O negacionismo epistêmico e a cirurgia com médico "tranquilão"
10 de março de 2020, 6h02
Este artigo é, de novo, uma versão do eterno retorno de uma causa perdida. Minha luta, quase quixotesca, contra a desinstitucionalização do saber jurídico. Minha luta contra o Geist de um Direito facilitado, resumido, mastigado que, de tão facilitado, resumido, mastigado, é qualquer coisa menos Direito. E forma advogados, promotores, juízes, professores, defensores e tanta gente. Que dão aula sobre um Direito facilitado, resumido, mastigado, que, de tão facilitado, resumido, mastigado, é qualquer coisa menos Direito. E formam profissionais do Direito, que dão aula… Eterno retorno. E estarei aqui, em minha causa perdida.
“Lá vem o Streck falando dos facilitados e congêneres de novo”… Peço que leia e entenda a crítica. Não tenho nada contra você, que quer passar num concurso e compra e lê o livro ou assiste vídeos de macetes. Pelo contrário. Estou ao seu lado. Meu problema é com a estrutura que o obriga a isso.
Vamos lá então.
Vi filme de produção mediana chamado Negação. Um sujeito nega o holocausto. Uma professora diz que ele é um charlatão. Ele a processa. Ela vai a julgamento. Não vou dar spoiler.
Por que falo disso? Por que estou criando hoje, aqui, o conceito de (anti)negacionismo epistêmico, que, ao lado (anti)negacionismo histórico, pode ajudar a enfrentar parte da comunidade jurídica que nega conceitos consolidados da ciência jurídica. Negacionismo epistêmico ocorre — também — quando alguém escreve livro jurídico simplificando e explicando erradamente. Trata-se de um terraplanismo jurídico. O obscurantismo, anti-intelectualista por definição, que ignora (e, ignorando, destrói) os fundamentos de uma genuína possibilidade de epistemologia no Direito, de uma ciência, de uma tradição por meio da qual proposições jurídicas podem ser verdadeiras ou falsas.
Assim, por exemplo, quem diz que Kelsen separou o Direito da moral, preconizando uma aplicação da “letra fria” da lei, pratica negacionismo epistêmico. E livros que passam por cima da Teoria do Direito, desdenhando de sua importância, também são negacionistas — livros como Direito tuitado, facilitado, resumo do resumo, Direito mastigado, seja foda em direito constitucional, Direito em sinopses, macetes jurídicos, Direito tranquilão, direito sem estresse, Direitotop, etc.
Isso me leva a uma pergunta: você se operaria com um médico que estudou cirurgia cardíaca com livros (e professores) que tinham como texto base algo como “cirurgia mastigada, facilitada, seja foda em cardio, cirurgia plástica top” ou quejandos? Você basearia todas suas informações e todas suas condutas sobre o coronavírus no vídeo de “zap”? Não? Que bom. Mas no Direito pode? Essa é a questão. Pode tudo na área jurídica? Pode dizer que garantismo é marxismo? Ou isso é negacionismo epistêmico? Sim, é. E se alguém achar que estou errado, processe-me. Como no filme Negação. Processem-me, e provem que garantismo é marxismo, e que Kelsen era um exegeta, e que ser positivista é aplicar a lei.
Uma das formas que alimentam o negacionisno epistêmico é a ausência de filtro — de editoras e de faculdades, e de qualquer filtro crítico ou institucional que o valha — que separe, no plano da escrita, o joio do trigo e contenha essa epidemia ou pandemia.
Não é “de graça” que tudo anda como está. O estado da arte reflete décadas de “esforço”. É evidente que o número de publicações desse quilate aumentou com o advento da internet.
Ou seja, assim como qualquer pessoa fala sobre o mundo a partir de seu Facebook, Whats ou Instagram, sem qualquer filtro minimamente institucional — filtro, só nas fotos que mostram toda a felicidade dos digital influencers —, assim também no Direito escreve-se qualquer coisa. E é possível negar qualquer conquista epistêmica.
Por que alguém compraria um livro que tem na capa uma sombrinha, uma praia, com explícita insinuação de que é possível aprender Direito de forma tranquila, sem estresse, isto, sem grande esforço? Sim, digam. Aliás, parece ser uma tentativa de isomorfia. Algo como a reportagem de TV em que o repórter, para falar da enchente, tem de estar com água pelo pescoço. O que é isomorfia? Eis aí um bom teste para o homem simplificador ou homo zapiens. No Google, é rapidinho. Quero ver é ler o Tratactus (aqui, o estagiário levanta, atrás, o livro do Wittgenstein com uma lupa. Ver, ler, Tractatus. Como o jornalista que explica proporção em campos de futebol num… campo de futebol).
A pergunta é: como chegamos a esse patamar? Jogamos pedra no túmulo de Pontes de Miranda? Colamos chiclete nos originais de algum livro escrito por Bevilacqua? O espírito de Kelsen estaria se vingando por terem dito — e ainda dizem — que ele separou o Direito da Moral? Precisamos de um banho de descarrego? Comprar a rosa ungida?
Nos anos 90 eu fazia palestras e brincava com os exemplos de Caio e Tício. E Mévio. Por exemplo: Caio quer matar Ticio. Com veneno. Mévio também. Com veneno. Cada um usa só meia dose… Minha pergunta, de então: por que dois incompetentes errariam ao mesmo tempo? Enfim, era divertido. Nunca imaginei que chegaríamos a um ponto em que o YouTube está repleto de gente cantando ECA em funk ou conceito de estupro em reggae. Isso era inimaginável. Agora é corriqueiro.
Parece bem plausível a explicação de MacIntyre acerca do Know Nothing (Saber Nenhum), que triunfou na onda do anti-intelectualismo. (No Google, é fácil. Lamento, porém: jamais haverá um After Virtue tranquilão-esquematizado-mastigado).
De todo modo, não é relevante falar do livro X ou do livro Y. São apenas símbolos de um “espírito do tempo”, de um imaginário do atalho. Lembro, a propósito, da Teoria do Medalhão, de Machado, na qual o pai orienta seu filho Janjão no aniversário de maioridade: em vez de escrever um tratado sobre carneiros, compre um, asse e convide os amigos. E, sobretudo, não frequente bibliotecas.
Então, o que é importante? Simples. Essas coisas acontecem e se multiplicam por culpa dos professores de Direito. Jabuti não nasce em árvore. O paciente zero da pandemia está ali. Resultado? Coisas como uma denúncia contra um patuleu por ter furtado… dois baldes de água!
Outra culpa pertence à doutrina, que não coloca limites (ou constrange). E aqui me obrigo a registrar, mais uma vez, a denúncia que Bernd Rüthers faz, no livro Uma interpretação sem limites (ou não constrangida, como prefiro), mostrando que a falta de crítica doutrinária, por exemplo, foi uma das causas da ascensão do nazismo.
Eis a questão. No Brasil, fomos deixando, deixando e achando tudo normal. A doutrina jurídica foi conivente com o primeiro resumidinho; depois veio o resumo do resumo; depois, o mastigado… e o boi se foi com a corda.
Agora parece ser tarde. Já tem muita gente achando que Ferrajoli é marxista! O que equivale a dizer que a Terra é plana. Não? Processe-me.
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