Opinião

A problemática das desapropriações em áreas esbulhadas

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2 de março de 2020, 6h39

O problema das desapropriações em áreas esbulhadas é um tema complexo e muitas vezes não resolvido pelas autoridades.

Neste sentido, a dificuldade envolvendo a questão surge no momento que, deflagrado o processo expropriatório, por qualquer motivo que seja, o real proprietário do bem não se encontre na sua posse direta. Este cenário torna-se pior quando a perda da posse pelo proprietário se dá justamente em decorrência da iminente desapropriação do bem pelo Poder Público, com vistas à afetação a um determinado interesse social, que, caso se frustrar, pode causar um prejuízo à coletividade, mas que pode ser sentido principalmente por seu proprietário.

Sobre o esbulho possessório, cumpre ressaltar que é a mais grave ofensa à posse. Em outras palavras, o direito violado com o esbulho é o direito do possuidor, que está na posse direta do bem e não necessariamente do proprietário deste imóvel.

Vale lembrar que há duas teorias sobre a posse: (i) a subjetiva de Savigni, na qual a “posse é o poder que tem a pessoa de dispor fisicamente de uma coisa, com intenção de tê-la para si e de defendê-la contra a intervenção de outrem” [1] e (ii) a objetiva de Jhering, “calcada na visibilidade do domínio, em que sobreleva a destinação econômica do bem” [2].

Ao tratar do tema, o Código Civil brasileiro adota a teoria objetiva ao definir possuidor, no artigo 1.196, como aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

O artigo 1.200 do mencionado diploma legal dispõe que “É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária”. Dessa forma, o esbulho pode ser caracterizado como a injusta e total privação da posse, sofrida por quem a vinha exercendo, mediante (a) violência sobre a coisa, de modo a tirá-la do poder de quem a possuía; (b) constrangimento suportado pelo possuidor, diante do fundado temor de violência eminente; (c) ato clandestino ou abuso de confiança. [3]

Note-se que a violência, a clandestinidade e a precariedade são considerados vícios eminentemente objetivos, vale dizer, que não dependem do crivo subjetivo do julgador, já que verificáveis apenas da análise dos fatos praticados contra os antecessores possuidores para aquisição da posse e vinculado à lei.

No que tange às invasões coletivas, o enfrentamento atípico do apossamento ilícito vem sendo solucionado por meio de aspectos processuais, equacionando as questões complexas e peculiares verificadas ao longo da marcha processual.

Ocorre que diante de área afetada à prestação de serviço público, o imóvel acaba se tornando indisponível à posse e ocupação de particulares, em razão da evidente supremacia do interesse público.

Com isso, não se pode reconhecer a posse dos invasores quando detentores de bem imóvel que deveria servir toda a coletividade. No entanto, essa mesma proteção possessória conferida aos imóveis afetados pode ser oposta ao antigo proprietário, de forma a incentivar o esbulho caso não seja efetivada a construção do equipamento público prometido.

O ponto é problemático porque, de um lado, não se ignora que a Administração Pública não tem obtido êxito nas tentativas de solucionar os déficits habitacionais que levam às invasões, mas, de outro lado, o próprio Poder Público não deve legitimar o exercício arbitrário do poder em detrimento ao proprietário e à toda a coletividade.

Feitas as considerações acima e falando de desapropriação em áreas esbulhadas, em recente decisão, o STJ inovou e abriu espaço para permitir a conversão de ação reivindicatória em desapropriação indireta de ofício. Vejamos:

Em decisão publicada no dia 05/02, a Primeira Seção do STJ julgou improcedente a Ação Rescisória nº 4.406/RS, ajuizada pelo município de Caxias do Sul, e acompanhou o entendimento do TJRS, que ao apreciar ação em que os proprietários pretendiam reaver terreno de 57 mil m², fixou, de ofício, valor de indenização por perdas e danos em valor superior a R$ 500 milhões a título de desapropriação indireta.

O local, onde hoje se encontra o bairro residencial Primeiro de Maio, já havia sido declarado de utilidade pública para a construção de instituição de ensino, mas começou a ser invadido após a Prefeitura ter deixado de construir ali a Universidade de Caxias do Sul, mesmo tendo recebido o imóvel por doação da família Magnabosco em 1966, com contrapartidas específicas, dentre as quais a de construir a faculdade.

Diante do descumprimento desse e de outros encargos, que originou Ação Indenizatória ajuizada pela família, as partes haviam celebrado acordo em 1982, através do qual o imóvel retornaria ao patrimônio dos particulares, que, por sua vez, dariam quitação geral e expressa de qualquer direito indenizatório.

Em 1983, os proprietários promoveram outra ação para reivindicar a área em seu favor, desta vez em face dos seus invasores, em que a municipalidade foi citada em 1996, para responder pelo interesse em partes do imóvel, onde implantou logradouros e equipamentos públicos.

