Balanço de Gestão

'PGR não deve participar da judicialização da política e virar fator de crise', diz Aras

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31 de agosto de 2023, 7h51

O procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou nesta quarta-feira (30/8), em entrevista exclusiva à revista eletrônica Consultor Jurídico, que o Ministério Público não pode entrar no "jogo da judicialização da política", sob pena de virar um fator de crise e repetir pantomimas que quase pararam o país em tempos de "lava jato".

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Em final de mandato, Aras disse que ficaria "honrado" se fosse convidado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para continuar na chefia da PGR. Caso contrário, afirmou ele, pretende retomar a vida acadêmica e se dedicar à advocacia.

Ao fazer um balanço de sua gestão, que terminará neste mês de setembro, Aras disse que conseguiu unir o Ministério Público, para que o órgão atue de forma coordenada. Também destacou a reestruturação do órgão para que mais procuradores atuem na Amazônia e a reorientação de foco do Ministério Público Federal, antes bastante voltada para os crimes de colarinho branco. 

"Espero que a nossa gestão seja lembrada como aquela que, constituída por Sepúlveda Pertence, deixou de ser um monstro para ser uma instituição do Estado brasileiro que cumpre a Constituição e as leis e produz o bem estar-social para todos." 

Leia a seguir a entrevista:

ConJur —  O senhor descarta a possibilidade de um terceiro mandato?
Augusto Aras — Um procurador fica muito honrado com o convite de um presidente da República para exercer um cargo de procurador-geral da República. Como qualquer jurista ficaria honrado em ser convidado para ser ministro do Supremo Tribunal Federal. Então eu me sentiria honrado se assim fosse comigo. Se assim acontecer, terei de reapreciar meus projetos pessoais e familiares, tendo em vista que esses quatro anos me levaram a cumprir meus projetos institucionais.

ConJur — Quais foram os principais acertos de sua gestão?
Augusto Aras — Meus projetos podem ser tratados em dois planos, o interno e o externo. No interno, restabeleci o respeito à unidade institucional, para que cada membro do Ministério Público não seja uma instituição isolada. Os 1,2 mil membros não podem ser 1,2 mil Ministérios Públicos. Isso não pode funcionar, sob pena de levar a instituição ao caos. Nós preparamos a instituição no plano interno para que o Ministério Público brasileiro, constituído pelos ramos do Ministério Público da União e dos estados, seja uma única instituição.

Eu valorizei os membros e os servidores e equipei essa instituição com recursos tecnológicos. Adquiri bens, como carros blindados para a segurança de procuradores em áreas difíceis, e barcos de grande porte, lanchas e aviões anfíbios para a Amazônia. Também adquirimos helicópteros, e os recursos estão disponibilizados para que, assim que as aeronaves estiverem prontas, possam ser quitadas. Além de tudo isso, colocamos internet 5G à disposição dos colegas que atuam na Amazônia. Não havia nem 1G, quem dirá 5G. Agora há internet via satélite. Também temos o GeoRadar, que detecta derrubadas, queimadas e invasões na Amazônia. Há ainda dois navios em funcionamento no MPU. Um é o Papa Francisco, o único do Brasil a ter centro cirúrgico. O outro é o Papa João Paulo II, que é menor, mas onde funciona um ambulatório. Estamos entregando ainda o Papa João XXIII. 

No padrão externo, temos dois aspectos, o nacional e o internacional. No internacional, conseguimos mostrar ao Mercosul a força do MP brasileiro, contribuindo para o combate aos crimes transfronteiriços e para a cooperação internacional, fortalecendo relações multilaterais e promovendo a tolerância e a democracia na América do Sul. Temos um conjunto de atividades internacionais de que o Brasil participa não só por meio do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Justiça, temos também o Ministério Público e o procurador-geral da República, que tem independência funcional para participar desses casos.

Nas nossas atividades no plano nacional, com grande repercussão para a nação, está o Amazônia Azul, que amplia a fiscalização do Ministério Público em águas oceânicas e envolve os MPs da União e dos estados, principalmente os dos estados banhados pelo Oceano Atlântico, além da Marinha e de instituições que pesquisam o mar. Na semana passada, fizemos a inauguração do projeto em Salvador. Se houvesse uma indústria pesqueira desenvolvida no Brasil, ela seria suficiente para alimentar toda a América do Sul. Temos uma das costas mais piscosas do mundo, no entanto, importamos peixes. A ideia da proteção da nossa costa também é promover a segurança jurídica para o entretenimento e o turismo. Os empreendimentos geram riqueza, empregos e tributos. Toda vez que você trata do Oceano Atlântico, você fala de economia local das populações tradicionais, de exportação e de portos, portos esses que estão carentes de atualização. 

