebida —, em situação de mobilidade humana, aquelas que vivem em situação de pobreza, as mulheres na política, periodistas e mulheres defensoras dos direitos humanos. Durante a visita in loco ao país, em novembro de 2018, a CIDH observou, em particular, a existência de interseções entre violência, racismo e machismo, refletidas no aumento generalizado de homicídios de mulheres negras. Ademais, a comissão vê com preocupação a tolerância social que perdura diante dessa forma de violência, bem como a impunidade que continua caracterizando esses graves casos. (…) A comissão urge ao Estado brasileiro a fortalecer os mecanismos de prevenção e proteção com vistas a erradicar a violência e a discriminação contra as mulheres em nível nacional, de forma coordenada e contando com recursos institucionais e financeiros adequados. Isso implica a adoção de medidas abrangentes, elaboradas com uma perspectiva de gênero e de natureza interdisciplinar, incluindo componentes voltados para a eliminação de estereótipos discriminatórios de gênero. A Comissão ressalta, também, a necessidade de se reforçar a formação de agentes públicos e pessoas que prestam serviço para o Estado – profissionais das força policiais, das autoridades de investigação, assim como das autoridades judiciais – com a perspectiva de gênero, de forma a que possam prestar os devidos cuidados às mulheres vítimas das tentativas de homicídios, bem como aos parentes de mulheres assassinadas, e identificar efetivamente a natureza discriminatória destes crimes; proteger as vítimas e suas famílias contra a revitimização, além de tipificar tais casos com feminicídio, quando apropriado" [5] (grifo da autora).
Por tudo isso, o juiz das garantias deve ser implementado também nos casos de violência doméstica e familiar. A nova estruturação é importante para livrar o sistema processual penal do modelo inquisitorial introduzido durante o Estado Novo. Ademais, a imparcialidade do juiz da instrução e julgamento é pedra de toque do Estado democrático de Direito.
Referências bibliográficas
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8ª Edição Salvador. Editora: JusPodivm, 2020.
PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.
[1] < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm>, acesso em 02 de novembro de 2020.
[2] <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=435253&ori=1>, acesso em 02 de novembro de 2020.
[3] <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=434788&ori=1>, acesso em 02 de novembro de 2020.
[4] <https://www.amb.com.br/implementacao-do-juiz-das-garantias-e-inviavel-e-causara-prejuizos-aplicacao-da-lei-maria-da-penha/>, acesso em 02 de novembro de 2020.
[5] <https://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2019/024.asp>, acesso em 03 de novembro de 2020.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!