Opinião

As bodas de pérola do ministro Marco Aurélio com o Supremo

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

12 de junho de 2020, 13h05

Reza a sabedoria popular que aos 30 anos de matrimônio são comemoradas bodas de pérola, o que ocorre neste junho de 2020 entre o ministro Marco Aurélio e o STF, cuja atuação marca, de forma indelével, a interpretação da Carta de 1988.

Spacca
No âmbito do Direito Financeiro sua atuação sempre foi destacada, podendo ser listado um grupo enorme de decisões relevantes nessa área. Porém, entre todos, destacarei um caso importantíssimo, que diz respeito à vinculação da receita, conceito que corresponde a um liame normativo (constitucional ou legal), unindo a receita a certa despesa, órgão ou fundo. Trata-se de um conceito relacional. No Brasil pós-Constituição de 1988 é vedada a vinculação da receita da espécie tributária imposto, sendo admitida a vinculação das demais espécies de receita. A norma constitucional atual, do artigo 167, IV, veicula o que se convencionou chamar de Princípio da Não Afetação.

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O caso paradigmático foi julgado em 1997 (RE 183.906/SP), tendo por relator o ministro Marco Aurélio, no qual foi apreciada a constitucionalidade da Lei paulista 6556/89, que havia majorado a alíquota do ICMS de 17% para 18%, ficando consignado que esse valor deveria ser afetado ao aumento de capital da Caixa Econômica do Estado de São Paulo S.A. e utilizado para o financiamento de programas de habitação popular. Nesse caso, a posição do STF foi de que: I) não só a vinculação era inconstitucional, por violação do artigo 167, IV, CF, mas também: II) a imposição tributária, o que acabou por determinar a devolução aos contribuintes do um ponto percentual de ICMS que houvera sido majorado.

A despeito do trânsito em julgado dessa ação, o assunto permaneceu em debate, pois o Estado de São Paulo manteve a exigência desse acréscimo tributário e sua vinculação através das Leis estaduais 7.003/90, 7.646/91 e 8.207/92, as quais foram declaradas inconstitucionais através dos RE 188.443 e 213.739 (julgados em 1998), ambos relatados pelo ministro Marco Aurélio.

Posteriormente ao julgamento inicial, o Estado de São Paulo editou a Lei 9.903/97, por meio da qual foi majorada a alíquota do ICMS de 17% para 18%, por um ano (artigo 1º), e, ao invés de afetar essa majoração ao aumento de capital da Caixa Econômica estadual, ou estabelecer que seria usado para programas de habitação popular, a lei dispôs no artigo 3º apenas que "o Poder Executivo publicará, mensalmente, no Diário Oficial do Estado, até o dia 10 (dez) do mês subsequente, a aplicação dos recursos provenientes da elevação da alíquota de que trata o artigo 1º".

Ou seja, ao invés de afetar o aumento da alíquota à determinada finalidade, simplesmente estabeleceu que esse valor deveria ser objeto de publicação específica acerca da aplicação dos recursos decorrentes da majoração do tributo. Essa norma foi julgada em 2010 pelo STF por meio do RE 585.535/SP, relatado pela ministra Elle Gracie, não tendo sido declara a inconstitucionalidade da norma estadual. Entendeu o Tribunal que, dessa feita, não estaria havendo infringência ao artigo 167, IV, CF, pois não haveria afetação do tributo a uma prévia e específica despesa, mas sim dentro do plano geral de governo do Estado, tendo sido confirmada a majoração do tributo.

O ministro Marco Aurélio restou vencido nesse julgamento, tendo consignado:

"O que se tem no caso? Tem-se regência que, infelizmente devo consignar visou ao drible, visou a afastar o primado do Judiciário quanto à glosa ocorrida anteriormente. (…)

Mediante um sutil jogo de palavras, afastando-se a destinação específica, manteve-se a destinação individualizada de parte do tributo, que é o ICMS, mediante disciplina a ocorrer por ato da Secretaria do próprio Estado".

A alíquota interna padrão do ICMS paulista permanece em 18% até os dias atuais, tendo sido perenizado o aumento provisório criado em 1989 e sucessivamente prorrogado.

Em apertada síntese: o Estado acabou perenizando a majoração do ICMS, sob o argumento de que não haveria vinculação, e nem por isso usou o dinheiro para a alegada finalidade. Isso acabou sendo apenas e tão somente uma majoração de tributo nada além. Se tivesse prevalecido no julgamento posterior o entendimento do ministro Marco Aurélio, declarando inconstitucional tanto a vinculação quanto a incidência, e descartando o drible normativo efetuado pelo Estado, possivelmente o ICMS paulista seria um ponto percentual mais baixo do que é hoje.

Com isso, presto minha homenagem às bodas de pérola por ele comemoradas neste mês. Saúde.

Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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