MP no Debate

Mediação, processo estrutural e políticas públicas

Autores

  • Andreia Mara de Oliveira

    é advogada mestre em Direito pela Unesp-Franca ex-conselheira do Núcleo Docente Estruturante da FESL ex-professora de Direito na FESL Unip e Fafram ex-conferencista na Unesp participante do Summer Program in North American Law in University of Florida — Fredric G. Levin College of Law (EUA) do Postgrado em Derecho Politica y Criminologia na Universidad de Salamanca (Espanha) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica do Ministério da Justiça (PI-Cade) e da Gestão do Meio Ambiente da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

  • Ivan Carneiro Castanheiro

    é promotor de Justiça do MP-SP mestre em Direito pela PUC-SP membro do Ministério Público Democrático (MPD) professor convidado da Escola Superior do Ministério Público (ESMP-SP) professor da Unip (Campus Limeira/SP e Nacional EAD) consultor do Projeto "Conexão Água" do Ministério Público Federal (MPF) coordenador do 17º Núcleo Regional (Piracicaba) da Escola Superior do Ministério Público membro do Comitê Temático do Meio Ambiente (Grupo de Trabalho de Enfrentamento à pandemia do COVID — MP-SP — PGJ) e vice-diretor da Associação Brasileira dos membros do Ministério Público (Abrampa) — Região Sudeste. Autor dos seguintes capítulos de livro: "Direito Urbanístico e Direito à Moradia" e "Regularização fundiária: fundamentos aspectos práticos e propostas".

2 de novembro de 2020, 8h01

O Código de Processo Civil de 2015 prevê expressamente o dever dos operadores do Direito de estimular os métodos alternativos de resolução de conflitos, antes ou durante o processo judicial, sendo os mais conhecidos: conciliação, negociação, mediação e arbitragem. A mediação envolve um terceiro, imparcial, neutro e com capacitação técnica, que facilitará o diálogo entre as partes para que estas construam a melhor solução para todos [1].

Na aplicação dos métodos de soluções adequadas de conflitos pode-se utilizar o modelo avaliativo, que tem foco no resultado sem mudanças, há sugestões de resultado pelo conciliador com vistas ao acordo. O modelo facilitativo tem foco nas mudanças de primeira ordem (acomodação, adaptativas, contensoras e/ou organizativas, mas a estrutura do sistema permanece inalterada), não havendo sugestões pelo facilitador, mas se visa o acordo e a participação efetiva com propostas da partes, podendo-se guiar pelas bases de negociação do modelo de Harvard.

Há ainda outros modelos: o circular-narrativo de Sara Cobb e o transformativo de Bush & Folger. O circular-narrativo trabalha no nível da comunicação narrativa. O conflito é expresso durante a narrativa, ele é o desencontro das narrativas. Objetiva-se encontrar um lugar comum em que as narrativas distintas possam conviver. Já o modelo transformativo busca modificação na relação das partes, mudanças de primeira e segunda ordens (estas são as transformadoras de padrões de conduta no âmbito individual e relacional), o acordo pode acontecer ou não. Objetiva-se explicitar o conflito e transformar a relação. O mediador pondera, mas deixa que a relação se expresse/manifeste durante a gestão do conflito. Os envolvidos trazem o que desejam do conflito, há espaço de conversa. Utilizam-se técnicas de espelhamento para as pessoas entenderem os posicionamentos.

Quanto aos processos estruturais, na definição de Edilson Vitorelli [2], são demandas judiciais nas quais se busca reestruturar uma instituição pública ou privada cujo comportamento causa, fomenta ou viabiliza um litígio estrutural. Essa reestruturação envolve a elaboração de um plano de longo prazo para alteração do funcionamento da instituição e sua implementação (que se dá por intermédio de uma execução estrutural), mediante providências sucessivas e incrementais, as quais garantam que os resultados visados sejam alcançados, sem provocar efeitos colaterais indesejados ou minimizando-os [3]. As etapas do plano são cumpridas, avaliadas e reavaliadas continuamente do ponto de vista dos avanços que proporcionam e em todas haverá a necessidade de aplicação dos métodos consensuais de resolução de disputas [4], como a mediação.

Antônio do Passo Cabral e Hermes Zanetti Jr. citam o exemplo do caso Rio Doce, no qual houve conflituosidade interna e complexidade fática e jurídica. Com o rompimento da barragem da empresa Samarco, no dia 05 de novembro de 2015, lesionaram-se direitos individuais e coletivos, tendo sido ajuizadas ações individuais, coletivas e incidentes para resolução de demandas repetitivas. Foram identificados grupos de interesses contrapostos e interesses contrapostos internamente aos próprios grupos. Nesses casos a efetivação das medidas judiciais, quando deferidas liminarmente ou em sentença, revela-se demorada, custosa e dificilmente adaptável às estruturas e procedimentos do Judiciário. Em certos casos, a solução encontrada foi a criação de entidades de infraestrutura específica para dar cumprimento a negócios jurídicos e decisões judiciais como a Fundação Renova, entidade constituída a partir do TAC firmado entre as empresas Samarco, Vale do Rio Doce e BHP BiIliton com União, Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e suas autarquias [5].

