Justiça Tributária

Aumento do ICMS sem lei, o empréstimo compulsório paulista e o Convênio 42/16

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  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

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2 de novembro de 2020, 8h02

O título desta coluna certamente vai causar espanto, mas, para que não haja dúvida, transcrevo o artigo 22 da Lei 17.293, de 15 de outubro deste ano:

Spacca
"Artigo 22 — Fica o Poder Executivo autorizado a:
I — Renovar os benefícios fiscais que estejam em vigor na data da publicação desta lei, desde que previstos na legislação orçamentária e atendidos os pressupostos da Lei Complementar federal nº 101, de 4 de maio de 2000;
II — Reduzir os benefícios fiscais e financeiros-fiscais relacionados ao Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, na forma do Convênio nº 42, de 3 de maio de 2016, do Conselho Nacional de Política Fazendária – Confaz, e alterações posteriores.

§1º.Para efeito desta lei, equipara-se a benefício fiscal a alíquota fixada em patamar inferior a 18% (dezoito por cento)".

Centremos nossa atenção inicialmente na referência feita ao Convênio Confaz 42/16, o qual permite aos Estados criar um fundo (cláusula 2ª) constituído com recursos decorrentes de depósitos que as empresas beneficiárias de incentivos fiscais devem nele realizar, em montante equivalente a, no mínimo, 10% do respectivo incentivo ou benefício (cláusula 1ª, I). Com isso, as empresas incentivadas serão obrigadas a contribuir para esse fundo em valor correspondente a 10% dos seus benefícios fiscais, que, na prática, serão reduzidos nesse percentual.

Referido convênio cria ainda outra hipótese, que é a da redução pura e simples dos incentivos fiscais em 10%, sem vinculação ao referido fundo (cláusula 1ª, II).

Simplificando: as empresas incentivadas terão uma redução de 10% em seus incentivos fiscais, passando a ser obrigadas a depositar esse valor em um fundo, ou simplesmente aumentando sua carga tributária incentivada nesse mesmo percentual.

O descumprimento dessa obrigação "por 3 (três) meses, consecutivos ou não, resultará na perda definitiva do respectivo incentivo ou benefício" (cláusula 1ª, §1º).

Agora voltemos nossa atenção ao §1º da lei paulista, acima transcrito, que equipara a benefício fiscal todas as alíquotas fixadas em patamar inferior a 18%. Parece óbvio que tal norma deve ser lida em consonância com o que estabelece o caput do artigo 22, portanto, aponta que será considerado incentivo fiscal, para fins do que estabelece o inciso II (que menciona o referido Convênio 42/16), tudo aquilo que for tributado em patamar inferior a 18%, o que abrange uma gama enorme de bens fornecidos e serviços prestados pelas empresas paulistas.

Não só. Esse §1º, para fins do inciso I do artigo 22 da lei paulista, também possibilita que o governador do Estado renove em patamares inferiores a 18% os benefícios fiscais em vigor claro que atendidos os pressupostos financeiros da Lei de Responsabilidade Fiscal e as normas orçamentárias pertinentes.

Esse é o quadro. Será constitucional e legal tal procedimento?

Comecemos pelos efeitos concretos e palpáveis: as empresas incentivadas terão uma redução de 10% no valor dos incentivos fiscais regularmente concedidos, o que implica em majoração de carga tributária sem lei e no curso de sua vigência, o que infringe várias normas.

Inicialmente constata-se que o artigo 167, IV, CF veda a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, o que nitidamente está ocorrendo no caso concreto, pois parte do ICMS incentivado, que será aumentado, será destinado a esse fundo.

Por outro lado, o artigo 178, CTN, determina, como regra geral, que as isenções podem ser revogadas ou modificadas por lei a qualquer tempo, salvo se concedidas por prazo certo e em função de determinadas condições. Ocorre que não há lei que reduza esse valor, mas uma delegação de competência normativa do Poder Legislativo estadual ao Poder Executivo para que este o faça, o que viola o princípio da reserva legal tributária inscrito no artigo 150, I (CF), e seu correlato artigo 163, I (Constituição Estadual paulista), além de violar o artigo 97, incisos I, II e IV, do CTN. Existe vasta jurisprudência do STF distinguindo o que é princípio da legalidade (artigo 5º, II, CF) do que é o princípio da reserva legal tributária (artigo 150, I, CF) ver, por todas: ADI 5929, relator ministro Edson Fachin; ADI 1.247, relator ministro Celso de Mello; ADI 2.688, relator ministro Joaquim Barbosa; e RE 586.560 AgR/RN, relator ministro Luiz Fux.

Além disso, resta violada a Súmula 544 do STF, que determina: "Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas", o que destaca o caráter sinalagmático dos incentivos concedidos, pois, como regra, trazem incontáveis compromissos para que as empresas possam usufruí-los.

Esse tipo de fundo, amparado no Convênio 42/16, foi criado por vários Estados da federação, porém um deles já está em debate no STF, o do Rio de Janeiro (ADI 5636, relator ministro Barroso. Proposta pela Confederação Nacional da Indústria — CNI), porém nele se debate centradamente a legislação daquele Estado, sendo lateral o debate da inconstitucionalidade do convênio seria de todo conveniente impugná-lo diretamente, pois é a origem de todos esses problemas.

Além disso, segundo declaração do próprio governador do Estado de São Paulo, a arrecadação estadual já retornou aos patamares pré-Covid, o que demonstra a falta de fundamento fático para a criação desse tipo de fundo, o que implica na falta de fundamento jurídico.

Muitos outros argumentos de mérito poderiam ser apresentados, alguns dos quais escrevi com Thales Falek quando este texto ainda tramitava na Alesp. Outros podem ser acrescidos, mas paro por aqui.

Visando a proteger os contribuintes paulistas, Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) propôs perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo uma ADI contra o referido artigo (Processo nº 2250266-75.2020.8.26.0000), que foi distribuída ao desembargador Moacir Peres, que, mesmo à luz de todos esses argumentos, indeferiu a liminar pleiteada infelizmente. Processo que segue.

Tal ação, contudo, não impede que as empresas que vierem a ser afetadas busquem diretamente seus direitos através de ações específicas, demonstrando seus prejuízos conforme acima apontado.

Registro, em adendo, que tudo indica que o Estado de São Paulo esteja instituindo um empréstimo compulsório disfarçado, o que não é apenas inconstitucional, é aberrantemente inconstitucional.

Sem dúvida haverá uma guerra judicial sobre esse assunto.

Qual ICMS deve ser retirado da base de cálculo do PIS e da Cofins? O Estado tem o direito de reduzir incentivos fiscais já concedidos? Sociedades de advogados podem pagar alíquotas fixas de ISS?

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Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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