Opinião

Sobre a força do requerimento de retirada de PL de autoria do presidente

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19 de junho de 2020, 20h07

Pode o presidente da República determinar a retirada de tramitação de projeto de lei de sua iniciativa? A discussão esteve posta nas ações diretas de inconstitucionalidade números 5.685, 5.687 e 5.735, todas da relatoria do ministro Gilmar Mendes.

As ações diretas em questão têm por objeto a Lei de Terceirização (13.429/2017), cujo processo legislativo se iniciou a partir de proposta do então Presidente Fernando Henrique, em 1998. Ocorre que, em seguida, o presidente Lula, defensor de políticas trabalhistas distintas, enviou à Câmara requerimento de retirada do referido projeto de lei, que, no entanto, não chegou a ser apreciado pela Casa Legislativa.

Nesse particular, os autores das ações diretas sustentaram que a ausência de deliberação acerca do requerimento de retirada apresentado pelo então Presidente Lula implicaria em violação a prerrogativa reflexa do poder de iniciativa conferido ao chefe do Executivo. Em debate, portanto, estão os efeitos da mensagem presidencial de retirada de tramitação de projeto de lei. É dizer: se o requerimento do Presidente da República possui efeitos jurídicos constitutivos ipso facto, fazendo-se a ação do Legislativo meramente declaratória ou se, uma vez apresentado o Projeto de Lei, transfere-se às Casas Legislativas a palavra final acerca do prosseguimento da proposição legislativa.

O ordenamento jurídico brasileiro reconhece a separação de Poderes como um dos fundamentos de sua existência. Por isso mesmo, não se admite sequer a proposição de emenda à Constituição que possa, ainda que indiretamente, desequilibrar a independência entre os Poderes constituídos. Assegura-se, assim, equilíbrio e harmonia entre quem julga, quem legisla e quem executa políticas públicas. O próprio processo legislativo depende da coordenação entre o Congresso e o presidente da República, que interfere tanto com propostas de criação de normas, quanto com a sanção ou oposição de veto a projetos já aprovados.

A discussão sobre os trâmites do processo legislativo que se põe suscita questionamentos sobre os limites de cada Poder. Se Walter Bagehot encontrava na íntima união dos Poderes Executivo e Legislativo inglês o segredo e a característica meritória da Constituição Inglesa[1], na realidade brasileira, percebe-se cada vez mais a importância da autonomia entre eles. Uma vez iniciado o procedimento legiferante, o Legislativo assume a missão do processo e a ele cabe, dentro dos ditames legais, proceder da forma com que julgar mais conveniente.

Nessa lógica, a propósito, segue o processo de tramitação das medidas provisórias. Na ADI-MC 221[2], o STF assentou que a medida provisória "não se ab-roga nem se desconstitui retroativamente por meio da retirada, do Congresso Nacional, da medida a ele submetida". Assim, o Presidente da República, posteriormente arrependido, não detém a prerrogativa de impedir a tramitação legislativa da medida provisória, mas apenas a de editar nova MP que revogue a primeira. Nesse caso, porém, a revogação dependerá da conversão, pelo Legislativo, da nova MP em lei. Tem-se, ainda, que a revogação por MP posterior é precária, na medida em que o ato não afetará relações jurídicas estabelecidas sob a vigência da medida revogada. Além disso, é certo que, se a norma revogatória impede o processo em lei da MP posterior, sua perda de eficácia faz com que o diploma revogado volte a vigorar pelo tempo restante para cumprir o prazo de conversão.

Na ADI-MC 2.984, o Supremo Tribunal Federal reafirmou que "a partir de sua publicação, a medida provisória não pode ser retirada pelo presidente da República à apreciação"; que "a Medida Provisória é passível de ab-rogação mediante diploma de igual ou superior hierarquia"; e que essa revogação "apenas suspende a eficácia da norma ab-rogada, que voltará a vigorar pelo tempo que lhe reste para apreciação, caso caduque ou seja rejeitada a MP ab-rogante" [3].

Em síntese, uma vez editada medida provisória, apenas o Congresso Nacional, por ação e inação, pode torna-la efetivamente sem efeitos. Por analogia, uma vez apresentado projeto de lei por iniciativa do presidente da República, cabe ao Congresso Nacional dar seguimento, ou não, ao que se propôs.

O exemplo em exame é particularmente interessante na medida em que trata de matéria de competência concorrente dos Poderes Executivo e Legislativo, de sorte que, sendo acolhido o requerimento de retirada, bastaria aos representantes do Congresso Nacional propor projeto semelhante. Ainda que não fosse esse o caso, compreendemos que, provocado a deliberar sobre projeto de lei, a decisão final sobre a retirada compete, exclusivamente, ao Congresso.

Por fim, a despeito de não haver previsão constitucional ou legal a respeito do tema, os regimentos internos das Casas Legislativas regulam o processo de apreciação do pedido de retirada. Em consonância com o que se expôs, depreende-se do regimento que “a retirada de proposição, em qualquer fase do seu andamento, será requerida pelo Autor ao Presidente da Câmara, que, tendo obtido as informações necessárias, deferirá, ou não, o pedido, com recurso para o Plenário[4]”. Como se sabe, a regra geral é no sentido de que as previsões constantes dos regimentos internos das Casas Legislativas consistem em matéria interna corporis, que não se sujeita ao controle judicial.

Conclui-se, então, que os regimentos internos da Câmara dos Deputados e ao Senado, ao assegurar ao Legislativo a prerrogativa de acolher, ou não, o pedido de retirada de projeto de lei por parte do Presidente da República, está em consonância com o princípio da separação entre os Poderes que o Estado de Direito a que o constituinte atribuiu caráter de princípio fundamental.

[1] Walter Bagehot, The English Constitution, 1867, Oxford University Press, 1928.

[2] STF, ADI 221/DF – MC, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 22.10.1993.

[3] STF, ADI 2.984/DF – MC, Relª. Minª. Ellen Gracie, DJ 14.05.2004.

[4] RICD, art. 104. Nesse sentido, RISF, arts. 256 e 257.

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