Os litígios estratégicos têm por objetivo alcançar mudanças sociais por meio de casos paradigmáticos perante o Judiciário, buscando transformação da jurisprudência, formação de precedentes, alterações legislativas e/ou de políticas públicas. Ocorre que o Estado democrático de Direito em sua formação original de autonomia e separação dos poderes, por absoluta ineficiência em ações e planos específicos, não está funcionando adequadamente. O contrato social firmado com a população e garantidor dos direitos humanos fundamentais não está sendo adimplido pelo Estado. Nesse contexto, o Judiciário está sendo chamado a intervir em outras esferas de poder para garantir os direitos do povo e a efetivação das políticas públicas por meio de processos estruturantes embasados no atual Código de Processo Civil.

"No caso específico das decisões estruturantes, têm-se observado que a frequente utilização dos meios de execução atípicos de intervenção judicial e de bloqueio de verbas públicas com o objetivo de garantir a tutela dos direitos fundamentais e, consequentemente, de efetivar o papel do Estado no pacto federativo tem surtido efeito positivo para o ordenamento jurídico brasileiro, notadamente, nas questões que envolvem as lides da área de saúde" [6].

Os litígios estruturais, além de serem mais eficientes sob ponto de vista da análise econômica do Direito, resolvem o problema da afronta à isonomia gerada nos processos individuais, uma vez que haverá decisão garantidora de direitos para todos e não apenas aos que postularem individualmente. Decisões isoladas, sem consideração do contexto local ou regional não resolve o problema e provoca um aumento significativo no volume de ações individuais com mesmo propósito, bem como o inconveniente de eventuais decisões divergentes e consequente insegurança jurídica, em geral causando injustiça social. Nessa linha de raciocínio, se cada processo que contempla um problema de política pública decidir apenas sobre interesses individuais, descurando-se do todo e do bem comum, não se atingirá o interesse público.

A análise econômica do Direito estuda leis, institutos jurídicos, decisões judiciais e seus impactos com o objetivo de alcançar a máxima eficiência e justa alocação de recursos (seja decorrente da lei, seja advinda de uma decisão judicial). Sob esta perspectiva, aplica-se à presente análise a teoria dos jogos, mais especificamente a conhecida "tragédia dos comuns", que ocorre quando há o dilema entre o interesse pessoal e o bem-estar da coletividade. Essa teoria econômica analisa a existência de danos irreparáveis quando se tomam decisões individuais sem se preocupar com as consequências negativas e cumulativas para todos ao redor. O problema ocorre quando só se observa a busca de benefício individual.

A "tragédia dos comuns" é uma situação em que indivíduos, agindo de forma independente e racionalmente de acordo com seus próprios interesses, comportam-se em contrariedade aos melhores interesses de uma comunidade, esgotando algum recurso comum. Esse conceito foi baseado originalmente em um ensaio feito pelo matemático e economista William Forster Lloyd sobre posse comunal da terra em aldeias medievais, muito embora tenha sido popularizado pelo ecologista Garrett Hardin, no ensaio "The Tragedy of the Commons", publicado em 1968 na revista Science. Elinor Ostrom, vencedora do Prêmio Nobel de Economia, criticou a teoria "tragédia do bem comum", a qual prevê o ser humano como fadado ao conflito por causa de escassez, acrescentando o elemento da cooperação para resolver parte do descontrole existente [7]. Para Elinor, as sociedades são capazes de prosperar, criando alternativas para a resolução de conflitos, garantindo o respeito ao semelhante e a sustentabilidade ambiental, sem necessariamente depender da intervenção de governos ou outras autoridades.

A mediação e o processo estrutural são reflexos desta almejada evolução. O Judiciário acompanha as sucessivas ideologias sociais e histórico de intervenção do Estado sobre atividade econômica. O mesmo acontece com o nascimento dos direitos de primeira, segunda, terceira geração e os sucessivos. Durante o liberalismo, o Estado atuava como garantidor das liberdades individuais absolutas, as leis existiam para garantir a plena liberdade. Foi adaptado à ideologia de Adam Smith, na qual a concorrência seria o antídoto natural do mercado contra concentração econômica e abuso de poder. Mas isso não ocorreu, houve grande acumulo de riquezas e abusos de toda ordem, sendo então substituído pelo Estado-interventor, garantidor do bem-estar social, encampador de empresas e distribuidor de serviços essenciais, tornando-se um controlador, inibidor de garantias, um gigante inoperante e incapaz de condução adequada e equilibro da atividade e ordem econômica.

A ideia foi substituir então por um sistema neoliberal, no qual as empresas retornam ao setor privado através das privatizações e criam-se agências reguladoras em cada setor para coibir os abusos. Neste, a propriedade e as liberdades deixaram de ser absolutas e passaram a ser limitadas. A livre iniciativa (direito de entrar e sair do mercado livremente), a livre concorrência (direito à permanência no mercado) deixam de ser absolutas e a propriedade privada passa a ter função social.