Esta ação havia sido julgada improcedente, mas o TJ-RS decidiu convertê-la, de ofício, em sede de Embargos Infringentes julgados em 2002, para condenar o município a indenizar os proprietários pela desapropriação de todo o imóvel, em quantia que, hoje, supera os valores anuais orçados para Saúde (R$ 421.057.786,28) e Educação (R$ 411.999.122,08).

A tese vencedora que foi utilizada pelo TJ-RS e acompanhada agora pelo STJ concluiu que a conversão em perdas e danos é mera consequência da impossibilidade do pedido, na medida em que o município de Caxias do Sul atuou junto aos invasores ao incentivar o esbulho possessório sobre a área e não impugnou oportunamente a decisão em que foi determinada a sua inclusão no feito.

O STJ já havia admitido a possibilidade de conversão das ações, mas apenas e tão somente nas hipóteses em que o particular tivesse realizado pedido subsidiário de indenização pela afetação do imóvel, na impossibilidade de retomada do bem ao patrimônio privado.

O entendimento que era repetido no STJ apontava para o reconhecimento de supressão dos princípios (art. 5º, LV da Constituição Federal) da ampla defesa e do contraditório do ente expropriante na hipótese, na ausência de pedido expresso pela conversão na petição inicial.

EMENTA – “PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. INVIABILIDADE. BEM AFETADO AO SERVIÇO PÚBLICO. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. CONVERSÃO.

1. Não há violação do art. 535 do CPC quando o Tribunal de origem resolve a controvérsia de maneira sólida e fundamentada, apenas não adotando a tese do recorrente.

2. Trata-se de ação reintegratória ajuizada contra a Comlurb/RJ com a finalidade de recuperar a posse de imóveis contratualmente cedidos ao ente da administração indireta por tempo determinado.

3. A instância ordinária atestou que os imóveis estão afetados ao serviço público – servindo de aterro sanitário -, sendo, portanto, inviável a pretensão reintegratória.

4. Com a ocupação e a destinação do bem ao serviço público fica caracterizada a desapropriação indireta, remanescendo ao autor a buscar da indenização por danos, que no caso envolve responsabilidade de cunho contratual e extracontratual.

5. A jurisprudência desta Eg. Corte e do STF, com fundamento nos princípios da economia e celeridade além da tutela das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa certa distinta de dinheiro, consagrou a orientação de que é possível que a ação reintegratória seja convertida em ação de indenização por desapropriação indireta.

6. Na espécie, havendo pedido, é possível que a ação reintegratória seja convertida em ação de indenização em respeito aos princípios da celeridade e economia processuais.

7. Recurso especial parcialmente provido.” [4]

Em caso semelhante, o STJ [5] também já havia reconhecido pela possibilidade de desistência da desapropriação pelo Poder Público, desde que não tivesse havido o pagamento integral do preço e que o imóvel pudesse ser devolvido ao expropriado sem alterações substanciais que o impedissem de ser utilizado como antes.

Depreende-se da leitura desses dois julgados que a Corte Superior não admite que o esbulho possessório em área afetada, mas não utilizada pela Administração Pública, permita ao expropriado a sua utilização da mesma forma como antes da sua afetação.

O TJ-SP coleciona julgados pela impossibilidade de condenação do expropriante por apossamento administrativo em ações nas quais a pretensão inicial dizia respeito apenas com relação à restituição da posse ou da propriedade de imóvel, por violação ao Princípio da Congruência, decorrente da redação dos artigos 141 e 492 do CPC.

Nesse sentido, destacam-se os seguintes acórdãos:

EMENTA – “INTERDITO PROIBITÓRIO Turbação da posse Apossamento administrativo pela Prefeitura Municipal de Suzano Com a conclusão da obra pública, o bem incorporou-se ao patrimônio público, sendo incabível reivindicá-lo Carência superveniente da ação Incabível a conversão da ação possessória em desapropriação indireta, por falta de similaridade entre os ritos Inadequação da via processual eleita Ônus da sucumbência repartidos entre as partes Impossibilidade de se aferir, no momento da prolação da sentença, a quem seria atribuído os ônus sucumbenciais em caso de prosseguimento da demanda – Sentença mantida Recursos desprovidos”. [6]

EMENTA – “REINTEGRAÇÃO DE POSSE. Servidão administrativa. Construção de ponte e via pública sob linha de transmissão de energia elétrica. Ausência de autorização da concessionária. Inobservância da distância mínima entre as torres de transmissão e a via pavimentada. Possibilidade, reconhecida pela concessionária, de adequação do projeto da obra. Situação consolidada. Apossamento administrativo. Ação julgada improcedente, assegurado o ajuizamento de ação própria para o ajuste da obra e indenização pelo apossamento administrativo. Sentença mantida. RECURSO DESPROVIDO”. [7]

EMENTA – “RECURSO DE APELAÇÃO REINTEGRAÇÃO DE POSSE EDIFICAÇÃO DE TORRE DE TRANSMISSÃO EM ÁREA PARTICULAR INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA.

