Opinião

LINDB: o impacto das "orientações gerais da época" na persecução penal

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8 de novembro de 2020, 6h05

Em 2013, por causa de denúncia anônima, a Polícia Federal iniciou investigação contra diversos médicos do Hospital da Universidade Federal de Santa Catarina. A suspeita era de que existiria esquema para que os profissionais faltassem ao serviço, o que seria acobertado pelo preenchimento pro forma de folhas-ponto. Dois anos depois, seria deflagrada a chamada operação "Onipresença", tendo como alvo mais de 20 profissionais, que depois seriam acusados da pretensa prática de crime de estelionato contra a Administração Pública.

As diversas denúncias foram recebidas e os processos aguardavam as audiências de instrução e julgamento.

Porém, após instruir ação penal imputando fatos semelhantes, ou seja, o preenchimento pro forma de folhas-ponto no âmbito do Hospital da Universidade Federal de Santa Catarina, o juízo da 1ª Vara Federal de Florianópolis constatou que havia uma "orientação da Administração" para que os médicos realizassem o registro dessa maneira.

A prova desse outro processo foi emprestada de ofício para todas as ações penais e, então, todos os médicos foram absolvidos sumariamente por sentença da juíza federal Simone Barbisan Fortes, que reconsiderou anterior decisão que reconhecera a existência de justa causa para as denúncias.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região chegou a cassar a decisão, acolhendo argumento veiculado pelo Ministério Público Federal de que "não foi oportunizada à acusação a produção de prova quanto à situação concreta (de cada) acusado" [1].

Porém, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, acolhendo por maioria divergência aberta pelo ministro Rogério Schietti Cruz, restabeleceu a sentença de absolvição sumária.

Ao decidir o leading case da operação, o AgRg no AREsp nº 1.673.326, a corte admitiu a possibilidade de reconsideração da decisão do artigo 396 do Código de Processo, antes do início da instrução — por si só, importante reafirmação de entendimento jurisprudencial —, mas também considerou as implicações para a persecução penal da existência da referida "orientação da Administração".

Apesar de nenhuma das instâncias ter se referido expressamente ao artigo 24 da LINDB, não se pode ignorar a coincidência entre a ratio decidendi da decisão do Superior Tribunal de Justiça e a mens legis da referida disposição normativa, que prevê:

"Artigo 24 — A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas. Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público".

A referência essencial do voto do ministro Rogério Schietti, no AgRg no AREsp nº 1.673.326, diz respeito à "realidade do hospital".

É esse espírito, de consideração dos obstáculos e das dificuldades reais do agente público e das exigências concretas das políticas públicas a seu cargo — expressões do artigo 22 da LINDB —, que permeia as inovações promovidas pela Lei 13.655/2018.

Nesse sentido, as duas grandes lições deixadas pelo precedente da operação "Onipresença" são, primeiro, o revigoramento da permeabilidade do Direito Penal ao contexto social em que cometida a conduta e, em segundo lugar, o reconhecimento da restrição objetiva do poder de punir em razão desse contexto.

Sem fazer consideração sobre a postura psíquica de cada médico, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu as implicações normativas para o Direito Penal da existência dessa orientação geral, que fora chamada, pela sentença de absolvição sumária, de "cultura perpetuada pela Administração Pública, representada pelos diferentes gestores do hospital, não só junto aos profissionais contratados como também junto ao público por eles atendido".

No caso concreto, não houve somente ampliação teleológica da excludente de culpabilidade do artigo 22 do Código Penal, que afasta a punição da conduta praticada em estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico.

Mais precisamente, entendeu-se que não se tratava de comportamento a ser justificado, mas da criação de riscos permitidos, porque tolerados de modo geral [2]. O que a prova emprestada demonstrava, na operação "Onipresença", eram as expectativas reais que existiam em relação ao papel social dos investigados na vida real [3]. Como explica Jakobs: "É cada papel o que determina o conteúdo dos deveres e não o arsenal das peculiaridades individuais de cada um" [4].

Ou, na terminologia clara do artigo 24 da LINDB, a necessidade de levar em conta "as orientações gerais da época", consideradas inclusive aquelas "adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público".

Essa leitura caminha na direção de precedentes em que se tem buscado dar a merecida e esperada eficácia transversal à Lei 13.655/2018, como verdadeira norma de introdução ao Direito brasileiro [5]. Por estabelecer padrões decisórios para as esferas administrativas, controladora e judicial, as disposições da Lei 13.655/2018 devem se tornar onipresentes.

 


[1] Citações disponíveis no caso paradigma da Operação Onipresença julgado pelo STJ: AgRg no AREsp nº 1.673.326, 6ª Turma, Rel. p. Acórdão ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 22/09/2020.

[2] JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no Direito Penal. 4.ed. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 39-40.

[3] Ibidem. p. 47-49.

[4] Ibidem. p. 53.

[5] É o caso, por exemplo, do voto do Ministro Luiz Fux no referendo na Medida Cautelar nº 1.395 (Caso André do Rap), que enfatizou o consequencialismo propugnado pelo artigo 20 da LINDB.

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