Opinião

O mito da segurança jurídica: o caso da encampação da Linha Amarela

Autor

  • Flávio Henrique Unes Pereira

    é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais diretor titular do Departamento Jurídico da Fiesp presidente do Instituto de Direito Administrativo do Distrito Federal professor do mestrado profissional do IDP (São Paulo) e sócio do Silveira e Unes Advogados.

14 de novembro de 2020, 17h13

No Rio de Janeiro, a rodovia pública popularmente conhecida como Linha Amarela teve construção, manutenção e exploração regidas por contrato de concessão de obra e serviço público. Atualmente, existe significativa celeuma fático-jurídica entre a prefeitura do Rio — poder concedente — e a concessionária responsável pela Linha Amarela (Lamsa). Em síntese, o Executivo e Legislativo cariocas, sob fundamento da existência de supostas irregularidades nos termos aditivos do Contrato de Concessão da Lamsa, aprovaram a Lei Complementar Municipal nº 213/2019, que "autoriza a encampação da operação e da manutenção da Avenida Governador Carlos Lacerda – Linha Amarela".

A encampação de um contrato de concessão é, nos termos do artigo 37 da Lei nº 8.987/95, a "retomada do serviço pelo poder concedente durante o prazo da concessão, por motivo de interesse público, mediante lei autorizativa específica e após prévio pagamento da indenização". Se está diante, portanto, de medida bastante gravosa, em que o poder concedente retoma, manu militari, a prestação do serviço público.

E os requisitos para encampação são de fato muito relevantes, porquanto um contrato de concessão pressupõe elevados investimentos e longa duração, não cabendo uma interrupção da avença, salvo em situações excepcionais e desde que atendidos os parâmetros legais. Caso contrário, a iniciativa privada não investe no país ou apresenta valores extremamente elevados considerando o risco. Como era de se esperar, a Linha Amarela foi judicializada e, perante o STJ, tramita a SLS nº 2.792.

À margem das disputas que permeiam o caso, nos interessa aqui avaliar a "inovação" trazida pelo Rio de Janeiro em sua proposta de encampação da linha amarela (e que é objeto de discussão em diversas ações judiciais em curso): o preenchimento do requisito de indenização prévia por meio de 1) compensação do valor da indenização com o suposto prejuízo causado ao município pelas alegadas irregularidades (artigo 1º, §1º, da LCM nº 213/19), e 2) caução indicada pelo município (artigo 1º, §2º, da LCM nº 213/19).

Ensina Humberto Ávila [1] que a segurança jurídica é norma-princípio composta pelo trinômio cognoscibilidade (clareza e inteligibilidade das normas e de sua aplicação), confiabilidade (estabilidade e segurança quanto ao entendimento da norma) e calculabilidade (previsibilidade e vinculação normativa), de modo que uma "inovação" a partir do teor de uma norma tem o condão, ao menos em tese, de romper a confiabilidade e calculabilidade de uma determinada situação jurídica. Passemos à análise do caso.

De partida, necessário pontuar que a Administração Pública submete-se ao princípio da legalidade estrita. Significa dizer que a previsibilidade (calculabilidade) dos atos estatais decorre, grande medida, do Direito positivo, de modo que as expectativas legítimas (cognoscibilidade) do jurisdicionado são aquelas descritas em diplomas legais. Com isso em mente, a primeira indagação que surge é: há previsão legal para a conduta do município do Rio de Janeiro?

Primeiro analisemos a possibilidade de compensação de créditos, que é prevista no artigo 368 do CC, aplicável às relações de Direito privado. O debate sobre a compensação de créditos na esfera do Direito público surgiu de modo acalorado primeiro na esfera tributária, em que se discutia a possibilidade de compensação entre débitos e créditos tributários. Ao fim, foi pacificada a possibilidade de compensação porque tal era expressamente autorizado pelo artigo 170 do CTN [2]. Nessa linha, manifestou-se o TCU no sentido de que qualquer compensação em Direito público exige expressa autorização legal exatamente em virtude da legalidade estrita (TCU, TC 021.314/2007-1, Plenário, rel. min. Marcos Bemquerer Costa, sessão: 1/10/2008). Uma vez que não existe norma autorizando a compensação de créditos em caso de encampação, não há respaldo legal para a inovação realizada pelo município.

Em exercício argumentativo, ainda que se aceite aplicação do artigo 368 do CC ao Direito público (por analogia? — anote-se que a aplicação de analogia no Direito Administrativo é, por si, tema controvertido), o artigo 369 do CC expressamente assevera que "a compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis". A compensação pretendida pelo município se dá entre o valor do suposto prejuízo aos cofres públicos e o valor de indenização devido à concessionária em decorrência da encampação, calculado na forma dos artigos 36 e 37 da Lei nº 8.987/95.