1. Trata-se de ação por meio da qual a parte autora, proprietária da área localizada na Comarca de Caraguatatuba (Estrada do Rio Claro, matrícula n. 59.845 do C.R.I.) pretende ser reintegrada na posse e indenizada por danos materiais e morais em razão de esbulho perpetrado por concessionária de serviço público de transmissão de energia elétrica consistente na instalação de uma torre de transmissão de energia elétrica em seu terreno.

2. De rigor a extinção do feito sem resolução de mérito ante a inadequação da via eleita para o caso concreto (reintegração de posse), devendo eventual indenização, em razão de apossamento administrativo ou de servidão administrativa, ser buscada por ação própria. Área destinada a serviço público essencial. Prevalência do interesse público.

Recurso provido.” [8]

No caso da Ação Rescisória nº 4.406/RS, os ministros Sergio Kukina, Gurgel de Faria e Herman Benjamin entenderam que a decisão extrapola os limites do pedido inicial e configura decisão surpresa, contudo, foram vencidos pelo voto do relator ministro Benedito Gonçalves, que foi acompanhado pelos ministros Assussete Magalhães, Regina Helena Costa e Mauro Campbell Marques.

Importante dizer que a pretensão inicial em ações reivindicatórias ou possessórias gira em torno da discussão acerca da propriedade e do direito à posse da área, bem como sobre a ocorrência de esbulho, enquanto que em eventual ação de desapropriação indireta, o debate entre as partes seria sobre a eventual inutilidade do imóvel a ponto de ensejar a perda da sua titularidade em favor do Poder Público.

Não por acaso, as ações seguem procedimentos diferentes, previstas por um diploma distinto, como o Decreto-Lei nº 3.365/41, no caso do processo expropriatório, que prevê solenidades diversas, dentre elas, imprescindivelmente, a realização de prova pericial técnica para identificação da área que é objeto da demanda e delimitação da planta do bem expropriado e suas confrontações que permitam a averbação no competente Oficial de Registro de Imóveis.

Conclusão
A posse como um interesse juridicamente protegido deve ser tutelada sempre que houver lesão ou ameaça ao direito, sob pena de violação da garantia prevista na Constituição Federal, cabendo a intervenção do Poder Judiciário.

As invasões coletivas representam fato social moderno, não previstas pelo legislador. Dessa forma, como visto, coube à jurisprudência o papel criador e supressor da lacuna deixada pela ausência de legislação que contemple essa nova situação fática.

O problema das invasões coletivas de propriedades alheias assume grande relevância e requer especial atenção dos legisladores, da doutrina e da jurisprudência, por se tratar de situação complexa que envolve a necessidade de se estabelecer políticas públicas. Assim, devemos ficar atentos às próximas decisões envolvendo o assunto para perceber melhor qual será o alcance do entendimento da Ação Rescisória nº 4406/RS e como ele será aplicado.

Portanto, a decisão traz uma novidade na atuação interpretativa do STJ e que permite ao particular o recebimento de indenização pela afetação do seu patrimônio ao Poder Público mesmo no caso de pretensão que busca a retomada do bem ao seu próprio patrimônio, podendo, ainda, balizar diversas outras situações envolvendo a impossibilidade de restituição de bem ao proprietário pela possível afetação ao patrimônio público, como, por exemplo, no caso de eventual desistência de desapropriação.


[1] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das coisas, v. 3, 37ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 17.

[2] NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. A posse e a propriedade no Novo Código Civil. Revista de Direito Privado, vol. 15, julho de 2013.

[3] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – procedimentos especiais, v. 3, 51ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 115.

[4] Recurso Especial nº 1.060.924 – RJ (2008/0113189-7), Rel. Ministro Castro Meira, j. em 03/11/2009; 2ª Turma.

[5] Recurso Especial nº 1.368.773-MS (2013/0039269-9), Rel. Ministro Og Fernandes, Rel. p/ acórdão Min. Herman Benjamin, j. em 06/12/2016, 2ª Turma.

[6] Apelação n° 0013669-73.2008.8.26.0606, Rel. Desembargador Samuel Júnior, j. em 07/03/2012, 2ª Câmara de Direito Público.

[7] Apelação n° 0004403-42.2011.8.26.0126, Rel. Desembargador Isabel Cogan, j. em 14/06/2016; 12ª Câmara de Direito Público.

[8] Apelação nº 1007978-02.2015.8.26.0126, Rel. Desembargador Nogueira Diefenthaler, j. em 06/08/2018, 5ª Câmara de Direito Público.

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