A MP 966 e seus efeitos sobre a responsabilidade dos agentes públicos
15 de maio de 2020, 14h52
Fomos quase todos, que trabalhamos o Direito, surpreendidos nesta quinta (14/5) com a publicação da Medida Provisória nº 966, de 13 de maio de 2020, a qual dispôs sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19.
Sua edição provocou um imediato alvoroço em juristas, políticos e na imprensa dado o regramento que nela foi sistematizado em relação ao assunto. O que me proponho, numa análise primeira e ainda bem horizontal do citado diploma normativo, é demonstrar que, no relativo à responsabilidade civil, possivelmente, muito desse rebuliço não resista a uma averiguação mais conjuntural.
Sem fazer trocadilhos com algo que é por natureza sério e que se torna ainda mais importante mercê do quadro de crise sanitária por qual passamos, mas talvez aqui se possa dizer tal como na famosa peça teatral do Bardode Avon: much ado aboutnothing (muito barulho por nada). É que, repito, no que concerne à responsabilidade civil, realmente, as disposições da MP pouco alteram a ordem das coisas existentes. Distinta pode ser, é verdade, a questão no pertinente à responsabilidade administrativa, mas essa já uma questão para os doutos dessa seara do direito…
A Medida Provisória tem como âmbito de incidência material as hipóteses descritas em seu art. 1º, que reproduzo adiante: “Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de: I – enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da Covid-19; e II – combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19”.
Note-se, de pronto, que ela não muda a responsabilidade objetiva prevista no art. 37, § 6º, da CF/88, a qual continua incólume, pois baseada no risco administrativo. A MP apenas disciplina, no caso da responsabilidade civil, como se dará a ação regressiva ali também prevista.
Para o particular em si, ela tem, com efeito, pouco efeito prático até por força do que restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal no RE 1.027.633/SP, julgado com repercussão geral em agosto do ano passado (Tema 940). A tese fixada pelo STF na ocasião reafirma a orientação pretoriana da Corte prestigiando a doutrina da dupla garantia, pela qual a regra do art. 37, § 6º, estabeleceria uma garantia para a vítima, facultando-lhe ação indenizatória, mas também outra garantia, agora para o agente público, pela qual apenas a pessoa jurídica de direito público a cujo quadro funcional pertence é que seria legitimada para ingressar com a demanda regressiva. Na prática, o que ela faz é retirar da vítima a possibilidade de ingressar com ação contra o agente autor do dano. É sob tal ótica, portanto, que se aborda a polêmica (?) MP.
A isenção excepcional de responsabilidade em decorrência do quadro de transitoriedade normativa que vivemos em virtude da pandemia global e que poderia afastar a ação regressiva somente se justifica: a) nesse específico quadro de excepcionalidade; b) para atos que especificamente digam respeito a atos públicos relativos destinados ao enfrentamento da emergência sanitária ou de combate aos seus efeitos econômicos sociais. Veja-se, não foi em vão o uso do adjetivo específico e do advérbio especificamente na mesma frase: a repetição teve por fundamento dizer que qualquer forma de interpretação extensiva da MP n. 966/20 deve ser tida por indevida e inválida.
Alguém poderá objetar, com boa razão, inclusive, que a afirmação acima se revela de pouca eficiência em razão da extensão previamente indeterminada dos termos empregados: enfrentamento da emergência sanitária e combate aos seus efeitos econômicos e sociais. Correto?
A resposta é tanto sim como não. Sim, a MP valeu-se de fato de termos amplos; porém, não, isso não é propriamente uma novidade. Toda e qualquer norma é — e deve ser — passível de interpretação jurídica. Desde o Direito Romano é sabido existir uma dialética inerente, inevitável mesmo, entre a lei e o juiz, tendo a doutrina por mediadora Assim, por mais amplos e abertos que tenham sido os termos da MP, parece ser relativamente fácil concluir que sua incidência deve abranger tão somente casos restritos associadas às práticas de saúde ou decisões com repercussão econômica/social pelos órgãos estatais, especialmente os decisórios.