Esse movimento de devolução da Administração e gestão pública da atividade econômica para o setor privado reflete no Poder Judiciário quando o mesmo (gigante e pouco operante devido às crescentes e complexas demandas de ordem individual e coletiva) percebe que a autocomposição realizada de forma exitosa, com a utilização de técnicas de resoluções adequadas de conflitos pelos particulares é um caminho salutar para sanar sua atuação insuficiente.

Enquanto essa tendência é incentivada e implementada de forma louvável e robusta em todo o país, aliviando o absurdo volume de processos parados no judiciário, este poderá debruçar-se sobre questões altamente importantes para a sociedade, como os processos estruturais estratégicos.

Como exemplos de boas práticas e exímia aplicação, eficaz e eficiente, das técnicas de resoluções adequadas de conflitos são a equipe do Cejusc de Araçatuba, sob comando de Elaine Volpe Esgalha A. Bento, e os Projetos Íntegra (Premio Innovare Edição V- 2008), Xixová-Japuí e Serra do Mar, do governo do Estado de São Paulo, idealizados e comandados por Celia Regina Zapparolli.

Como demonstraram os ganhadores do Nobel de Economia, o caminho para o bem-estar da coletividade é a cooperação. Objetivo este compartilhado pelos métodos de resolução adequada de conflitos que deverão ser utilizados em todas as fases do processo estrutural estratégico, o qual acaba por resolver todas as questões, uma vez que tratará das políticas públicas e questões sociais como um todo, oferecendo dignamente os bens da vida a todos e de forma isonômica.

 


[1] OLIVEIRA, Andreia Mara de. CASTANHEIRO, Ivan Castanheiro. Mediação na administração pública como medida democrática. In: Clipping do Observatório Nacional do CNMP, https://observatorionacional.cnmp.mp.br/observatorionacional/images/observatorio/coronavirus/clipping/Corona_28072020.pdf, pag.104. Clipping do Observatório Nacional do CNJ -https://observatorionacional.cnj.jus.br/observatorionacional/images/observatorio/coronavirus/clipping/Corona_27072020.pdf, pag. 58. https://www.conjur.com.br/2020-jul-27/mp-debate-mediacao-administracao-publica-medida-democratica. Acesso em 27/10/2020.

[2] VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural, processo coletivo, processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo, Brasília, v. 284, n. 43, p. 333-369, out. 2018.

[3] VITORELLI, Edilson. Processo estrutural e processo de interesse público: esclarecimentos conceituais. Revista Iberoamericana de Derecho Procesal, vol. 7, p. 147-177, jan-jun, 2018.

[4] BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Decisões e acordos estruturais: da prática à teoria. Tomo I / Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Natal: MPRN, 2020.

[5] CABRAL, Antônio do Passo; ZANETI Jr., Hermes. Entidades de infraestrutura específica para a resolução de conflitos coletivos: As Claims Resolution Facilites e sua aplicabilidade no Brasil. Revista de Processo, Ano 44, Vol 287, janeiro 2019. https://www.academia.edu/38509246/Entidades_de_Infraestrutura_Especifica_para_Solu%C3%A7%C3%A3o_de_Conflitos_Coletivos_Claims_Resolution_Facilities_e_sua_aplicabilidade_no_Brasil.

[6] BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. (org) Decisões e acordos estruturais: da prática à teoria. Tomo I / Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Natal: MPRN, 2020, 114p.

[7] ZSCHORNACK, Thiago. A tragédia dos comuns e a Amazônia. Disponível em http://opiniaodeeducador.blogspot.com. Acesso em 27/10/2020.

Autores

  • Brave

    é advogada, mestre em Direito pela Unesp-Franca, participante do Summer Program in North American Law in University of Florida - Fredric G. Levin College of Law (USA), do Postgrado em Derecho, Politica y Criminologia na Universidad de Salamanca (Espanha), do PI-CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica do Ministério da Justiça – Brasília/DF e Gestão do Meio Ambiente da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Foi conselheira do Núcleo Docente Estruturante da FESL e professora de Direito na FESL, UNIP, FAFRAM e conferencista na Unesp.

  • Brave

    é promotor de Justiça do MP-SP, mestre em Direito pela PUC-SP, membro do MPD, participante do Summer Program in North American Law in University of Florida - Fredric G. Levin College of Law (EUA), professor convidado Escola Superior do Ministério Público (ESMP-SP), professor da Unip, consultor do Projeto “Conexão Água”, do Ministério Público Federal (MPF), coordenador do 17º Núcleo Regional (Piracicaba) da Escola Superior do Ministério Público, membro do Comitê Temático do Meio Ambiente (Grupo de Trabalho de Enfrentamento à pandemia da Covid – MPSP - PGJ) e vice-diretor da Associação Brasileira dos membros do Ministério Público (Abrampa) - Região Sudeste.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!