Encontros de 2015

Deltan Dallagnol não informou governo sobre reunião com autoridades dos EUA

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12 de março de 2020, 12h41

Conversas entre procuradores do Ministério Público Federal divulgadas nesta quinta-feira (12/3) pelo The Intercept Brasil , em parceria com a Agência Pública, reafirmaram que procuradores da "lava jato" colaboraram com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos em investigações sobre o desvio de dinheiro na Petrobras sem informar o governo.

José Cruz/Agência Brasil
Segundo diálogos, Dallagnol tentou manter a visita fora dos holofotes
José Cruz/Agência Brasil

Os diálogos dizem respeito a uma visita feita em outubro de 2015 por 17 norte-americanos à sede do MPF em Curitiba. Entre eles estavam procuradores ligados ao Departamento de Justiça (DoJ) dos EUA e agentes do FBI. 

Segundo o MP e procuradores, "o contato direto entre membros do Ministério Público de diferentes países é uma boa prática internacional", e não há obrigação de informar o Executivo sobre as ações de cooperação internacional (leia a íntegra das manifestações no final da notícia).

Seguindo um tratado bilateral assinado em 1997, atos de colaboração em matéria judicial envolvendo Brasil e Estados Unidos são feitos por meio de um pedido formal de colaboração conhecido como MLAT. Nesses casos, cabe ao Ministério da Justiça ser o ponto de contato com o DoJ.

O Ministério Público, por sua vez, atua com base na recomendação 19 (Rec(2000) 19) do Conselho da Europa, em vigor desde 2000. O item 37 do documento diz que, "apesar do papel que possa ser desempenhado por outros órgãos concernentes à cooperação jurídica internacional, contato direto entre os promotores públicos de diferentes países devem ser estimulados, dentro do escopo dos acordos internacionais, quando existirem, ou, nos demais casos, na base de arranjos práticos".

De acordo com as conversas divulgadas pelo Intercept, a "lava jato" não informou os encontros para o governo brasileiro, então chefiado pela presidente Dilma Rousseff, realizados para cooperar com as autoridades dos Estados Unidos. 

Em 5 de outubro, Deltan Dallagnol, coordenador da operação, chegou a mandar a assessoria do MPF seguir a orientação da comissão dos EUA e não divulgar a visita do DoJ. "Os americanos não querem que divulguemos as coisas", disse.

Com a visita, os EUA estavam interessados no desvio de dinheiro na Petrobras. Em razão do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), a lei que regula as investigações de corrupção em países estrangeiros, o DoJ pode investigar e punir, nos Estados Unidos, atos de corrupção envolvendo pessoas e companhias estrangeiras que tenham ocorrido em solo norte-americano. 

Para isso, basta que os delitos estejam ligados à companhias com ações nas bolsas dos EUA, que a propina tenha sido paga em dólares ou que envolva transferência de dinheiro feita por algum banco dos Estados Unidos.

Governo “indignado”
Segundo os diálogos, o governo Dilma ficou “indignado” ao saber da visita do DoJ e FBI, que não foi comunicada ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional (DRCI), divisão do Ministério da Justiça responsável por coordenar a cooperação internacional. 

"Eu não gostei da ideia do executivo olhando nossos pedidos para saber o que há", disse Dallagnol a um colega após o DRCI levantar dúvidas sobre a visita. 

O MPF e Vladimir Aras, procurador responsável pela cooperação internacional na Procuradoria-Geral da República (PGR), responderam ao DRCI que o encontro se limitava a uma "reunião de trabalho", em que seriam feitas apresentações de "linhas investigativas adotadas pelo MPF e pela PF e pelos norte-americanos no caso lava jato". 

Documentos oficiais do Itamaraty obtidos também pelo The Intercept mostram que o DoJ pediu vistos para ao menos dois de seus procuradores, detalhando que eles planejavam viajar a Curitiba "para reuniões com autoridades brasileiras a respeito da investigação da Petrobras". 

Além disso, os norte-americanos se encontrariam com advogados dos delatores da lava jato. "O objetivo das reuniões é levantar evidências adicionais sobre o caso e conversar com os advogados sobre a cooperação de seus clientes com a investigação em curso nos EUA."

Em fevereiro de 2018, a ConJur já havia noticiado que a presença do FBI no Brasil vinha sendo ampliada desde 2014.

Fundo
De acordo com os diálogos, a multa bilionária a ser paga pela Petrobras ao Departamento de Justiça dos EUA por violação da lei FCPA foi um ponto chave nas tratativas com os procuradores brasileiros. 

A “lava jato" pretendia que ao menos 60% dos US$ 1.6 bi fossem direcionados a operação para que fosse criado um fundo de financiamento a iniciativas de combate à corrupção. 

Em agosto de 2017, após quase dois anos de negociações, os procuradores de Curitiba finalmente foram comunicados de que o DoJ compartilharia com os cofres brasileiros 80% do valor total da multa.

O valor pago pela Petrobras no entanto, foi menor do que o inicialmente previsto. O acordo garantiu ao brasil US$ 682.560 milhões (R$ 2,5 bilhões). A quantia foi depositada em uma conta na Caixa Econômica Federal. 

Em janeiro de 2019, a lava jato assinou um acordo com a Petrobras que previa a criação de uma fundação de direito privado, com sede em Curitiba, para administrar o fundo patrimonial. 

Do total, 50% do valor seria usado para ressarcir acionistas e 50% para “projetos, iniciativas e desenvolvimento institucional de entidades e redes de entidades idôneas, educativas ou não, “que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção”.

Outro lado
Ao Intercept, a assessoria de imprensa da operação "lava jato" disse que "eventuais reuniões com autoridades alienígenas — e foram dezenas, algumas presenciais e outas virtuais com diversos países — não necessitam de qualquer formalização via DRCI, mas apenas autorização interna dos respectivos órgãos interessados".

Também afirmou que "Vários colaboradores procuraram diretamente autoridades estrangeiras – e não apenas os EUA – para formalizar diretamente acordos de colaboração. Isso foi – e é – incentivado pelo MPF".

Vladimir Aras afirmou ao site que os procuradores "não estão obrigados a revelar ou a reportar esses contatos a qualquer autoridade do Poder Executivo". Segundo Aras, "o contato direto entre membros do Ministério Público de diferentes países é uma boa prática internacional".

Ricardo Saadi, ex-chefe da DRCI, disse ao Intercept que não lembrava se o Ministério Público respondeu às suas perguntas sobre a visita de outubro de 2015. Ele acrescentou que "O contato informal e direto entre as autoridades de diferentes países é permitido e previsto em convenções internacionais. Para esse tipo de contato, não há a necessidade de elaboração de pedido baseado no MLAT."

Além disso, o MPF segue o Rec(2000) 19, recomendação adotada pelo Conselho da Europa desde 6 de outubro de 2000. O documento afirma, entre outras coisas, que assuntos envolvendo cooperação internacional não precisam passar pelo Ministério da Justiça. 

Segundo o princípio 37 da recomendação, "contatos diretos entre promotores públicos de diferentes países devem ser promovidos, no âmbito de acordos internacionais" ou por meio de "disposições práticas". 

Já o princípio 38 determina que devem ser tomadas medidas para "promover contatos diretos entre promotores no contexto de cooperação judicial internacional".

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