Opinião

Ao completar 20 anos, LRF causa preocupação com sua continuidade

Autores

  • Eduardo Carvalhaes

    é sócio na área de Direito Público e Regulação no escritório Lefosse Advogados mestre e doutor em Direito de Estado com especialização em Direito Público Relações Governamentais e Mercados Regulados.

  • Karen Coutinho

    é advogada na área de Direito Público e Regulação no escritório Lefosse Advogados e pós-graduada pela FGV em Direito Empresarial com concentração em Licitações.

24 de maio de 2020, 7h12

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), um dos maiores avanços para a gestão de recursos públicos sob a égide da Constituição Federal de 1988, completa neste mês 20 anos. O transcurso de tal período permitiu a criação de jurisprudência e precedentes administrativos sobre sua aplicação e, por meio de limites e consequências para o administrador público, tornou realidade uma cultura de aplicação planejada da arrecadação e dispêndio menos inconsequente.

Ao determinar a fixação de metas fiscais nas leis de diretrizes orçamentárias, a LRF fez com que os gestores passassem a informar a projeção de arrecadação para cada ano, colocando-a frente aos gastos com despesas correntes e expondo superávit ou déficit. Vetou novos refinanciamentos de dívidas entre os entes federativos e restringiu a atuação de bancos controlados pelo Estado no empréstimo a governos. Além disso, impediu os restos a pagar, atuando contra as "heranças" de dívidas decorrentes de despesas de curto por governos que sucedam aquele que contraiu a dívida.

De acordo com a LRF, o aumento de gastos tributários indiretos e despesas obrigatórias exigem estimativas de impacto orçamentário e financeiro que devem ser compatíveis com a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A lei também determina que a origem dos recursos e sua compensação devem ser evidenciados, exigindo planejamento prévio do governo.

No entanto, o momento pelo qual passa a aplicação da LRF não é de mera celebração da padronização objetiva e da transparência trazidas por ela, mas, sim, de preocupação com sua continuidade.

Na última semana, o plenário do STF confirmou a medida cautelar deferida no fim de março pelo ministro Alexandre de Moraes na ação direta de inconstitucionalidade para com isso flexibilizar artigos da LRF e da LDO em razão da situação excepcional ocasionada pela pandemia da Covid-19. Em seguida, ao analisar pedido da Advocacia-Geral da União (AGU), o STF declarou a extinção desta mesma ação por perda de objeto, já que a Emenda Constitucional 106/2020, conhecida como Orçamento de Guerra, havia sido recentemente aprovada pelo Congresso Nacional e atendia ao mesmo propósito. Por fim, o STF reforçou que o afastamento das exigências da LRF na PEC do Orçamento de Guerra é válido para todos os entes da federação que tenham decretado estado de calamidade pública por conta da pandemia.

A discussão é de extrema relevância e merece muita atenção da sociedade e dos órgãos de controle porque flexibilizar momentaneamente regras que representam avanços históricos diante da excepcionalidade da emergência de saúde pública sem precedentes não pode arriscar a eficácia e continuidade da LRF, nem tampouco implicar no fim da cultura de responsabilidade dos gestores públicos criada a duras penas e embates entre os poderes ao longo de duas décadas.

Não há dúvidas de que o momento atual é inédito, representando, conforme apontado pelo STF, uma condição superveniente absolutamente imprevisível e de consequências gravíssimas. Tal crise representa enorme desafio, que exige ações em defesa da vida, da saúde e de amparo à população e que inquestionavelmente não poderiam estar previstas na execução orçamentária planejada no ano anterior.

Eventual cumprimento estrito dos requisitos legais compatíveis com momentos de normalidade poderia implicar na violação pelo Estado dos princípios da dignidade da pessoa humana, da garantia do direito à saúde e dos valores sociais do trabalho e da garantia da ordem econômica.

Apesar de a LRF já trazer em seu artigo 65 a suspensão das suas balizas nucleares em momentos de calamidade pública, a aprovação do Orçamento de Guerra segregou o orçamento de emergência do orçamento normal, buscando permitir maior controle dos atos públicos nesse contexto e trazendo relativa segurança jurídica e proteção à LRF, em momento de tanta incerteza.

No entanto, considerando os avanços que a LRF trouxe sobre a Administração Pública, o risco de essa excepcionalidade se perpetuar não pode passar ao largo do debate. O regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações adotado para atender às necessidades da pandemia somente pode e deve ser aplicável naquilo em que a urgência for incompatível com o regime regular, durando sempre o período de tempo mais curto possível para que a emergência seja enfrentada e o governo reveja seu planeamento para a nova realidade verificada.

Portanto, é fundamental que, como previsto no Orçamento de Guerra, tais despesas não se tornem permanentes e sejam exclusivamente destinadas ao enfrentamento dessa situação certa e determinada que demanda ações excepcionais. Ainda que a pandemia possa ter tornado inviável o atendimento a alguns dispositivos da LRF, os princípios fundamentais da lei devem seguir sendo respeitados, ainda que de modo compatível com o momento: o planejamento, o controle, a responsabilidade e a transparência.

É justamente por isso que causa preocupação a falta de coordenação entre os entes federativos, que leva ao desperdício de recursos públicos.

Torna-se ainda mais relevante o papel dos Poderes Judiciário e Legislativo (no qual se inserem os Tribunais de Contas) nesse cenário, pois eles têm o dever de fiscalizar o cumprimento dos dispositivos aplicáveis da LRF e das regras previstas no Orçamento de Guerra para as contratações públicas, o aumento de despesas e de endividamento, assim como assegurar o retorno da LRF em sua plenitude tão logo seja possível. Caso contrário, este pode ser o último aniversário da LRF, que seria substituída pelo retorno do dispêndio irresponsável.

Autores

  • é sócio na área de Direito Público e Regulação no escritório Lefosse Advogados, presidente da Associação Brasileira de Direito da Tecnologia da Informação e das Comunicações (ABDTIC), mestre e doutor em Direito de Estado e com especialização em Direito Público, Relações Governamentais e Mercados Regulados.

  • é advogada sênior na área de Direito Público e Regulação no escritório Lefosse Advogados e pós-graduada pela FGV em Direito Empresarial com concentração em Licitações.

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