Opinião

A Covid-19 e os tributos em despachos aduaneiros de importação

Autores

  • Osvaldo Agripino de Castro Junior

    é advogado sócio do escritório Agripino & Ferreira Advogados doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina com estágio pós-doutoral no Mossavar-Rahmani Center for Business and Government da Harvard University-EUA e professor no programa de mestrado e doutorado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí e no mestrado em Engenharia de Transportes da Universidade Federal de Santa Catarina.

  • Artur Saviano Neto

    é consultor em Comércio Internacional do escritório Agripino & Ferreira Advogados e especialista em Direito da Aduana e do Comércio Exterior e mestrando em Políticas Públicas pela Universidade do Vale do Itajaí.

  • Lucas Müller Zaniz

    é advogado associado ao escritório Agripino & Ferreira Advogados e especialista em Direito da Aduana e do Comércio Exterior pela Universidade do Vale do Itajaí.

1 de maio de 2020, 7h03

Como é sabido, nas últimas semanas, por todo o país, diversos mandados de segurança têm sido impetrados por contribuintes demandando a suspensão da exigibilidade de tributos diante da presente situação de calamidade pública, fruto do caos promovido pela pandemia do novo coronavírus.

Entretanto, a maior parte desses mandados vem sendo fulminada, quando não pelos juízos de primeira instância, pelos tribunais. Como a maioria dos pedidos vem fundada na Portaria nº 12 do Ministério da Fazenda, de 20 de janeiro de 2012, as decisões denegatórias têm se baseado na assunção de que a moratória de tributos depende de lei, ante previsão nesse sentido do artigo 153 do Código Tributário Nacional.

Além do mais, a portaria em questão traz, em seu artigo 3º, a advertência de que a Receita Federal do Brasil (RFB) e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) expedirão, nos limites de suas competências, os atos necessários para a implementação do disposto pela mesma, inclusive a definição dos municípios a que se refere o artigo 1º. Assim, como não houve, até o momento, a expedição dos referidos atos, a portaria ainda não poderia ser aplicada, sob pena de o Poder Judiciário usurpar a competência de outros poderes.

Se tal juízo pode fazer sentido em um primeiro momento [1], ele não resiste uma análise mais aprofundada quando contraposta ao substrato constitucional que regulamenta a matéria tributária no Brasil, de cima para baixo. Com efeito, já no artigo 1º da Constituição Federal consta a asserção de que a livre iniciativa constitui um dos fundamentos da República (inciso IV).

Por certo, nada que atente contra a livre iniciativa pode ser considerado constitucional, tanto mais se a agressão vier acompanhada de violação à previsão de que a tributação deverá respeitar a capacidade econômica do contribuinte, como estabelece o § 1º do artigo 145 da Carta Magna.

Não há dúvidas de que, diante da atual barafunda imposta pelas medidas das autoridades públicas objetivando coibir a disseminação do novo coronavírus, que literalmente brecaram a atividade econômica no país, a capacidade econômica dos contribuintes restou alterada, visto que esta é circunstancial.

Dada essa necessária dependência de fatores externos, a avaliação da capacidade contributiva deve necessariamente levar em consideração o que levou o sujeito passivo da obrigação tributária a não dispor de condições para arcar com referido compromisso, ao menos não a tempo.

Entender o contrário é vulnerar de forma absolutamente clara a letra da Constituição, visto que, em apenas uma tacada, se estará tomando de assalto o direito do contribuinte de exercer, em um cenário desolador do qual ele não possui culpa alguma, a livre iniciativa. De nada adianta permanecer formalmente livre se materialmente não se pode ser.

O contexto é agravado ainda mais quando a exigência de tributos está vinculada à liberação de uma mercadoria, como é o caso do despacho aduaneiro de importação. Neste cenário, o importador-contribuinte, diante da estrago causado pela pandemia em sua receita, não dispõe de meios para cumprir com a obrigação tributária e dar prosseguimento com o despacho.

A consequência é óbvia: as despesas colaterais da importação, como a armazenagem da carga no porto e a demurrage dos contêineres que a acondicionam, virarão uma bola de neve em poucos dias.