Ocorre que, segundo o próprio município, "o legislador (municipal) entendeu por expressamente autorizar que tais prejuízos possam ser amortizados. E como se dará tal apuração? Repita-se à exaustão: no respectivo processo administrativo de cálculo da indenização" (Inicial da SLS nº 2.792, pg. 29, último parágrafo — grifo do autor), ou seja, o valor da indenização devida à Lamsa ainda não foi apurado, o que significa que o crédito da Lamsa não é líquido. Em verdade, isso fica claro na própria LCM nº 213/19, que em seu artigo 1º, §1º, in fine, aponta que a compensação ocorrerá "sem prejuízo da apuração de eventual saldo remanescente a ser devolvido aos cofres públicos". Ora, se ainda há apuração a ser feita é porque a dívida não é líquida, se o fosse bastaria apontar o valor do saldo remanescente por mero processo de aritmética. Assim, o valor do crédito da concessionária não é líquido.

Pelo lado do suposto crédito do município decorrente das supostas irregularidades da concessão, forçoso reconhecer que seu valor e sua própria existência são objeto de disputa judicial, razão pela qual não pode ser considerado líquido. Assim, o crédito de ambas as partes, Lamsa e município, não é líquido, de modo que não é possível a compensação ainda que aplicável o artigo 368 do CC.

Sobre a compensação temos, então, o seguinte: a cognoscibilidade das normas aponta a impossibilidade de compensação, posto que inexiste previsão legal para tanto e sobre a Administração incide a legalidade estrita, e, caso existisse, não poderia ser realizada no caso concreto, pois a dívida/o crédito não são líquidos conforme requerido pelo artigo 369 do CC; a confiabilidade também estipula no sentido de impossibilidade de compensação, pois de longa data a jurisprudência pátria caminha no sentido de ser necessária prévia autorização legal para tanto, como no caso da compensação tributária e entendimento do TCU; e ainda a calculabilidade não autoriza a compensação, pois o jurisdicionado tinha expectativa legítima de que seria previamente indenizado, visto que é esta a previsão legal desde 1995.

Analisemos agora a hipótese da caução. De fato, como alternativa e complemento à compensação de numerários a LCM nº 213/19, autoriza o Executivo carioca a "instituir caução para prevenir a necessidade de amortização em favor da concessionária". Segundo o próprio município, ele "ofereceu caução, em imóveis, no valor de R$1.330.507.000,00" (Inicial da SLS nº 2.792, pg. 29, terceiro parágrafo — grifo no original). Significa dizer que foi oferecida caução, i.e, uma garantia, em imóveis. Ora, a dação de imóveis em garantia de dívida tem nome jurídico: hipoteca. O município do Rio de Janeiro está, por via transversa, efetivamente hipotecando bens públicos.

Como bem se sabe, são características dos bens públicos a inalienabilidade (artigo 100 do CC), a impenhorabilidade e a não oneração (artigo 1.420 do CC), de modo que bens públicos não podem ser oferecidos como garantia de dívida do poder público, que se sujeita, invariavelmente, ao regime de precatórios. Ainda que se considere a possibilidade de oneração de bens dominicais, para tanto deve ser observado o rito previsto nos artigos 17 e seguintes da Lei nº 8.666/93, o que não se observa no caso concreto.

Sobre a caução em imóveis temos, então, o seguinte: a cognoscibilidade das normas aponta no sentido de que a caução não poderia existir, posto que a hipoteca de bens públicos é vedada e, no mínimo, não se observou o rito previsto nos artigos 17 e seguintes da Lei nº 8.666/93; a confiabilidade estipula no sentido de que a caução não poderia existir, pois de longa data a jurisprudência pátria não admite oneração de bens públicos; e a calculabilidade também milita contra a possibilidade de caução, visto que não podia o particular prever conduta estatal de garantir dívida com imóveis sendo que as dívidas do poder público são tipicamente submetidas ao regime de precatórios.

Assim sendo, a celeuma que afeta a Linha Amarela e o município do Rio de Janeiro traz luz para um problema muito maior, qual seja, a segurança jurídica que deve permear contratações públicas, sob pena de inibir investimentos ou mesmo maximizar custos dado o elevado risco que a insegurança ocasiona.

 


[1] ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

[2] "Artigo 170 – A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública".

Autores

  • é sócio do escritório Silveira e Unes Advogados, presidente da Comissão Especial de Proteção de Dados da OAB Federal, professor e coordenador do mestrado profissional do IDP-SP, doutor e mestre em Direito Administrativo pela UFMG.

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