Um exemplo tão simples como elementar para facilitar a compreensão: poderia um policial militar se eximir de contender com um criminoso que acabou de roubar um hospital, público ou privado, ao argumento de que estaria acobertado pela MP n. 966/20? Por certo que não! Em primeiro lugar, na situação ilustrada trata-se de profissão onde o agente estatal assume perante a sociedade em geral um dever de cuidado e proteção os quais, por si somente, já afastariam a incidência do texto normativo dentro da ideia de aplicação contida a que me referi acima. Não pode o policial militar, o bombeiro, o guarda municipal, mas também o servidor da Previdência, o funcionário da agência de um banco público — aliás, aqui já seria uma outra questão, a de se saber se a MP seria aplicável a eles… — deixar de atuar e bem desempenhar suas funções sob suas escusas.
Por outro lado, e ainda em prol da ideia de campo limitado de sua incidência, parece restar implícito que a atuação que fica imunizada é a relativa a atos estatais que demandem uma escolha baseada nas opiniões técnicas existentes, como fica expresso § 1º, do art. 1º. Sendo essencialmente polêmica a questão, peço antecipadas desculpas pelos que pensam de forma contrária, mas é mais que apropriada a referência nesse momento. Se, com razão, se cobra que o Estado aja nesse momento gravoso, de modo até mais firme e presente, parece ser de alguma razoabilidade considerar que o agente público seja chamado a responder com seu patrimônio por uma decisão que ele possa ter tomado e que, posteriormente, não se revele adequada, apenas em situações também extraordinárias.
A questão está no cerne das discussões da responsabilidade civil na área sanitária desde o quartel final do Século 20 e ainda hoje suscita, como agora, debates vivazes entre juristas. As consequências deletérias da sociedade de risco[2], rebotalho implacável de suas inúmeras comodidades, impôs mudanças as mais profundas na responsabilidade civil. Mais assertiva e proativa, ela ampliou seu espectro e forma de ser. Ainda no campo onde se cruzam saúde humana e responsabilidade civil, o grande problema é que os danos causados se ocultam sob o manto de uma postergação de efeitos. Basta rememorar, aliás em um passado não tão remoto, dos danos infundidos pela talidomida. Não eram previsíveis em sua origem, revelaram-se desastrosos.
Coloquemos todos esses ingredientes em nossa sopa de Wuhan. Imagine-se a delicada situação pela qual passam os profissionais de saúde e outros técnicos da área econômica que precisam tomar decisões, mas que em um futuro também não tão distante, sejam confrontados com evidências no sentido de que tais técnicas acarretaram danos à saúde, ou financeiros àqueles para os quais foram administrados quando, ao momento em que foram praticados, as evidências técnicas apontavam para sua correção. Não se afigura ponderável a regra sob tal contexto? Vou além, não parece justa mesmo!?
Em uma emissora de televisão, enquanto acabava de escrever o parágrafo acima, escutei exatamente que a MP foi fruto de uma postulação de servidores dos ministérios da Economia e da Saúde diante das circunstâncias acima mencionadas. O temor, como referido, é mais que justificado pela expansão da responsabilidade civil, que cada vez mais tende a ter seus filtros de contenção diminuídos na já difundida imagem de Anderson Schreiber. A propósito, não há que se temer, nem mesmo meramente, a regra constante do § 2º, do art. 1º, da MP n. 966/20 quando diz que “o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público.”
Se a intenção do artigo foi outra, sequer vem ao caso, porque ele, no ponto, seria até dispensável. Nos termos do § 6º, do art. 37, da CF/88, o agente responde civilmente apenas por imputação subjetiva, não objetiva. Logo, realmente, o nexo de causalidade por si somente não implica responsabilidade. Ainda assim, a Medida Provisória n. 966 traz consigo o debate de importantes questões como: a) poderia o legislador ordinário definir a ação regressiva do § 6º, do art. 37, dispondo que ela somente poderia ser exercida pelas pessoas jurídicas de direito público autonomamente ou a título de dolo ou de culpa? b) seria o resgate da conhecida e por muitos já abandonada doutrina da tripartição da culpa?
Respondendo ao momento sim para ambas indagações espero em breve poder aqui retornar para aborda-las de maneira mais adequada e com o devido fundamento jurídico. Só me resta, para encerrar, agradecer ao professor Otavio Luiz Rodrigues Junior e todos os co-editores desta prestigiada coluna a oportunidade uma vez mais conferida de dividir minhas opiniões com seus leitores.
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[2] A expressão sociedade de risco (Risikogesellschaft) criada por UlrichBeck põe em evidência o fato de que os perigos produzidos pela civilização moderna não podem mais ser definidos no espaço ou no tempo. Cf. BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. 2. ed. Tradução de Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo XXI de España, 2006, passim.
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