Opinião

Supremo: entre a liberdade e uma garrafa de pinga!

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7 de maio de 2020, 13h38

Era só mais um Silva (M. C. da S.), cujo caso chegou ao STF. Acusado de subtrair R$ 4,15 em moedas, uma garrafa pequena de refrigerante, duas garrafas de 600 ml de cerveja (curioso para saber a marca) e uma garrafa de pinga, tudo avaliado em R$29,15. A condenação considerou o crime consumado, mesmo tendo sido preso na saída do estabelecimento sem que tenha, sequer, provado a "ardida" bebida (seria prata ou ouro? Outra curiosidade).

Condenado em primeiro grau, sentença mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a Defensoria impetrou HC, que não foi conhecido pelo STJ. Finalmente, a tese recebeu guarida e o pobre Silva foi absolvido no STF por decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes no HC 181389/SP, confirmada pelo colegiado.

Pasmem! A Procuradoria Geral da República, insatisfeita, recorreu da decisão levando o caso à deliberação colegiada da 2ª Turma. De nossa parte, sempre sustentamos que tais casos sequer devem ser objeto de flagrante pela autoridade policial, que precisa, apenas, registrar as ocorrências como fato atípico para efeito de controle externo tão somente [1].

Para alegria geral do bom senso e da boa técnica jurídica, negou provimento ao agravo e manteve a absolvição (HC 181389 AgR/SP).

E por que se pretendia, diante de evidente insignificância, condenar o réu e não reconhecer a atipicidade? Pelo fato de o réu ser reincidente.

A doutrina abalizada vem reconhecendo a fragmentariedade do Direito Penal. Para Figueiredo Dias, a função do Direito Penal radica na proteção das condições indispensáveis da vida comunitária, só podendo incidir sobre os comportamentos ilícitos que sejam dignos de uma sanção de natureza criminal [2]. Nilo Batista [3] dá conta de que Binding foi o primeiro a registrar, em seu Tratado de Direito Penal, em 1896, o caráter fragmentário do Direito Penal, que deve pautar-se, então, por uma intervenção mínima, como ultima ratio.

Nesse cenário, destaca-se o princípio da insignificância como causa excludente da tipicidade. Como ensina Zaffaroni, as afetações a bens jurídicos exigem certa gravidade, não sendo qualquer conduta capaz de preencher as exigências da tipicidade penal [4]. O princípio da insignificância foi impresso pela primeira vez por Claus Roxin em 1964 e é tratado por Tiedemann como princípio da bagatela, segundo o qual deve haver uma proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se quer punir e a "drasticidade da intervenção estatal" [5].

A tipicidade, atualmente, não é vista simplesmente como a adequação ou subsunção entre a conduta e a descrição legal de um crime, o que seria a tipicidade formal. Na verdade, a tipicidade exige efetiva e grave lesão ao bem jurídico tutelado pela norma, isto é, tipicidade material.

Voltando a Zaffaroni, temos que o juízo sobre a tipicidade não se esgota na tipicidade legal, exigindo um passo a mais, que é a comprovação da tipicidade conglobante, isto é, um corretivo da tipicidade legal, que exclui condutas que são apenas "aparentemente" proibidas.  Com efeito, a insignificância da lesão exclui a tipicidade, pois esta só pode se constituir através da consideração conglobada da norma [6]. Em síntese, não será toda conduta que se amolde a um tipo penal que permitirá a formação de um juízo de tipicidade, mas tão somente aquelas que se traduzirem em uma grave lesão ao bem jurídico tutelado.

Sendo a insignificância uma excludente de tipicidade, não faz qualquer sentido, como se encontra em alguns julgados e arrazoados de viés punitivista, condicionar seu reconhecimento à ausência de reincidência ou maus antecedentes.

A reincidência não torna a ação típica, não é norma de adequação típica, em nada interfere sobre a lesão ao bem jurídico tutelado. Inserir a reincidência na discussão sobre a aplicação ou não da insignificância e na análise da tipicidade é cultivar com máxima profusão um direito penal do autor, tão rechaçado pela doutrina penal. É abandonar a dogmática penal por um incontrolável desejo punitivo.

E desse modo, com um só gesto de rompimento com a boa dogmática jurídica, gasta-se dinheiro público com privação de liberdade absolutamente desmedida (o custo de uma vaga e da manutenção de um preso é elevado). Incrementam-se situações criminógenas e assoberba-se o judiciário com bagatelas. Imagine a Procuradoria da República mobilizando vários ministros do STF para decidirem se subtrair uma garrafa de pinga é furto ou não!

Em bons termos, a 2ª Turma do STF reconheceu a atipicidade da conduta em razão da insignificância. O ministro levou em conta que o princípio da insignificância atua como verdadeira causa de exclusão da própria tipicidade e considerou equivocado afastá-la tão somente pelo fato de o réu possuir antecedentes criminais.

Reafirmou a ideia de que, para a aplicação do princípio da bagatela, devem ser analisadas as circunstâncias objetivas em que se deu a prática delituosa e não os atributos inerentes ao agente, afastando-se, assim, o Direito Penal do autor. Reincidência ou maus antecedentes não impedem, por si sós, a aplicação do postulado da insignificância.

Trata-se de uma decisão que merece ser brindada com uma boa dose advinda dos inigualáveis engenhos de Paraty.

 


[1] NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 265.

[2] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direitos Penal Parte Geral Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 16.

[3] BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, s/d, p. 84-90.

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Derecho Penal Parte General. Buenos Aires: Ediar, 1999, p. 475.

[5] BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 20-21.

[6] ZAFFARONI, Manual…op. cit., p. 386 e 475.

Autores

  • é juiz de Direito titular do Juizado Especial Criminal de São Gonçalo-RJ, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e membro emérito do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP) e doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa.

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