Escritos de Mulher

Feminicídio e demais qualificadoras do artigo 121 do CP

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18 de novembro de 2020, 8h01

A Lei nº 13.104/2015 acrescentou a figura do feminicídio ao artigo 121, §2º, inciso VI , do Código Penal, em vigor desde 1940, atendendo ao clamor social pela punição mais severa dos assassinatos de mulheres praticados por seus maridos, namorados, companheiros, conhecidos ou ex-parceiros de qualquer natureza, o que ainda é muito freqüente no Brasil. Não foi sem muita discussão que tal inserção se firmou em nossa legislação, pois a resistência dos setores conservadores se manteve firme durante muitos meses após a entrada em vigor da nova figura penal, mas o bom senso venceu e o tipo penal do feminicídio permanece vigente na legislação.

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Em complemento ao disposto no inciso VI do §2º do artigo 121 do CP, o §2º-A do mesmo dispositivo esclarece que "considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I  violência doméstica e familiar; II  menosprezo ou discriminação à condição de mulher". Está, portanto, estabelecido que o feminicídio é uma qualificadora do homicídio que pode, eventualmente, ser cumulada com outras qualificadoras previstas no mesmo artigo 121 do Código Penal. No entanto, dúvidas podem surgir.

Suponhamos que o marido matou a mulher porque ela deixou queimar o feijão na hora do almoço. Se a vítima não fosse do sexo feminino, certamente não teria morrido nas mesmas circunstâncias, mas, em se tratando o agressor de pessoa desrespeitosa quanto aos direitos da mulher, julgou-se mais do que marido ou companheiro da vítima, arvorou-se em seu amo e senhor, com poderes de punição severa e cruel contra a esposa. Assim, fica evidente que a morte da mulher resultou de violência doméstica praticada com menosprezo e discriminação à condição feminina. No entanto, digamos que a esposa em questão fosse herdeira de um razoável montante financeiro pelo qual o marido teria muito interesse. Nesse caso, poderíamos acrescentar um outro "motivo torpe", apesar de o feminicidio por si mesmo já constituir uma qualificadora fulcrada no motivo.

A jurisprudência vem se firmando no sentido de que "não há bis in idem no reconhecimento das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, porquanto a primeira tem natureza subjetiva e a segunda, objetiva"(Informativo 625 do STJ).

Conforme interessante decisão proferida pelo ministro Antonio Saldanha Palheiro, do STJ, em recurso no qual se insurgia o réu contra a pertinência de duas qualificadoras em crime de feminicidio, "o pedido de afastamento da qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima em crime de feminicidio deve ser submetido à apreciação do Conselho de Sentença", pois somente é cabível a exclusão das qualificadoras na pronúncia quando manifestamente improcedentes.

Ocorre que o aparente conflito pode ser maior quando o feminicidio é cumulado com a qualificadora do motivo torpe. É possível entender que o feminicidio já seria, por sua definição, um homicídio praticado por motivo torpe. Desprezar os direitos da mulher a ponto de se achar no direito de tirar-lhe a vida cabe na definição de torpeza. Acredito que, apenas nessa circunstância, haveria alguma discussão, mas estou convencida de que o feminicidio se coaduna com a qualificadora do motivo torpe.

Um homem que tira a vida de uma mulher porque supõe que ela esteja interessada em outro, além de cometer um homicídio por menosprezar os direitos da mulher, arvora-se em seu "possuidor", seu "amo e senhor", enfim, "seu dono e seu algoz". Assim, além do menosprezo por todas as mulheres do mundo, que ele revela com sua atitude ao agir como amo e senhor de alguém, ele ainda procura impedir que sua companheira seja feliz com outro. Ambas as motivações são torpes, vis, cruéis, abomináveis, comportando o reconhecimento de duas (ou mais) qualificadoras do homicídio, inclusive o motivo torpe.

Enfim, nosso propósito não é apenas encontrar a correta punição para a mencionada crueldade, mas evitar as mortes de mulheres que se multiplicam corriqueiramente em nosso país.

Autores

  • é advogada, foi Promotora e Procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça, no governo FHC. É autora de sete livros, entre os quais "A paixão no banco dos réus" (ed. Saraiva).

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