Temos hoje um conjunto de membros e servidores que formam os Gaecos (Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado). Formamos os 27 Gaecos federais. Eles vêm ao encontro da necessidade de institucionalizar aquelas forças-tarefas da "lava jato" de Curitiba e do Rio de Janeiro, que agiam como corpos estranhos ao Ministério Público Federal. Hoje, até os grupos do Rio e de Curitiba funcionam com mais procuradores, com servidores em maior condição de servir ao povo brasileiro. Com um detalhe: hoje as forças-tarefas funcionam em 27 estados. Com isso, temos uma institucionalidade que preserva a validade das investigações e dos processos, para que tudo não venha a ser anulado pelo Judiciário, como aconteceu com o "mensalão" e com a "lava jato". 

ConJur — Em sua nota de nomeação, em 2019, o senhor indicou a opção pelo caminho do meio para evitar polarizações. Em retrospecto, quais os frutos dessa opção?
Augusto Aras — O caminho do meio é o único possível para a convivência em sociedade e parte do respeito às ideias do outro e às escolhas do outro, desde que elas não arranhem a ordem jurídica. A ordem jurídica só pode ser buscada quando um bem jurídico relevante é subtraído, como a vida, a saúde ou a honra de alguém. Todavia, é preciso não só combater o discurso do ódio, mas promover a tolerância. Somos um país de tradição de tolerância e de formação multicultural. Precisamos retomar o caminho da paz, do diálogo, do debate e, de alguma forma, mais do que nunca, promover o caminho do meio, pois ele dá ao processo civilizatório a capacidade de convivência em harmonia. 

ConJur — Nas gestões anteriores, o foco do MP estava bastante orientado ao combate aos chamados crimes de colarinho branco. Como foi o processo de reorientação do órgão para cuidar também de outros temas?
Augusto Aras — A minha orientação foi a de combater os crimes que são das nossas atribuições, mas com respeito ao devido processo legal, à dignidade humana do réu e das vítimas — que também ganharam a centralidade da nossa gestão. No campo extrapenal, buscamos reduzir desigualdades regionais, uma vez que 70% dos procuradores do Ministério Público estavam presentes em 30% do país, nas Regiões Sul e Sudeste, enquanto Norte, Nordeste e Centro-Oeste, que correspondem a 70% do Brasil, tinham apenas 30% do Ministério Público, no que diz respeito a recursos materiais e de pessoal. Nós já reduzimos isso em torno de 12%. Precisamos dar continuidade. 

Na nossa gestão, o combate ao colarinho branco foi tão eficiente que supera os 12 anos anteriores. Nós prendemos, afastamos, fizemos buscas e apreensões e investigamos mais de 550 pessoas com prerrogativa de foro no Supremo e no Superior Tribunal de Justiça. Tivemos em nossa gestão o maior percentual de condenações no Supremo Tribunal Federal da história do Ministério Público Federal. 

Mas não fizemos vazamentos seletivos, investigação seletiva, acusações seletivas, fishing expedition, document dump, nem usamos a visão de túnel, que é quando o indivíduo elege um suspeito e busca o tempo todo provar que o suspeito é o culpado. Isso é uma subversão do devido processo legal. Nós investigamos fatos, não pessoas. Se os fatos se mostram ilícitos, buscamos a autoria e a prova de que esse fato criminoso ocorreu. Produzimos investigações com respeito às técnicas da ciência, da criminologia. Não elegemos suspeitos para buscar provas. O devido processo legal é o aspecto mais relevante para que não sejam condenados os inocentes, nem absolvidos os culpados.

As forças-tarefas eram atividades completamente desinstitucionalizadas e informais. Elas não tinham início, meio e fim, nem garantias aos seus membros. Também não tinham um objeto certo. Eram franco-atiradores que escolhiam alvos e produziam políticas de vazamento seletivo e de investigação seletiva. E o resultado está aí: a iniquidade, a invalidade de todas as investigações e os processos dali resultantes. Nós precisamos de institucionalidade sempre para que a vaidade, o personalismo, os caprichos, ou mesmo os interesses vis, não prevaleçam.

