Embargos culturais

Clara dos Anjos e as profecias de um triste visionário

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

7 de junho de 2020, 8h00

Spacca
O escritor fluminense Lima Barreto dedicou o romance Clara dos Anjos à memória de sua mãe, Amália Augusta. Neta de Maria Conceição, que nasceu na África e que chegou no Brasil em um navio negreiro. Amália foi criada e educada por uma família de proprietários rurais. Chegou a dirigir um colégio para moças no Rio de Janeiro. Amália faleceu em dezembro de 1887. Lima tinha seis anos. A ausência da mãe e uma melancolia decorrente da perda marcaram a personalidade do escritor. A avó paterna de Lima Barreto, Carlota Maria dos Anjos, foi escrava. Chegou ao Brasil a bordo de um navio negreiro.

Pode-se especular que a personagem central de Clara dos Anjos possa representar, em muitos aspectos, reminiscências dessas duas mulheres: a mãe e a avó do escritor, ainda que essa referência não seja direta. Clara pode simbolizar o horizonte e as perspectivas limitadas que o Rio de Janeiro no início do século XX oferecia a mulheres de ascendência africana, marginalizadas em uma sociedade autoritária e marcadamente aristocrática. Além do que, era uma sociedade extremamente racista.

O enredo é simples. Clara dos Anjos era uma mulata, filha de um modesto carteiro (Joaquim) e de uma dona-de-casa, Engrácia, limítrofe na compreensão do mundo. A mãe de Clara era uma mulher medíocre, medrosa, distante da realidade, protetora e que raramente saia de casa. Seu mundo se concentrava nas paredes da residência, na submissão ao marido e na vigilância da filha. Clara praticamente não tinha contato com o mundo externo, e certamente seria uma presa fácil para os escroques conquistadores sedutores que então havia. Foi o que aconteceu.

Cassi (que anexou Jones a seu nome, invocando ascendência inglesa) é o vilão. Filho de Maneco (um pai consciente, que o expulsou de casa) e de Salustiana (a mãe protetora, para quem o filho não poderia se casar com as mulheres simples que seduzia). Deve-se entender o comportamento do vilão, Cassi, à luz das disposições penais à época vigentes. Vigorava o Código Criminal de 1890. O defloramento de mulher menor de idade (como Clara, que tinha 17 anos), mediante sedução, engano ou fraude, suscitava prisão de um a quatro anos. O estupro de mulher honesta (sic) justificava prisão de um a seis anos. Se a violentada fosse prostituta a pena era bem menor, caía para seis meses a dois anos. O ambiente era tão preconceituoso que até juízes achavam que Cassi não deveria se casar com as moças pobres que seduzia. Cassi tocava violão, cantava modinhas e registrava dez defloramentos. Não tinha limites. Seduzia mulheres casadas, engravidou a filha da empregada da casa, cuja mãe, envergonhada, suicidou-se. O marido de uma das mulheres que Cassi seduziu assassinou a mulher.

Em Clara dos Anjos o escritor Lima Barreto denuncia a imprestabilidade da educação que moças de classe média baixa recebiam. Lima afirmava que a educação de Clara, cheia de mimos e vigilâncias, fora totalmente equivocada. Clara deveria ter sido educada, segundo o narrador, para que se defendesse e se batesse contra todas as pessoas que se opusessem à sua elevação social e moral.

Porém, de algum modo, Lima questiona o nível de responsabilidade de Clara para com os fatos que viveu, adiantando-se a uma discussão de política criminal e de criminologia (ocorrida a partir de meados do século XX), relativa ao papel da vítima no contexto do crime. Cassi teria se aproveitado de um mórbido estado d’alma, que era uma característica de Clara, a vítima. Lima Barreto às vezes nos faz perguntar se Clara, e sua família, teriam alguma responsabilidade nos eventos. Não que o narrador defenda o agressor. Pelo contrário. Tem-se a impressão que compartilham um universo desprovido de opções melhores.

Os personagens são típicos representantes da vida suburbana carioca do início do século XX. Joaquim dos Anjos, pai de Clara, um carteiro sem muitas pretensões. Engrácia, mãe de Clara, incapaz de atitude própria. Clara, sonhadora e distante da vida real. Dona Margarida, que instruía Clara nas costuras e bordados. Marramaque, o fiel amigo de Joaquim, padrinho de Clara. Cassi Jones, o vilão sedutor. Dona Salustiana, a mãe que superestima o filho. Maneco, pai de Cassi, realista, a ponto de expulsar o filho de casa. Praxedes, o rábula. Arnaldo, o ladrãozinho de galinhas. Nair, a seduzida que terminou na prostituição. Menezes, o dentista prático.

Em Clara dos Anjos o autor também tratou criticamente de outros assuntos, recorrentes em sua obra. Lima Barreto insurgiu-se contra funcionários públicos. Continuou sua cruzada contra os bacharéis e os rábulas. Na figura do Dr. Praxedes, um típico rábula, pintou um personagem obcecado com o mundo dos advogados e juízes. Praxedes só falava em processos, embargos, exceções de incompetência, e todo esse palavrório do fórum. Denunciou o sistema eleitoral vigente, que descreveu como “puxado a navalha, rabo-de-arraia, cabeçadas, tiros de revólver e outras eloquentes manifestações eleitorais”.

Censurou o orgulho das mulheres de classe média suburbana, a exemplo da mãe de Cassi, que “tinha fumaças de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo às dos seus conhecimentos”. O orgulho de Salustiana vinha do fato de ter um irmão médico do Exército e de ter estudado no Colégio das Irmãs de Caridade. Não admitia que seu filho fosse um operário, porque sobrinho de um doutor. As irmãs de Cassi, Catarina e Irene, “sonhavam casar com doutores, bem empregados ou ricos, porque se julgavam prestes a ‘se formar’, a primeira em música e piano, pelo trampolineiro Instituto Nacional de Música; e a segunda, pelo indigesta Escola Normal”.

Em Clara dos Anjos o escritor Lima Barreto descreve o subúrbio, que reputava como um “refúgio de infelizes”. Era o lugar dos “que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal”. Lima Barreto contrastava o subúrbio ao centro do Rio de Janeiro, que descrevia de um modo mais ameno e muito mais entusiástico.

Clara dos Anjos é um romance de crítica social, certamente marcado por rancores e referências da trajetória do autor. Lima Barreto não propõe lições de ordem moral ou de índole salvacionista. Simplesmente reproduz um ambiente cheio de insatisfações e frustrações, que bem conhecia, porque as vivia. Um mundo de protagonistas de pequenos expedientes e de funcionários públicos, onde tudo conspira contra o espírito.

Clara dos Anjos é um livro atual. Os problemas que relata são estruturais, típicos de uma sociedade que reluta em compreender seus desajustes e desacertos e que confunde democracia com o ritual do voto, bem-estar social com pleno acesso telemático, informação qualificada com mensagem de WhatsApp, estatística com calúnia, liberdade com escárnio e história com estória. Com o benefício do retrospecto, Clara dos Anjos é profecia de um triste visionário, a apropriar-me do título de uma obra-prima (de Lilia Moritz Schwarz) que trata da vida do reconhecidamente triste Lima Barreto.

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