Como é cediço, a armazenagem é, via de regra, cobrada ad valorem, isto é, sobre o valor CIF da mercadoria (a soma do valor FOB, do frete e seguro internacionais e da capatazia). Ou seja, quanto mais alto o valor da carga, maior o custo para armazená-la. A demurrage de contêiner necessariamente está atrelada a um valor estipulado previamente (é uma multa em virtude do atraso na devolução do equipamento), quase sempre fixado em dólar. As duas despesas juntas têm o potencial para ultrapassar o meio milhão de reais em poucas semanas, dependendo do valor da carga e da quantidade de contêineres.

A consequência óbvia disso é a de que o importador-contribuinte, não tendo capital para recolher os tributos da importação no momento do despacho, incidirá em uma dívida gigantesca com portos e armadores, o que dificultará ainda mais a sua situação econômica. E, não dando prosseguimento ao despacho aduaneiro, invariavelmente a mercadoria irá a perdimento, visto que a Instrução Normativa SRF nº 69, de 16 de junho de 1999, estabelece, no inciso I de seu artigo 1º, ser este o desfecho das cargas que, uma vez descarregadas, não tenham seu despacho iniciado em 90 dias [2].

A dedução disso não é outra senão a de que o Fisco, ao insistir na exigibilidade de tributos nestas circunstâncias, estará violando o inciso IV do artigo 150 da Constituição Federal, isto é, empregará ao tributo o efeito de confisco. Se repercussão da impossibilidade do importador-contribuinte recolher tributos no momento do despacho aduaneiro é a de que a mercadoria irá a perdimento, outro entendimento não é cabível a não ser o de que manter tal exigibilidade resultará no confisco da mesma.

Além do mais, permitir tal exigibilidade, na atual conjuntura, implica em flagrante ofensa à Súmula 323 do Supremo Tribunal Federal, que dispõe ser inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.

No mesmo sentido, também do STF, a tese definida no ARE nº 914.045, concernente ao Tema 856, que consigna ser inconstitucional a restrição ilegítima ao livre exercício de atividade econômica ou profissional, quando imposta como meio de cobrança indireta de tributos.

Ora, diante da corrente desolação em que se encontra a economia, por certo que condicionar a liberação de mercadoria ao recolhimento prévio de tributos configura manifesta restrição ilegítima. Tanto mais porque tal cobrança se dá de forma direta. Deveras mais coerente é permitir ao contribuinte que pague os tributos devidos após a comercialização da mercadoria, salvaguardando a continuidade da empresa e a manutenção dos postos de trabalho durante a calamidade.

Por tais motivos, entre tantos outros que poderiam ser enumerados, ante o presente contexto, é inconstitucional a manutenção da exigência de recolhimento de tributos no despacho aduaneiro de importação sempre que a mercadoria do importador-contribuinte correr o risco de ir a perdimento por não dispor de haveres para recolhê-los.

 


[1] Entendemos que ele não faz sentido sequer neste "primeiro momento". De fato, a necessidade estrita de lei para instituir a moratória de tributos já foi mitigada pelo artigo 66 da Lei nº 7.450, de 23 de dezembro de 1985, que atribuiu ao Ministro da Fazenda a competência para fixar prazos de pagamento de receitas federais compulsórias. A Portaria nº 12/2012 do Ministério da Fazenda é, expressamente, um exercício desta faculdade concedida pela lei. O Código Tributário Nacional é lei federal anterior à Lei nº 7.450/1985 e, como tal, evidentemente não possui o poder de revogar suas disposições. Quanto à previsão constante do artigo 3º da referida portaria, a omissão do poder público em expedir os mencionados atos necessários para a sua implementação diante do presente cenário de calamidade pública decretada é a própria inconstitucionalidade suscitada no presente artigo de opinião. Válido ressaltar que alguns tribunais têm questionado a extensão dos decretos de calamidade pública estaduais e municipais em que se amparam alguns dos mandados de segurança. Com efeito, muitos deles de fato limitam seu escopo ao âmbito do artigo 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (suspensão do cumprimento de metas orçamentárias). Todavia, muitos dos decretos não o são desta natureza, como é o caso do Decreto nº 562, de 17 de abril de 2020, do Estado de Santa Catarina, que declara "estado de calamidade pública em todo o território catarinense, para fins de enfrentamento à epidemia (sic) da Covid-19, pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias". Importante, portanto, não confundi-los.

[2] Claro que haverá outras circunstâncias, como a possibilidade de remoção da carga para zona secundária, que influirão no prazo para a decretação do abandono. Todavia, isto não afasta a conclusão de que o perdimento será o destino das mercadorias uma vez que os tributos devidos na importação não tenham sido recolhidos em tempo.

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