ConJur — A que o senhor atribui as críticas que recebeu ao longo de seu mandato?
Augusto Aras — Vivemos uma crise de falta de bons, porque os bons não querem ser achincalhados todo dia pela imprensa, nem serem vítimas de armadilhas de adversários e de um sistema que usa a ordem para desordenar e para criar o caos. Aí as pessoas vão se encolhendo. Eu fui calado por um segmento da mídia, não com ataques contra as minhas ações, mas com deboche, com falta de respeito e ridicularização. Durante seis meses eu tive uma trégua da imprensa e dei entrevistas a todos os veículos, com todo o respeito.

Houve um momento em que tive de parar de falar com a imprensa. Porque eu falava com você, aí os jornais que liam sua matéria pegavam as minhas palavras e deturpavam o que eu dizia. Não importava o que eu dizia. Importava a chicana, o deboche, o ridículo. Então isso me calou. É uma forma torpe de calar. Da mesma forma que o autoritarismo cala a imprensa, essa é a forma torpe de a imprensa calar as autoridades. Não adiantava eu falar com você, porque as palavras postas por você, na sua fidedignidade, seriam convertidas em um ataque. Essa é uma forma de desqualificar a pessoa.

A PGR arquivou apurações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro? Sim, arquivou 74. Por quê? Porque eram denúncias vazias, desprovidas de qualquer prova ou conteúdo técnico. Do governo atual, arquivou 126. Em oito meses, a PGR arquivou mais do que nos três anos e três meses de governo Bolsonaro (Aras tomou posse como PGR durante o primeiro ano de mandato do ex-presidente). E por quê? Pelo mesmo motivo. Sejam as representações criminais contra Bolsonaro e seu governo, sejam as contra Lula e seu governo, tudo isso faz parte da judicialização da política, que prejudica a democracia e revela uma hipertrofia do sistema político

Se eu fosse entrar no jogo da judicialização da política, eu teria cem impeachments contra o ex-presidente e cem contra o atual presidente, o que seria um despautério e um fator de crise para o país. Crise política, econômica e social. O procurador-geral da República precisa ser um estadista ao lado de um jurista, e, acima de tudo, um brasileiro que tem amor pela pátria e respeito pela nação. Não pode ser um irresponsável que vai receber cem representações contra um lado, cem contra o outro e vai sair distribuindo ações penais ou de qualquer natureza para atender aos caprichos de quem quer que seja. Digamos não à judicialização da política. Política se resolve com política, e democracia se resolve com mais democracia.

Embora tenhamos sido muito maltratados, foram 150 membros que se dedicaram a salvar vidas na pandemia. Fizemos o acompanhamento do dia a dia da CPI da Covid-19, analisamos 67 audiências públicas, isso antes da entrega do relatório final pelo Senado. Foram dez inquéritos no Supremo Tribunal Federal para apurar se houve desvio, falta ou omissão do governo anterior. Ainda hoje esquecem desse trabalho e fazem menções maledicentes. Ninguém que tenha dignidade de falar a verdade pode atacar o trabalho dos membros do Ministério Público que doaram suas vidas para salvar vidas. Inclusive, alguns perderam as vidas de seus familiares, e continuaram trabalhando. É preciso dar a essas pessoas o respeito pela dedicação ao enfrentamento à Covid. 

ConJur — Como o senhor espera ser lembrado a partir do fim de sua gestão?
Augusto Aras — Espero que a nossa gestão seja lembrada como aquela que, constituída por Sepúlveda Pertence, deixou de ser um monstro para ser uma instituição do Estado brasileiro que cumpre a Constituição e as leis e produz o bem-estar social para todos. Essa é a minha expectativa da nossa gestão, aqui parafraseando o ministro Sepúlveda Pertence.

ConJur — Caso deixe a PGR em setembro, o que o senhor pretende fazer em seguida?
Augusto Aras — Eu sempre tive uma vida acadêmica e intelectual. Embora eu tenha sido advogado e tenha deixado de advogar há cerca de dez anos, eu voltaria para a advocacia, para a academia e para a discussão das grandes questões jurídicas, políticas, econômicas e sociais, não só do Brasil, mas também do Brasil na geopolítica. Compreendo e desejo um Brasil inserido na comunidade planetária, não como mero coadjuvante, mas como um dos principais protagonistas.

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